XXI
“Seu
caso é atípico, senhor Trevor.”
Clufeir,
Evelyn, Karina. Lúcifer estava lá. Sentado na cadeira de Trevor, usando o seu
bloco de anotações, o seu gravador de áudio. Era ele o doutor. Trevor Kraepelin
era o paciente, o louco, o assombrado por pesadelos incessantes.
Era
o pai.
E
sua filha, ou ao menos o fantasma daquela criatura, assistia a toda aquela
conversa.
“Não
creio que haja uma solução simples para seus problemas.”
“O
que você quer, diabo?”
“Me
chamou por tantos anos de meu amor e meu bem, e agora é isso o que recebo em troca?
Diabo?”
“Vá
se foder.”
“Por
que você não vem me foder, como fez durante tantos anos? Admita, Trevor, você
abusou do meu corpo, mesmo sabendo que isso o tornaria uma aberração entre os
seus.”
Lembrou-se
do demônio de Adiel, o ser que o apontara como Sangue Azul.
“Enfrentei
um dos seus lacaios há algum tempo.”
“Há
vários, incontáveis, infinitos. O mal nasce da maldade dos homens, sabia? Meu
poder se torna maior a cada instante, pois a todo o momento existe uma pessoa
agindo de maneira errônea. A cada assassinato, estupro e furto, a cada
sequestro, abuso ou violência, sinto meus poderes se fortalecerem. Sou
invencível, Trevor, e assim são aqueles que se unem a mim.”
“Então
eu sou o mais fraco dos mortais.”
O
demônio sorriu, exibindo as covas de seu rosto feminino e atraente.
“Não
precisa ser assim. Você é o pai da criança que trará o meu domínio, Trevor.”
“Eu
a matei!”
“Talvez,
mas isso não extinguiu sua essência. Isso que você vê é apenas um fantasma, doutor, mas logo a situação será outra.
Logo terei minha cria de volta, e ela poderá caminhar em seu mundo, espalhando
o holocausto que tanto sonhei.”
“Eu
não vou deixar, seu maldito. Não vou permitir que isso aconteça. Já a matei uma
vez, farei novamente se necessário.”
“As
coisas são diferentes, pobre Trevor. Você não está no inferno, muito menos no
devaneio insano de um de seus pacientes. Aqui, você é um psiquiatra, um homem
comum, sem poderes. Aqui, ela pode te matar com o estalo de um dedo.”
“Não
é bem assim.”
“Claro,
você é especial. Dentre todos os ceifadores, você é o único que pode manifestar
sua arma encantada fora dos domínios da feitiçaria. Ou pode estar mentindo, um
costume porco de seu povo, algo que, por sinal, também faz de mim mais
poderoso. O que você acha, Trevor?”
Trevor
sabia da verdade. Ele não era um herói, não era especial. Era um ceifador comum
e, como tal, conseguia manipular seus poderes apenas nos locais onde a magia
coexistisse com o ar. Não era o caso da Terra, assim como outros mundos
paralelos àquela realidade. Ali, como Lúcifer bem sabia, Trevor era um homem
qualquer, um psiquiatra estudado capaz de auxiliar no tratamento da insanidade
leviana, mas sem a capacidade de enfrentar aquilo que realmente enlouquecia.
Sem
chance alguma de enfrentar o diabo em pessoa.
Perdido
nesses pensamentos, Trevor não teve argumento algum para se defender.
“Eu
adoro a mentira, Trevor. Mas mesmo eu, sendo a personificação das trevas e do
antagonista de todas as bíblias, sou incapaz de mentir como os homens. Sabe,
eles se tornaram especialistas nessa arte. Conseguem enganar a si mesmos! Que
proeza admirável!”
O
messias negro grunhiu, roçando o estômago deformado como se demonstrasse fome.
“Está
com fome, minha filha? Vou lhe presentear com uma alimentação fabulosa. Chamo
de fome-dos-anjos, mas alguns seres
costumam chamar de canibalismo.”
A
filha do demônio rugiu, agitada e grotesca.
“Como
será a sensação de devorar o próprio pai?”
Trevor
tremulou. Não tinha tempo para hesitar.
Lançou-se
na direção de Lúcifer, que se esquivou sem dificuldade. A criatura ao seu lado
preparou um bote animalesco.
“O
que pretende fazer, me abraçar?”
Não
era esse o plano. Trevor sabia que aquele demônio se esquivaria. Alvejava outra
coisa.
O
espelho da verdade.
“Sabe,
talvez o meu problema seja realmente sério. Talvez não haja solução simples,
mas sempre existem as complexas. Nesses casos, costumava usar um tratamento
diferente. Afinal de contas, antes de entender o que acontece ao seu redor,
cada pessoa tem de ver a realidade de seu interior, não é?”
Dizendo
isso, Trevor desprotegeu o espelho da verdade, e viu o mundo ao seu redor se
comprimir até que nada restasse.
Nenhum comentário:
Postar um comentário