Inicio agora uma nova Light Novel, a primeira de uma série chamada Desejos de Juno. Neste primeiro volume, intitulado A Cauda do Escorpião, teremos cinco capítulos longos (já contando o prólogo), diferente das demais Light Novel que postei aqui, portanto o ritmo das postagens será diferente. Tudo depende, é claro. Hoje trago a vocês o Prólogo, e em breve deverei trazer o próximo, chamado Reiseziel. Até lá, espero que apreciem a leitura de Desejos de Juno!
Até a próxima!
Prólogo
Dylan
Lorenzo era um bom garoto.
Infelizmente,
bons garotos tendem a sofrer nas mãos dos aproveitadores e, com Dylan, não foi
diferente.
Era
um dia como outro qualquer, pois todos os dias eram assim. Estava acostumado,
não faria diferença. Deitado sobre o cimento frio da quadra, Dylan pensava em
sua vida. Aos onze anos, sempre fora maltratado pelos colegas de classe, como
era naquele mesmo momento. Sempre humilhado ante seus companheiros, tão
covardes quanto ele próprio, assistindo ao exibicionismo impassível daqueles
que o utilizavam como saco de pancadas. Pensava em seu futuro. Poderia conviver
com aquilo para sempre? Poderia suportar aqueles hábitos doentios das pessoas
ao seu redor?
Talvez
devesse concordar com o desejo de seus pais, ambos militares da Elizei, a
milícia de sua região, e se unir às forças armadas. Estudando para ser um
cadete, ganharia o respeito que sempre almejou, por mais que fosse necessário
desgraçar a vida que tinha em mente. Não gostava da milícia, do trabalho dos
pais, de nada que se envolvesse com aquela farda imaculada. Não desejava aquilo
para si.
Agora,
atirado mais uma vez sobre o chão frio e sujo de sua escola, pensava se não
seria uma boa solução.
“Vai
ficar deitado o dia todo, pobrezinho?”
Aquele
que o provocava era Julian Valentin, o grande líder da máfia dos valentões.
Junto de seus capangas, Julian sempre
demonstrava para toda a escola seu talento nato para a luta, e o boneco de suas
brincadeiras era sempre Dylan. Algumas vezes outros estudantes atípicos, mas
Dylan era seu favorito.
“Vamos,
me responda! Pretende ficar aí o dia todo, covarde?”
Talvez
fosse a melhor solução. Ali, Dylan escutava os pássaros, o assovio das aves que
se amontoavam nas árvores. Ali, escutava o burburinho sobre sua fraqueza, as
risadas das garotas porcas que admiravam aqueles atos, os suspiros
inconsequentes de seus companheiros temerosos. Ali, pensava em sua vida, não
recebia socos ou chutes por isso. O clima quente se acomodava no chão gélido, a
brisa atingia seu rosto, o brilho do sol incomodava os olhos, mesmo que
fechados. Poderia ficar ali por muito tempo, fingindo que nada daquilo estava
acontecendo.
Esta
era sua especialidade: fingir que nada acontecia.
Sentiu
um chute no estômago, tossiu.
“Levante,
seu idiota.”
Julian
empurrou o corpo de Dylan com os pés, zombando. Seus companheiros riam. Muita
gente ria, mas isso não importava. Dylan se deixou levar, fingiu-se
inconsciente. Era bom em fingir. Era bom em ignorar. Decidiu que ignoraria a
voz de Julian até que aquela situação terminasse.
“Eu
posso te ajudar.”
Aquela
não era a voz de Julian.
“Não
fale.” A voz continuou. “Vão pensar que você endoideceu. Apenas me escute: eu
posso te ajudar.”
De
quem era aquela voz estranha? Parecia vir da mente de Dylan, como um amigo
imaginário, mas ele tinha seus onze anos, não acreditava mais nessas coisas.
Sentia-se tomado por uma sensação diferente, um calor peculiar. Abriu os olhos,
encontrou Julian se gabando por uma nova vitória, um círculo de pessoas o
circundava. Apontavam, comentavam, riam. Logo o diretor estaria ali, ou algum
professor, tudo estaria acabado. Só precisava esperar e...
“Vai
realmente deixar isso acontecer?” A voz era intensa, vinha de lugar nenhum, ao
mesmo tempo em que vinha de todos os lugares. “Sabe que, se não reagir, ele
voltará a incomodá-lo, não sabe? Você tem esperado essas coisas passarem há
muito tempo, Dylan, elas sempre voltam. Vai deixar que isso aconteça durante
toda sua vida?”
Não
era seu maior desejo, mas o que poderia fazer? Era fraco, era medroso, não
sabia lutar ou se defender. Julian era um brigão, Dylan era um estudioso, e a
vida tende a valorizar os atributos mais utilizados por cada um. Julian
utilizava os músculos, Dylan, seu cérebro, e assim as lutas tornavam-se fáceis
para o valentão. O que aquela voz estranha queria que ele fizesse? Levantasse e
enfrentasse aquele monstro que tanto o amedrontava?
“Exatamente
isso.”
Ela
falou, como se respondesse às suas perguntas. Como se fosse capaz de escutar
seus pensamentos.
“E
sou, Dylan. Posso escutar cada pensamento seu. Posso conversar contigo, com sua
mente, escutar e responder. Somos amigos, Dylan, e poderemos ser muito mais se
assim você desejar.”
O
que estava acontecendo? O que era aquela voz? Dylan estava confuso, sentia-se
mal. Acima dele, Julian apontava o dedo em seu rosto, humilhava-o, mas Dylan
não o escutava. Estava o ignorando, como se desligasse por completo seus
sentidos para com aquela pessoa. Mesmo seus golpes pareciam não doer, ainda que
fossem um incômodo horas mais tarde.
“Só
preciso que você me diga, Dylan, que você pense
que quer me ajuda. Se decidir assim, farei o possível para que você se mostre
capaz, e tenho certeza que conseguirá. Você é forte, Dylan, em espírito. Isso é
muito mais importante do que os braços largos deste moleque imprestável. Você
sabe disso, sabe o que é importante para sua vida. Sabe que ele não tem nada de
bom, que é uma caixa vazia, um aglomerado de carne incapaz de pensar. Sabe que
tem de reagir, ou isso nunca vai acabar. Que seja agora.”
Os
pássaros pararam de silvar, o burburinho sumiu. Por um momento, Dylan deixou de
sentir mesmo os raios de sol. Era como se ele estivesse concentrado naquela
voz, naquele companheiro, escutasse apenas ele.
“Não
está me escutando?!” Julian gritou em sua cara, sua saliva encharcou as
bochechas de Dylan.
Os
olhos estavam abertos, mas não viam o garoto que o ameaçava. Viam além. Uma
árvore distante tomada por pássaros e flores e frutos. E olhares.
“O
que você quer, Dylan?”
Queria
ser forte. Queria reagir. Queria ser corajoso para enfrentar aquele
brutamontes, para derrubá-lo com apenas um soco, em troca de todos aqueles que levou
durante anos de sua vida escolar. Retribuir toda aquela humilhação, descontar a
raiva que reprimiu durante muito tempo.
Precisava
de ajuda.
“Confie
em mim, Dylan, você tem que confiar em mim. Agora, você vai se levantar, vai
empurrá-lo, vai socá-lo como nunca fez a ninguém. Eu estou contigo, estou do
seu lado. Você vai conseguir. Tenho certeza de que pode fazer isso.”
E
podia. Limpou o rosto umedecido pela baba asquerosa de Julian, se levantou. O
valentão se preparava para ir embora, virou-se para ele, achou graça. Largou a
mochila nas mãos de um de seus companheiros, abriu um sorriso largo e
malicioso.
“Resolveu
apanhar mais, Dylan?” Abria os braços para seu público, era aplaudido. Dylan
era vaiado, garotas gritavam ofensas, pediam para que ele fosse socado até a
morte. O mesmo povo nojento de sempre.
“Não.”
Dylan
respondeu, e se surpreendeu por isso. Nunca falara com Julian, nunca sequer
ousara pedir para que ele parasse. Agora, falou. A voz trespassou seus lábios
com rebeldia, fora de controle. Estava confiante, confiante demais. Pensou, por um momento, se
aquela voz em sua mente era real, se aqueles olhares que vira na árvore não
eram alucinações. Era possível, após tantas pancadas, que ele estivesse vendo
coisas. Torceu para que fosse real. Torceu para que acertasse seu soco, e que
tudo desse certo.
Fingiu
estar bem. Era ótimo em fingir.
“Não
quer apanhar mais?”
“Não
vou. Resolvi outra coisa.”
“E
o que você resolveu, amiguinho?”
Firmou
os pés, cerrou os punhos. Nunca fizera aquilo antes. Respirou.
“Resolvi
que é a sua vez de cair.”
Todos
se espantaram. Os gritos pararam. Aquela turba de crianças arregalou os olhos,
os amigos de Dylan estavam boquiabertos. Não hesitou. Queria correr, queria
fugir, mas não o faria. Fingiu que estava bem, enganou a si mesmo. Manteve-se
impassível.
Julian
franziu o cenho.
“Acho
que você errou as palavras, garotinha.”
Correu
na direção de Dylan, mas estava lento. Aos olhos de Dylan, movia-se como uma
lesma, cada passo era vagaroso e desastrado. Em um segundo, Dylan enxergou
todas as possibilidades, os alvos, as partes do corpo em que poderia atingi-lo.
Foi uma sensação estranha, mas Dylan pôde ver toda a anatomia de Julian por um
instante, e então decidir o que deveria alvejar.
Escolheu
o maxilar.
O
tempo voltou a correr, Julian acelerou. Dylan não foi surpreendido. Sabia
exatamente como ele se moveria. Esperou, esquivou-se de seu golpe, admirou a
expressão bizarra de surpresa que assolou aquele que tanto se aproveitara de
sua fraqueza. Não era mais fraco. Sentiu-se animalesco, sentiu-se poderoso.
Dentro de si, um urso urrava, faminto. Deixou que a fera o dominasse,
controlasse seu punho, a curva foi perfeita. Sentiu seus dedos estalarem em
contato com o rosto de Julian, um osso se partiu. Não era dele.
O
valentão tombou, rolou para trás, gritava. A roda se abriu, surgiram
professores, a inspetora de alunos correu até Julian. Dois professores
seguraram Dylan, mas ele não se debatia. Apenas assistia. Tinha um sorrido
prazeroso no rosto.
“O
que aconteceu?”
Era
o diretor, sempre preocupado com seus alunos, ainda que não pudesse resolver
muitas coisas. A inspetora, estagiária de enfermagem, examinou o garoto que
agonizava no chão. Seu sangue empoçava o chão, o rosto estava encharcado de
vermelho.
“Ele
está machucado.” Ela o tirou do chão com ajuda do professor de educação física.
“O maxilar parece quebrado. Temos que levá-lo a um hospital!”
O
diretor se espantou, correu para junto do aluno ferido, colocou-o em seu carro
particular. Os professores que seguravam Dylan se ajoelharam próximos ao
garoto, os demais dispersaram a turba de observadores, todos chocados com a
situação.
“O
que você fez?”
Dylan
sequer soube dizer quem fez aquela pergunta. Não deveria ter uma resposta
preparada, nunca respondera a um professor. Ali, entretanto, havia uma.
“Não
fiz nada, professor. Apenas devolvi o que ele me fez todos esses anos. De uma
só vez.”
Agradeceu
à voz, mas ela não o respondeu.
Nunca
mais a ouviu.
***
Até
então.
Dylan
cresceu. Vários anos se passaram, e o garoto se tornou um homem. Não se tornou
militar, como os pais queriam. Seria obrigado, mas ambos morreram num acidente
de seus serviços, uma experiência traumatizante por um lado, mas gratificante
por outro. Sem a pressão dos parentes, Dylan pôde escolher seu caminho, o rumo
que deveria trilhar em sua vida. Malhou, ganhou vigor, resistência, força.
Abandonou os estudos, mas não o cérebro. Aquele soco de sua infância o marcara
para sempre. Gostou da sensação.
“Você
está pronto para a luta de hoje?”
Escolhera
as lutas como profissão.
Aquele
que falava com ele era o velho Victor, seu treinador. Victor esteve presente
durante quase toda a vida de Dylan, o auxiliando com treinos, com dietas, com a
saúde e o vigor. Era como um pai, diferente dos escravos de Elizei que viveram
na mesma casa do garoto. Juntos, nunca perderam uma luta. Dylan era talentoso,
tinha vontade, garra, almejava a vitória. Victor trabalhava duro, insistia,
apoiava. Eram um grupo, e sempre venciam.
“Estou
pronto para todas as lutas.”
“Gosto
da sua determinação.”
O
velho se sentou ao lado de Dylan, que relaxava. Após um banho veloz, restavam
ainda algumas horas antes daquele confronto importante. Dylan iniciou seu
treinamento aos quatorze anos, esforçou-se como ninguém. Oito anos mais tarde,
aos vinte e dois, alcançava sua oportunidade de ouro. Naquele ano, o campeonato
mundial fora levado à sua cidade-nação, o que garantiu a ele uma vaga de
imediato. Lutara, derrubando um a um seus oponentes, era um recordista. Aquela
seria sua última luta. Se vencesse, seria considerado o melhor lutador de Armor Boxing do mundo. Não perderia, de modo algum.
“É
uma herança sua, mestre.”
Victor
riu alto.
“Ora,
não me chame de mestre, seu garoto insolente! Não te ensine metade do que sabe.
Você tem talento, não podemos negar. Resta saber se tem força para derrotar o
oponente de hoje?”
“Acha
mesmo que eu vou perder? Rachel estará aí, Victor. Não posso levar nem mesmo um
soco hoje.”
Rachel
era a namorada de Dylan, sua prometida. Não gostava de suas lutas, mas apoiava
suas escolhas. Ainda assim, nunca assistia nenhuma das apresentações, pois
odiava ver o namorado ser esmurrado, mesmo que vitorioso. Já era ruim ter de
ajudá-lo a se medicar depois. Aquela luta, porém, era diferente. Era especial,
única, a maior chance da carreira de Dylan. Rachel relutou, mas concordou em
assistir. Estaria lá, numa das principais cadeiras, bem próxima ao ringue.
Torceria por Dylan, vibraria com seus golpes, com sua vitória.
“Vai
pedi-la em casamento após a luta?”
Dylan
corou.
“É
o plano. Por isso não posso levar nenhum soco. Seria estranho um pedido de
casamento feito por um cara com o rosto inchado.”
“Não
fique tão confiante, Dylan. Seu oponente não é nenhum homem milagroso, mas está
disputando o mesmo título que você. Pode não ter renome, mas tem vontade, e
deseja tanto quanto você, senão mais, a vitória.”
“Eu
sei, eu sei, pode ficar tranquilo, Victor. Não vou me atirar de guarda aberta
em cima daquele cara. Não vou mentir, estou nervoso.”
“Está
com medo?”
“Fala
sério, jamais! Levar alguns golpes não é problema para mim, nunca foi. Não vou
cair esta noite, mestre, pode ter certeza. Fez alguma aposta hoje?”
“Preferi
ficar longe dos apostadores. Sabe, para dar sorte.”
“Não
gosto de superstições.”
“Nem
eu.”
Riram
juntos.
“Boa
sorte.”
O
treinador se levantou, preparou-se para partir.
“Ei,
Victor.”
“Pois
não?”
“Obrigado
por tudo. Sinto que tenho uma fera dentro de mim, pronta para derrotar qualquer
um que me desafiar. E devo isto a você, cara.”
Victor
acenou, sem se virar.
“Tome
cuidado para esta mesma fera não te devorar, Dylan. Esta já seria uma boa
recompensa.” Parou, voltando-se com um sorriso. “E vença hoje, maldito, ou vou
te jogar num rio esta madrugada.”
***
Ao
longe, a noite surgia soturna, engolindo a claridade do fim de tarde. Os
prédios de Ylenia se camuflavam na escuridão, a lua minguante não brilhava com
fulgor. Luzes artificiais se estendiam por todas as ruas, espalhadas em postes
e outdoors, faziam seguro o caminho dos automóveis, muitos destinados ao mesmo
lugar. O Estádio Central de Ylenia seria palco de um espetáculo grandioso, e a
população da cidade, famosa por honrar sua simbologia e seus costumes, não
deixaria de apoiar aquele jovem lutador.
Havia
aqueles, entretanto, com interesses atípicos.
Uma
mulher sedutora aguardava, pacientemente, no terraço de um arranha-céu. Usava
um óculos estreito e escuro, similar a seu cabelo escorrido. As vestes
valorizavam os seios e as pernas, o salto alto a fazia parecer enorme. Soprava
a fumaça de um cigarro para o ar, enquanto examinava um aparelho eletrônico
peculiar com a outra mão.
“Vai
me vigiar até quando, Kilian?”
Sua
voz provocante deu lugar a um sibilar grotesco. O espaço e o tempo se rasgaram
num corte, e deste surgiu uma víbora larga e desajeitada. Desabou sobre o teto
da construção, e lá vomitou um homem de maneira nojenta. Ele se ergueu, limpou
as roupas estranhas, ajeitou as ombreiras. Tinha olhos de serpente.
“Esqueço-me
de sua percepção, Davinia.”
“E
eu de seus hábitos asquerosos. O que deseja aqui?”
“Acredito
que o mesmo que você. Também notou sua aproximação, não é?”
Davinia
praguejou.
“Não
há como negar.” Virou-se para a cidade, observando o fluxo de carros. “Está
perto, podemos sentir. Todos aqueles que já a viram uma vez podem.”
“Quem
sabe agora não teremos resultados melhores.”
“Estou
preocupada.”
“Com
o quê?”
“Com
tudo isso. Com você, com eles. Com ela.”
“Faça
como eu, entenda tudo isto como um jogo. Um simples jogo, onde o vitorioso pode
escolher o seu prêmio. Vai ver como as coisas vão parecer mais simples.”
“Nada
é simples quando mexemos com a vida de outras pessoas, Kilian. Você é nojento.”
“Sou
uma cobra, Davinia. É inevitável ser traiçoeiro.”
A
mulher deu um último trago, jogou seu cigarro para a cidade, assistiu até que
ele desaparecesse.
“Talvez
você tenha razão.”
***
A
hora se aproximava.
Os
lutadores começavam a se preparara em seus vestiários. O Armor Boxing era um
pouco diferente das modalidades tradicionais do boxe, o que o tornava um
esporte mais bruto. Ao invés das roupas desprotegidas das brigas convencionais,
os lutadores se protegiam com resistentes placas metálicas, ainda que leves.
Não eram incômodas, e cumpriam bem suas finalidades. Dispersas nas juntas e em
demais peças do corpo, lembravam a plateia dos guerreiros de épocas remotas,
medievais, o que instigava os torcedores. Cobertos daquela maneira, os
desafiantes tinham de apostar muito alto em seus golpes, pois o impacto era
muito menor do que ao se atingir o próprio corpo.
As
armaduras carregavam as cores e símbolos de cada equipe de treinamento,
geralmente honrando a cidade de origem, ou um ginásio específico. Dylan trajava
suas proteções convencionais, adornadas com o emblema de sua cidade, Ylenia, um
cavalo de ouro postado em duas patas, desbravando um vulcão em chamas. As cores
típicas da região também estavam lá, sendo vermelho mais valorizado que o
dourado.
Victor
fez os últimos ajustes na armadura de Dylan.
“Como
está se sentindo?”
“Campeão
mundial.”
“Pare
de dizer asneiras.”
“Mas
é sério! O cavalo de Ylenia vai esmagar aquela fuinha de Abigail! Vamos mostrar
a eles como um vulcão pode derreter o gelo de seus corações!”
Victor
ergueu uma das sobrancelhas.
“Brincadeira,
só estou um pouco nervoso.”
“Imaginei.
Sua noiva já está em seu assento, Dylan.”
“Você
a viu?”
“Sim,
e se me permite, ela está radiante. Não sei para quê se arrumar tanto, sabendo
que você vai sair daqui estourado.”
Riram,
mas Dylan estava trêmulo.
“Eu
não posso perder hoje, Victor.”
“E
não vai. Confio em você. Vou te deixar sozinho. Faltam alguns minutos,
aproveite para relaxar.”
Victor
se levantou, bateu contra o elmo de Dylan, apertou sua mão. Saiu, deixando o
lutador sozinho com seu nervosismo.
Dylan
ergueu os punhos à frente do rosto.
“Vamos
lá, vocês podem ser os melhores do mundo. Vamos derrotar aquele cara, mostrar
para aquela cidade quem é que manda. Sei que posso vencer, sei que posso ser o
campeão. Só preciso ganhar mais esta luta. Rachel vai se orgulhar de mim, tenho
certeza!”
Fechou
os olhos, se concentrou. A mente girava, distante daquele momento, daquele
lugar.
Tinha
um mau pressentimento.
Os
alto-falantes estrondaram com a voz do juiz.
“Boa
noite, torcedores! Sejam bem-vindos ao Estádio Central de Ylenia, onde teremos
a luta mais aguardada do Armor Boxing deste ano! O povo de Abigail vibra,
juntamente da torcida de Ylenia, quando dois de seus maiores guerreiros pisam
no mesmo ringue, em lados opostos! Vamos conhecê-los?”
Dylan
suspirou.
Bateu
as luvas e se levantou.
***
Ylenia
tinha uma construção fenomenal que interligava duas áreas da cidade, o Subúrbio
e a Terra da Realeza. Essa ponte gloriosa era chamada de Arco de Gael, em
homenagem a um nobre trabalhador de tempos remotos, responsável pela
arquitetura e pelo planejamento desta obra magnífica.
Naquela
noite, havia poucos carros passando pela extensão da ponte, o que a deixava
sombria. Alguns casais de namorados se sentavam nos bancos de madeira
espalhados pelas amuradas, de onde observavam as águas tranquilas da Praia de
Lluvia, o que era um hábito comum.
Estranhas
eram as garotas que se postavam acima da ponte. Não havia um meio de chegar
àquele lugar. Não havia escadarias, elevadores, cabos de aço, nada. Ninguém
alcançaria àquela altura, exceto pilotos de helicópteros ou suicidas. Naquela
noite, entretanto, havia duas garotas. Lembravam adolescentes, inexpressivas e
belas, usando roupas garbosas com adornos de penas e de aço. Uma tinha cabelo
azulado, manhoso ante a presença da lua. A outra tinha fios avermelhados,
dividindo espaço com mechas rosadas. Exceto por este detalhe, eram idênticas.
“Está
ouvindo, Luna?”
A
garota de cabelos azuis assentiu.
“Mais
que ouvindo, Coral. Posso sentir a Seiren. É tão forte quanto na Malícia.”
“Mas
é diferente.”
“Certamente.”
“É
algo bom.”
“Será
mesmo?”
“Parece,
ao menos. Diferente da Malícia, esta Seiren não parece capaz de matar. O que
acontecerá dessa vez, irmã?”
“Não
sei lhe responder, Coral, mas torço para que a história seja diferente. Aquelas
pessoas já sentiram também, tenho certeza. Temos que tomar cuidado. Logo os
Uberein começarão a se mover. Teremos mais Vongeist envolvidos desta vez. Só
nos resta torcer para que o curso das ações leve a um resultado diferente do
passado.”
A
lua minguante estava fosca, brilhava sem forças no céu sombrio. Então, de
súbito, irradiou.
“Está
começando.”
***
Dylan
se encostou ao canto do ringue. Do outro lado, seu oponente vestia a armadura cinzenta
e azulada de Abigail, representando a fuinha na neve que simbolizava a cidade-nação.
Lançou um último olhar à plateia, encontrou Rachel, seu sorriso, seus olhos
preocupados. Sentiu-se forte.
“Preparados?”
O
juiz postou-se ao centro do ringue, encostou as mãos nas luvas de cada lutador.
Sussurrou:
“Sabem
as regras, meus caros, não queremos uma luta marcada negativamente. São novos,
e esta é a oportunidade para que se tornem famosos, campeões mundiais. Honrem
esta noite, qualquer que seja o resultado.”
Ambos
assentiram.
“Cumprimentem-se.”
Obedeceram,
trocaram acenos, os olhos mostravam a vontade de cada um. O juiz se afastou e
soou o gongo, dando início àquela luta tão esperada.
Finalmente
havia começado.
Victor
sentou-se ao lado de Rachel, que estava apreensiva.
“Acha
que ele pode vencer, Victor?”
Rachel
era uma garota bonita, pronta para se tornar uma linda mulher. Sua preocupação
retratava o amor incondicional que sentia por Dylan, o que encantou o
treinador. Seu pupilo era um jovem de sorte, tinha de admitir.
“Estou
certo de que Dylan será o campeão esta noite, Rachel. Mas temos que fazer nosso
papel e torcer, sabe? Ou as pessoas vão pensar que foi uma armação.”
Rachel
sorriu, e então acompanhou o treinador com seus gritos e sua empolgação.
Dylan
se esquivou de um golpe veloz, estudou os movimentos de seu oponente. Sua vida
se resumia a nocautes estratégicos, golpes colocados de maneira talentosa, como
se ele sempre soubesse qual o próximo passo de seu adversário. Na realidade,
Dylan sempre sabia. Desde aquele dia em sua infância, quando uma voz misteriosa
ofereceu a possibilidade de se vingar do valentão que tanto o humilhara, Dylan
tinha olhos precisos. Estudava seu oponente, e o via em câmera lenta,
entendendo assim cada movimento, precipitando, preparando sua defesa e seu
contra-ataque com facilidade. Nunca contou isso a seu treinador, pois ele
jamais acreditaria. Usava aquele dom a seu favor, o que sempre era bem-vindo,
assim como seria naquele momento.
Sabendo
de seu talento, Dylan sabia que sempre venceria. Ninguém era capaz de lutar
contra aquele poder.
O
lutador de Abigail golpeava, tinham um bom trabalho de pernas, movia-se com
agilidade, socava com maestria. Não acertava. Dylan girou o corpo, atingiu-o no
estômago, viu-o recuar incrédulo. Um novo golpe, um soco leve e delicado,
apenas para provocar, para deixar clara a diferença. Atingiu o nariz de seu
adversário, tonteou-o, viu-o se enfurecer pelo resultado iminente. Desesperado,
o lutador avançou sobre Dylan, golpeou como uma criança apavorada. O treinador
gritava seu nome, ele não escutava.
Dylan
preparou o golpe final.
***
Lá
fora, a lua chorou.
Uma
lágrima escorreu do satélite brilhoso, carregada de todo seu brilho. A lua
minguante voltou a seu estado fosco, e a gotícula de sua imensidão cruzou o
céu, como um relâmpago, silvou de maneira aguda e estridente.
Luna
e Coral saltaram. Ao longe, Davinia e Kilian se protegeram. Muitos outros que
assistiam também se esconderam, pois sabiam o que aconteceria a seguir.
A
lágrima da lua ganhou velocidade, caiu de encontro ao chão. Vivia.
Ylenia
sofreu.
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