XVII
“O
que o senhor vai fazer, doutor?”
Trevor
se levantou, sem aviso, buscando algo escondido entre suas prateleiras. Não
gostava de usar aquilo, sabia dos riscos. Mas aquele caso era peculiar,
complexo demais para que sua magia funcionasse. Precisava do espelho. Era
preciso pois, antes mesmo de que ele entendesse as motivações de Evelyn, assim
como sua dor e seu sofrimento, ela mesma tinha de se entender.
Tinha
de ver a verdade dentro de si.
“O
que é isso?”
Terminando
de desembrulhar o artefato, Trevor respondeu:
“Um
espelho, senhorita Evelyn.”
“E
o que fará com um espelho?”
“Esse
espelho faz parte do seu tratamento. Eu entendo o que se passa dentro de sua
mente, entendo as dificuldades de sua vida. Agora, é hora de você entender.
Esse espelho é especial, e seu reflexo é muito mais do que uma simples imagem.
Não espere se ver por fora, Evelyn. Você tem de se entender por dentro.”
“O
senhor é louco, também.”
“Um
pouco.”
Ambos
riram.
Trevor
entregou o fragmento do espelho para Evelyn.
“Quando
estiver pronta.”
“Demorei
nove meses para nascer, doutor. Se me faltasse algo para estar pronta,
demoraria menos.”
E,
sem hesitar, Evelyn fitou seu reflexo naquele artefato, e gritou por todos os
demônios que a assombravam.
Trevor
esperou, como sempre esperava. Assistiu enquanto Evelyn grunhia, agonizando uma
dor indescritível, inerte em seu assento. Tocou-a com ambas as mãos, os braços
tremulando pela vibração de seus bramidos, acompanhando as lamúrias de seus
pavores.
O
ceifador fechou os olhos, atirando-se para dentro da consciência perturbada
daquela mulher.
Encontrou
uma paisagem assustadora.
Era
uma floresta, ou deveria ser. Cada árvore tinha galhos metálicos, cada arbusto
tinha folhas escarlates. A escuridão se espalhava mesmo ante o sol que
irradiava ao longe, incapaz de trespassar a densidade daquele cerco rubro e
torturante. Alguns olhos se moviam nas sombras, vermelhos como cada pétala das
flores, brilhosos como a estrela que iluminava o belo dia que seguia além dos
limites daquele escudo de vermelhidão.
Amarrada
por correntes cobreadas, enquanto cada uma delas forçava seu corpo numa direção
diferente, Evelyn choramingava. A dor era imensa, mas não a dor física. Seus
olhos estavam fechados, mas despejavam lágrimas banhadas por seu sangue. Sua
dor não vinha da tortura fantasiosa, mas sim do castigo real de se ver por
dentro, de entender a verdadeira faceta do ser humano, de si mesma.
Abaixo
de seu corpo, suspenso na armadilha das assombrações que a perseguiam, um casal
de seres observava. Eram disformes, o homem tinha seis braços, a mulher tinha
uma cauda de sereia. Ele não tinha olhos, mas cada uma de suas seis bocarras
ria com um prazer sádico e sinistro; ela vomitava atrocidades, vermes e mais
vermes que deslizavam rapidamente após tombar ao solo, jorrando de seu estômago
rompido ao mesmo tempo em que eram cuspidos pela fêmea monstruosa que
acompanhava o monstro.
Aquelas
eram as sombras dos pais de Evelyn, Trevor sabia. Ao menos, a sombra do que
restou de suas existências, após serem assassinados pela própria filha.
Fantasmas, espectros de passado corrompido, mas agora nada além de assombros
para aquela jovem, destruindo sua mente da mesma maneira que a realidade fazia
naquele instante.
“Temos
um intruso.”
As
palavras saíram de seis bocas em coro, lembrando uma orquestra cantarolando
pragas. Eram ásperas, roucas e graves, vozes capazes de torturar os mais
fracos.
Não
Trevor.
“O
que ele é?”
“Um
intruso, e apenas isso. Vamos nos divertir com ele também.”
O
ceifador não hesitou. Ergueu os braços para o teto de folhas vermelhas, tirando
do inexistente sua foice de ceifador.
“Que
tal se eu me divertir com vocês também?”
“Um
ceifador!”
“O
que é isso, pai?”
“Ele
está aqui para nos matar, mãe!”
O
tratamento de marido e mulher permanecia, mas não enganava Trevor. Eram
sombras, e nada mais. Monstros. Tinham de morrer.
“Está
enganado. Não estou aqui para matá-los, como acredita. Estou aqui para libertar
a filha de vocês desta tortura que estão causando. Vocês já estão mortos há
tempos.”
“Libertar?
Você sabe o que ela nos fez, ceifador?! Sabe do que essa mulher que você está
ajudando é capaz?!”
“Tomara
que ela o empurre da janela de um prédio também, seu porco!”
“Eu
sei do que ela é capaz, meus caros, e não aprovo suas atitudes. Ainda assim,
vocês foram os pais dela em vida, e são culpados pela revolta que extinguiu os
limites nas ações de Evelyn. Agora mesmo, por estarem assombrando a própria
filha, sei que são pais que nunca a amaram durante a vida inteira.”
O
monstro-pai se aproximou, grunhindo o que parecia uma gargalhada.
“Amar?
O que é amar para você, ceifador?”
“Não
é nada perto do que tentaram fazer.”
“Então
vai nos eliminar? Por acreditar nas palavras daquela vadia, vai nos destruir
aqui, em nosso único lar? Vai acabar com o nosso último vestígio de
sobrevivência?”
A
foice dançou, acompanhando um movimento sagaz e imperceptível do ceifador, onde
o tilintar da lâmina contra as rochas foi a última badalada de uma marcha
fúnebre. O monstro-pai jorrou sangue, um líquido espesso e verdejante,
despejado junto de pedaços do que pareciam seus órgãos.
“O
que você...”
“Para
aprender a não chamar sua própria filha de vadia, amigo. Boa viagem.”
E
a foice cortou outra vez, partindo aquela criatura sem que houvesse tempo para
reações.
O
monstro-mãe fintou, cuspiu um batalhão asqueroso de pragas vivas, ordenou que
atacassem sem piedade. Trevor estudou a paisagem, limpou a área com sua lâmina,
derrubou árvores e mais árvores um corte circular. Saltou por sobre um caule
mórbido, pousou num galho mais elevado, investiu como um trovão na direção
daquele ser meio-peixe, meio-aberração. Com um movimento experiente, separou o
torso da cauda anfíbia, que se debatia involuntariamente enquanto desfazia-se
em pequenas bactérias.
O
monstro-mãe urrava.
“Você
não pode salvá-la! Ela é um caso perdido!”
“Vocês
são um caso perdido.”
Houve
gritos por mais alguns instantes, mas logo cessaram, restando o silêncio
daquele devaneio.
Um
silêncio que pouco durou, aturdido pelos gritos do castigo de Evelyn.
“Fique
calma, Evelyn! Você tem que superar isso!”
Trevor
pensou em ajudá-la, mas falhou. O chão abaixo de si tremeu num estrondo, um
tremor incontrolável que o impedia de manter-se em pé. Apoiou-se numa árvore,
mas toda a floresta ao seu redor desmoronava, o céu partindo-se como um vidro
fragilizado. O terremoto aumentou, fez o sol desabar sobre aquele mundo
surreal, seguido por um turbilhão de estrelas e nuvens.
Evelyn
ainda presa em correntes, esticadas por uma força sobrenatural, para lugar
nenhum.
(O
que é isso?)
“Você
pode me ver?”
Aquela
voz encantou Trevor. Por um instante, um rápido quarto de segundo, esqueceu-se
de Evelyn, de seu próprio nome, de seu propósito na vida. Restava apenas aquela
voz chamejante, capaz de reerguer um exército exausto para uma nova onda de
combate.
“Pode
me ouvir?”
Era
uma mulher linda, de cabelos negros e pele pálida. Desenhos ilustravam seus
antebraços, metal adornava seus lábios e suas orelhas. A tez pálida ruborizava
pelo esforço de se prender numa das rochas, enquanto o solo abaixo de si
inexistia, transformando em nada aquele mundo de falsidades, criado apenas pela
loucura daquela paciente.
“Eu
preciso de ajuda!”
Trevor
se perdeu naqueles olhos bicolores. O verde o deslumbrou, o violeta impregnou
seu espírito.
“Escute-me,
eu preciso de ajuda! Ele está chegando, você tem que me ajudar! Ele está vindo!
Ele vai nos matar!”
A
mente de Trevor parecia não funcionar. Estava repleto de dúvidas, mas não pôde
formular nenhuma delas, pois seus lábios estavam amarrados pela visão
encantadora daquela mulher. Ela estava em perigo, precisava de ajuda. O mundo
ruía, Trevor era sua única esperança.
Atrás
dele, Evelyn sentia o corpo se despedaçar nas correntes.
“Eu
tenho tanto medo! Ele vai nos matar! Eu não quero morrer!”
Então,
a presença. Uma presença maligna, um tormento para a alma do ceifador, que
tinha de se esforçar ao limite para que sua vontade não fosse pulverizada por
aquela força. A mulher suplicava, implorava por sua vida, gritava por seus
medos. Trevor estava paralisado, perdido em sua própria fantasia, sem reação
alguma.
Evelyn
morria, mas ele não percebeu. Tinha olhos para apenas uma coisa.
Correu
na direção daquela mulher desconhecida, atirando-se para ela com os braços
protetores, salvando-a daquilo que se aproximava, ou que esteve sempre ali,
escondido numa máscara ornamentada em beleza.
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