XXII
Uma
linda criança de cabelos negros estava postada diante de um espelho.
Seu
reflexo, entretanto, não era nada comum. Era grotesco, refletindo a desgraça de
sua existência corrompida por vermes, forçando-a a entender sua verdadeira
faceta, sentir o odor nauseante que desbravava as fronteiras de seu corpo
monstruoso.
(O
que eu sou? Um monstro?)
Pensava.
Envolta numa prisão de sombras, a criatura conseguiu formular pensamentos, o
que apenas confundiu ainda mais a perturbação de sua mente. Agonizou,
imobilizada por forças invisíveis, sem que pudesse evitar o contato visual com
aquele terror de sua realidade.
(Eu
não quero ver isso! Eu quero fugir! Quero correr!)
A
filha do demônio tinha traços de humanidade; poucos, herdados do Sangue Azul
que era seu pai. Sabia pensar, mas nunca poderia formular uma palavra assim,
sozinha, longe da monstruosidade de seu criador. Queria fugir, desaparecer, mas
era incapaz. Não podia evitar aquela imagem, não podia aceitá-la.
(Essa
não sou eu! Mamãe disse que eu nasci para mudar o mundo! Mamãe disse que eu sou
a mais linda, que tenho que crescer e caminhar entre os homens para mostrar a
eles que suas palavras eram reais. Essa não sou eu!)
Mas
era. O espelho da verdade não sabia mentir, e não o faria mesmo que soubesse.
Naquele mundo, naquele devaneio de um artefato encantado, tudo o que se via era
real, diferente do que se mostrava para as pessoas ao seu redor. Mesmo a filha
do demônio fora enganada por uma farsa, uma atuação de beleza e admiração,
enquanto, na verdade, ela nascera para a destruição, como um monstro.
Ali,
naquele mundo, encontrava o castigo da escuridão, contemplada com o pavor de
seu reflexo para todo o sempre.
(Eu
não quero ver isso! Não quero ver mais essa imagem! Não quero!)
Mas,
ao redor, restava apenas a escuridão. E o reflexo do espelho.
(Onde
está a luz?!)
Então,
fez-se a luz.
Cintilante
e repentina, surgiu no falso céu de penumbra, brilhando levemente nos olhos
infernais daquela criatura. Rasgou a escuridão como se rasga um papel, movida
por uma força inesperada, fabulosa.
(Essa
é a luz?)
Admirou-a,
mas estava enganada. Como os humanos, mentia para si mesma, apenas para
confortar o desespero da situação.
Aquela
não era a luz.
Era
a lâmina de uma foice.
Do
outro lado da prisão de sombras, Trevor empunhava sua arma de ceifador. Não
havia nada para ser visto naquele lugar: aquele homem já conhecia a si mesmo, e
isso não era um problema. Assim, usava sua força retirada das paisagens
fantasistas do espelho da verdade, manipulando aquele artefato enquanto
alvejava a garota que herdara parte de seu sangue e de sua humanidade.
Atrás
de si, Lúcifer.
Estava
em sua forma real, um anjo assexuado, magricela e atraente. Exibia nas costas
um quarteto de asas plumadas e enegrecidas, como uma ave negra carregando um
agouro de morte. Em seus olhos, todas as torturas do mundo eram refletidas, e
mesmo o espelho da verdade não tinha forças para suportar tal visão.
O
mundo ao seu redor trincava como vidro.
“O
que pretende fazer, ceifador? Quer me enfrentar? Ousa me desafiar aqui, onde
possui os seus poderes inúteis?!”
Trevor
deu de ombros, sem cessar os golpes na direção daquela que o chamava de pai.
“Escute-me,
maldito!”
Atingido
por um impacto sem forma e sem som, Trevor voejou pelo ar denso, tombando
metros mais longe com um estrondo similar ao de um trovão. Recompôs-se, mas lá
estava o diabo, com garras e presas e espinhos por todo o corpo. Emanava uma
aura sombria e fétida, que logo se misturava ao breu daquele cenário
apocalíptico.
Trevor
perdera o fôlego com apenas um sopro daquele ser.
“Cale
a sua boca.”
“Vocês
são sempre iguais, não é? Sempre os mesmos erros, sempre a mesma insolência, as
mesmas atitudes irresponsáveis. Por que não pensar em seus atos, Trevor? Você é
o pai do emissário do apocalipse! Deveria se orgulhar!”
A
foice girou veloz, mas Lúcifer previra aquele movimento horas atrás,
esquivando-se com uma facilidade infantil. Outro golpe, mas a lâmina cravou-se
ao solo errôneo após um segundo erro impreciso.
“Eu
não sou o pai desta criatura, demônio! Cometi um erro, e estou aqui para
corrigir o que fiz!”
“Pouco
me importa o que você fez! Minha filha precisa de sua essência, pois você a
assassinou a sangue frio! Que tipo de pai é você, ceifador? Como pôde negar
todo o amor que sentiu por mim?”
“Eu
nunca o amei, seu monstro!”
“Amou,
Trevor, amou quando eu tinha seios, curvas e uma vagina para você foder, você
amou sim!”
“Você
me enganou!”
Um
chute surgiu sem aviso, esmagando o estômago do doutor Kraepelin como uma fruta
apodrecida. Trevor rolou para longe, parando novamente nos pés descalços
daquele anjo caído, arfando e cuspindo sangue.
“Você
se enganou, por ser humano. Mentiu
para si mesmo, fingiu ser feliz. O grande culpado de tudo isso é você, Trevor.”
Levantou-se,
apoiando o cabo da foice para recuperar o equilíbrio. Tentou golpear, falhou.
“E
continua se enganando. Quando pretende aceitar a verdade? Você não é um herói,
ceifador. Você não é um guerreiro de Deus. Você é apenas um homem tolo, de
princípios ainda mais tolos.”
“Não
quero ser um herói, diabo.”
“O
que você quer, senão isso? Está tentando me impedir, assassinou sua própria
filha para isso. Por que não consegue aceitar o fim do mundo, vendo que muitos
dos seus estão rezando para que ele chegue de uma vez?”
“Não
quero salvar nada, demônio, muito menos proteger esse mundo emporcalhado. Não
me importo com os outros, nem mesmo com a minha própria vida. Mas não posso
aceitar que seja eu o responsável por essa atrocidade. Não sou o pai dessa coisa que clama meu nome, e não
descansarei em minha cama enquanto essa criatura continuar a respirar.”
Lúcifer
surgiu ante a defesa falha de Trevor, atirando-o numa distância incontável.
“Se
hoje ela não respira, a culpa é sua.”
O
ceifador se reergueu, o supercílio estava cortado. Sangue escorria em seu rosto
e em seu torso, manchando os trapos que ainda cobriam seu corpo ferido. Apontou
a foice na direção do diabo, a lâmina oscilou.
“Este
é meu devaneio, Lúcifer. Daqui, esta criatura não mais sairá.”
“Não
seja tolo, mortal. Pretende suportar todos os pesadelos da coexistência com a
filha do demônio?”
“É
um erro meu, e assim deverá ser tratado. Aceito minha punição eterna, anjo
negro, se assim puder resolver meus assuntos com o monstro que você criou.
Agora, resta resolver os meus assuntos com você.”
Sem
hesitar, Trevor se atirou na direção de Lúcifer. Atrás de si, o solo explodia
na liberdade da cria, do emissário do apocalipse, da filha do demônio.
A
sua filha.
“Vou
estripá-lo, Trevor. Vai sofrer como homem algum sofreu um dia.”
“Que
assim seja.”
Então
saltou sobre Lúcifer, encontrando suas garras e presas com o estômago
desprotegido, sentindo a pele, a carne e os órgãos serem perfurados por mãos
tão afiadas quanto espadas. Respirou fundo, reuniu forças e, selando o diabo a
seu próprio corpo, cravou sua foice em ambos os torsos, trespassando-os sem
dificuldade.
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