XIX
Trevor
era um Sangue Azul.
Sabia
há muito sobre aquele termo, desprezado por todos os demais ceifadores. Sangue
Azul era como chamavam os homens que se relacionavam com demônios, que se
perdiam nas suas provocações, seduzidos por suas ofertas tentadoras. Por muito
tempo, Trevor odiou aquelas palavras, chamando de fraco todos aqueles que
ousassem se aproximar de tal ato.
Agora,
ele era o fraco.
Não
se intimidou.
Afastou-se
de Clufeir por um momento, lavando o rosto para tentar se livrar da vergonha.
Olhava-se no espelho, não via um ceifador. Em apenas um dia, desrespeitara duas
normas de sua profissão, a aproximação de uma mulher e o relacionamento com uma
criatura do sobrenatural. Sabia que, a partir daquele dia, não poderia mais se
chamar de ceifador.
Deu
de ombros, voltou à sua cama e beijou Clufeir.
“Que
se dane.”
“O
que disse?”
“Que
se dane tudo. Não quero isso para mim. Não quero me confinar como um padre,
ficar ajudando os outros a se livrar dos problemas que eles mesmos criaram.
Danem-se os loucos. Quero ficar com você, Clufeir.”
Não
era verdade, mas Trevor acreditava fielmente naquilo tudo que havia dito.
Aquele era o efeito da aproximação de um demônio, de sua enganação, de seu
teatro.
“Que
honra, Trevor. Podemos viver juntos, como um casal comum. Podemos nos amar,
como homem e mulher. Podemos ter um filho. Eu vou estar do seu lado para
sempre.”
E
assim foi.
Durou
anos. Três, quatro, Trevor deixou de contar. Era feliz, mais do que nunca.
Afastou-se da profissão, não mais atendeu pessoa alguma que precisasse dos
serviços de um ceifador, e não de um psiquiatra. Escutava os loucos,
indicava-os a remédios ou hospícios, quando necessário. Tornou-se um
profissional, o que lhe custou parte do renome.
Anos
mais tarde, Clufeir ainda estava lá, como prometera. Cada vez mais bonita, cada
vez mais sedutora.
Cada
vez mais inchada.
“Estou
grávida.”
“O
que isso quer dizer?”
Ela
fez uma expressão de zombaria.
“Que
eu vou ter um filho?”
“Eu
sei. O que isso quer dizer quanto à nossa relação, esta é a minha pergunta.
Somos humano e demônio. O que nascerá?”
Clufeir
sorriu com certa malícia.
“O
futuro da humanidade está em meu ventre, meu amor.”
Parecia
brincadeira, mas havia muita verdade nas palavras de Clufeir. Verdades que
Trevor não conseguia ver naquele momento.
Passaram-se
meses, algo entre cinco ou seis. Trevor não esperava pelos grunhidos de
Clufeir, mas eles vieram ainda assim, acordando-o no meio da noite com um aviso
de um parto prematuro. Buscou as roupas para levá-la a um hospital, ela o
impediu.
“Não
podemos sair daqui. Você vai ter que me ajudar.”
Não
era um parteiro, mas não teve dificuldades em cumprir seu papel. Clufeir se
postou na cama, abriu as pernas ao limite de sua flexibilidade, gemeu e ganiu
pelo esforço, alternando entre uma respiração densa e a pressão das unhas nos
lençóis avermelhados por seu sangue. Trevor fez o seu melhor, mas passou a
maior parte do tempo abobalhado pela situação, assistindo àquela cicatriz de
carne rosada e elástica, que se expandia o suficiente para que uma nova vida
passasse por sua abertura.
Uma
vida grotesca.
Trevor
choramingou pelo simples toque daquela criança. Sentia as mãos arderem, a pele
pulverizar, conforme puxava aquele ser para fora do corpo de sua amada. Tinha
unhas e dentes, olhos macabros, um corpo deformado e assustador. Aquele parto
fora acompanhado de muitas coisas, tempestades e ondas gigantescas, erupções
vulcânicas e terremotos gravíssimos.
Sua
existência gritava na mente de Trevor, e as palavras eram sempre as mesmas.
Eu sou o emissário do
demônio.
Clufeir
gargalhou, livrando-se dos braços de Trevor e de sua fragilidade pós-parto. O
teatro durou anos, e somente naquele momento fora revelada toda a farsa. Um
único berro afastou o ceifador de seu corpo, jogando-o contra as paredes de seu
próprio quarto.
“Obrigado
por tudo, meu amor.”
Terminando
suas palavras, a mulher de olhos bicolores desapareceu, deixando em seu lugar
um fogo negro e crepitante sobre os colchões manchados por seu sangue.
A
máscara caíra, e o ceifador entendeu a tolice de seu ato. Seria o responsável
pela catástrofe, o homem que possibilitou o fim do mundo. Seria o pai da cria
do demônio, guiado pela irresponsabilidade de uma atração encantada, de uma
feitiçaria poderosa e infernal.
Somente
naquele momento, as letras daquele nome exótico pareceram desembaralhar à sua
frente.
Clufeir.
Lúcifer.
“Filho
de uma puta.”
Não
tinha escolhas. Materializou sua força, seus poderes de ceifador, fez existir
aquela fé que somente os mais fortes dentre os homens são capazes de
manifestar. A fé da superação, do entendimento, do ato de compreender a sua
própria realidade e sobreviver para receber as recompensas.
Em
sua vida de ceifador, ouvira histórias sobre o inferno. Sobre os demônios mais
perversos, as criaturas mais horrendas, os monstros mais grotescos. Sobre a
terra do fogo astral, das sombras infindáveis, dos perigos indizíveis. Conhecia
as lendas e os mitos, os rumores e os boatos, mas nada sabia sobre a realidade.
Desejou
sua foice, mas ela não poderia estar ali. No entanto, sua crença estava
presente, e sua vontade fez o fogo de trevas que ainda estalava em seu colchão
se abrir como uma cicatriz, garantindo a ele a passagem para a terra onde
nenhum homem gostaria de se aventurar.
Trevor
sentiu o corpo todo arrepiar pelo temor, mas não pensou em nada daquilo.
Sem
demoras, saltou para o inferno, sem saber se seria capaz de voltar.
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