Trazendo agora mais um capítulo da Light Novel Desejos de Juno, prosseguindo com a terceira LN do blog! Lembrando que os atos de Desejos de Juno são bem maiores que os de costume, portanto não se assustem com as postagens imensas. Espero que gostem, e não deixem de comentar.
Reiseziel
“Onde eu estou?”
Dylan
olhou ao redor, tudo era branco e limpo. Estava sozinho no nada, no vazio, sem
som ou cheiro ou cor.
Havia
uma flor.
Podia
jurar que ela não estava ali alguns segundos atrás, mas que diferença faria?
Aproximou-se, ajoelhou-se perante ela, sentiu sua fragrância. Tocou-a, tirou-a
do chão, acariciou-a com os dedos.
“Assim
são os homens, não é?”
A
voz vinha do nada, assim como de todos os lugares. Era familiar mas, naquele
momento, Dylan não conseguiu definir suas recordações.
“Quem
está aí?”
“Por
vezes, sequer admiram algo, mas destroem qualquer coisa para que possam
continuar a viver ou, ao menos, a sentir-se vivos. De que lhe adiantou privar
esta flor de sua vida, Dylan? Isto fez de você mais forte? Deu-lhe esperanças
de uma nova vida?”
A
flor em suas mãos murchou até desaparecer.
“Onde
eu estou?”
“Este
lugar não tem um nome. Acredito que sequer possamos chamá-lo de lugar. Não existe, nunca existiu, nunca
existirá. Mas você não está aqui, assim como eu não estou. O que vaga aqui é
seu espírito, unido à minha força. Você está numa cama de hospital,
sobrevivendo.”
“Do
que está falando?”
“De
assuntos sem importância, obviamente. Temos algo a tratar. Todo o restante é
irrelevante. Lembra-se de mim, Dylan?”
Talvez
não se lembrasse, mas em sua última luta, se pegou pensando naquele dia. Aquele
dia de seu passado em que enfrentara Julian, o valentão que sempre o incomodou
na escola, em que abusou de uma força que não era sua para mostrar-se poderoso,
para amedrontar aquele que sempre o amedrontou. Sabia que aquela voz era
familiar, ainda que, num primeiro momento, não tivesse sido capaz de se
recordar. Era ela, a voz que oferecera poder, que oferecera vingança. A voz que
o ajudou na infância, que o fez despertar um dom que usara durante toda sua
vida.
“Sim,
eu me lembro. Mas não sei se há algo para ser lembrado. Você existe,
realmente?”
Escutou
uma risada.
“Eu
existo, realmente. Seu mundo é diferente do meu, Dylan, por isso não tenho uma
forma física. Sou incapaz de me materializar em sua realidade, pois assim são
as normas do universo. Talvez seja uma vantagem, talvez um problema. Talvez uma
qualidade, talvez um defeito. O que realmente importa é que eu existo, ainda
que você não possa me ver.”
“Eu
posso te escutar, em minha mente. Pelo que me lembre, você também pode escutar
meus pensamentos.”
O
tempo passara desde aquele dia, mas Dylan nunca se esqueceu. Provavelmente
ninguém seria capaz de esquecer uma experiência como aquela.
“Sim,
nos comunicamos através de pensamentos. Logicamente, somente você poderá me
escutar, portanto, tome cuidado. As pessoas ao seu redor podem pensar que você
está enlouquecendo.”
Dylan
sorriu.
“Eu
mesmo estou pensando isso agora.”
“O
que não é de todo incomum. Os seus tendem a fraquejar perante aquilo que
desconhecem.”
“Você
não é humano?”
“Não.”
“O
que você é, então?”
“Somos
muitas coisas e, assim, temos vários nomes. Em suma, somos conhecidos como
Uberein.”
“Uberein.”
“Exato.
Ainda assim, cada um de nós tem um nome, assim como vocês têm os seus.”
“E
qual é o seu nome?”
“Oriol.”
“É
um nome estranho.”
“Agradeço
pela cordialidade. Não estou aqui para que conversemos sobre nomes e suas peculiaridades,
Dylan. Tenho assuntos mais importantes para tratar com você.”
“Ah,
claro. Por exemplo?”
O
branco se deformou, ganhou cores, tons e formas. Era um corredor metálico,
repleto de janelas acorrentadas. Ao longe, Dylan avistou uma porta.
“Caminhe
até a porta.”
Aquilo
era estranho, mas Dylan obedeceu. Não tinha medo. Desde sua última surra, nunca
mais teve medo. Era forte, sabia se virar. Tinha um dom. Por que teria medo de
alguma coisa?
Mas
Dylan era humano, e os homens temem aquilo que desconhecem. Portanto, ainda que
seu temperamento não o permitisse enxergar, Dylan temia aquela situação, pois
não conseguia entendê-la.
Alcançou
a porta e a abriu. Era um cômodo apertado e claustrofóbico, mobiliado apenas
por uma cadeira, próxima a uma espécie de confessionário. Dylan se acomodou,
encostou-se à madeira de um balcão curto, tentou ver além, era impossível. Um
véu escuro protegia a única lacuna na madeira, como de praxe.
“Não
espera que eu me confesse, não é?”
Oriol
riu.
“Fique
tranquilo. Não admiramos religião alguma. Apenas se acomode. Vamos conversar
sobre outros assuntos.”
“Ande
logo.”
Oriol
estava lá, do outro lado. Era possível ouvi-lo respirar, sentir sua presença.
Dylan não ousou tocar no véu.
“Naquele
dia, eu lhe ofereci um dom, Dylan. Lhe ofereci um auxílio que coisa alguma no
mundo seria capaz de oferecer. A igreja, os amigos, os relacionamentos e todas
estas coisas poderosas que existem no universo, nada disso poderia lhe dar o
que eu lhe dei. Você sabe disso. Você tem um poder, Dylan, algo que poucas pessoas têm.”
“E?”
“Com
este dom que lhe presenteei, você conquistou fama e fortuna, estou certo?
Naquele momento, cheguei a acreditar que seria diferente, mas os homens são
assim. Ambiciosos, metidos a mudar o mundo. Pois bem, não me interessa o que
fez, me interessa o que fará de agora em diante.”
“Não
entendo.”
“Eu
estive lá, quando você precisou. Agora é a minha vez de pedir, Dylan. Preciso
de você.”
Dylan
ergueu as sobrancelhas.
“Tá,
tudo bem. Vamos ver se eu entendi. Você é uma voz que fala comigo desde a
infância, e que me ofereceu um poder que homem algum seria capaz de ter. Sem
que eu pedisse, vale ressaltar.”
“Eu
lhe ofereci, Dylan. Você aceitou.”
“Não
me lembro de ter pedido nada a voz alguma.”
“Mas
eu me lembro de você ter aceitado.”
E,
como uma ordem, as palavras de Oriol se tornaram lembranças, e Dylan se viu,
mediante uma dor de cabeça terrível, aceitando a ajuda oferecida pela voz,
enquanto era humilhado pelo garoto que destruíra sua infância.
As
memórias se foram. Dylan caiu de joelhos ao chão, derrubou a cadeira para trás.
“O
que foi isso?”
“Não
evite nosso principal assunto. Preciso de você.”
“O
que você quer comigo?”
“Naquele
dia, fizemos um acordo. Eu dei o que você queria, com a promessa de que, quando
chegasse a hora, você me desse o que fosse preciso. Este momento chegou.
Preciso que você lute ao meu lado, Dylan.”
“Lutar?”
Riu sem graça. “Eu luto quase todos os dias, Oriol. Quando não estou lutando,
estou treinando para as próximas batalhas. Quero ser um campeão mundial, quero ser
o melhor de todos.”
“Suas
lutas são patéticas, Dylan. Tenho certeza de que sabe que não seria nada sem
nosso acordo. Sem o poder que lhe dei, você não venceria luta alguma.”
“Como
ousa?”
“A
batalha que necessita de você é outra. Não essas lutas banais, finalizadas
quando um oponente está inconsciente. Não se decide o destino com pontuações.
Minha batalha é outra, Dylan, muito diferente do que você tem em mente.
Lutaremos por algo maior, por um objetivo. Lutaremos por nossos desejos, por
nossas vontades.”
“Eu
luto por meus desejos, Oriol. Luto por meu próprio dinheiro, pelo bem-estar de
Rachel. Vamos nos casar, sabia? Eu e ela seremos noivos após a luta desta
noite. Ela vai se casar com o campeão mundial, e então seremos muito felizes.
Talvez eu nem precise mais lutar! Por que deveria te ouvir?”
“A
situação é diferente. Você não tem escolha.”
“Não
tenho? E se eu me recusar?”
“Nós
temos um acordo, Dylan. Sua alma é minha.”
“Ah,
claro, esqueci que você é o Senhor do Inferno, me desculpe. Fala sério, você
sequer tem coragem para aparecer e...”
Por
um momento, um simples instante de segundo, o véu se moveu, soprado por uma
brisa escura e fétida. Lá, Dylan pôde ver algo existir, algo que jamais imaginou. Encontrou seus olhos, e apenas
eles foram o suficiente para assustá-lo como fariam a uma garotinha, o amarelo
fosco de suas pupilas destronando o campeão de Armor Boxing de Ylenia.
“Mas
que merda!”
“Não
sou capaz de usar minha forma em seu mundo, mas isso não quer dizer que eu não
a possua. Acredite em mim, garoto: sou real. Não sou uma simples voz lhe
oferecendo uma brincadeira. Estou apenas te lembrando do acordo feito anos
atrás. Está na hora de cumprir sua parte.”
“Eu
prometi a Rachel que ficaria um tempo sem lutar. Não posso desapontá-la desse
modo.”
Oriol
suspirou.
“Você
não entende o que aconteceu, não é?”
“Do
que está falando?”
“Ainda
não entendeu o que está acontecendo com você. Aquela noite já terminou, Dylan.
A batalha já começou. Você não está num ringue, não está enfrentando o campeão
de Abigail. Você está num hospital, em coma, prestes a morrer. Os médicos não
sabem mais o que fazer, seu estado
parece irrecuperável.”
Dylan
zombou.
“Quer
mesmo que eu acredite nesta baboseira toda? Eu devo estar ficando louco. Você
não existe, Oriol! Como eu pude criar todo esse diálogo em minha mente, nunca
fui bom em inventar nada! Até mesmo dei um nome a este personagem de minhas
alucinações! Talvez seja hora de parar de lutar, realmente. Acho que já levei
golpes demais na cabeça.”
“Não
acredita em mim, não é? Farei do seu jeito. Vou te dar a segunda chance que
precisa. Um aviso: você vai sofrer ao despertar. Os sentimentos de um homem são
fáceis de ruir. Supere. Sempre há uma solução onde não conseguimos enxergar.”
Dylan
deu as costas a Oriol, preparado para deixar o cômodo.
“Como
eu faço para sair daqui?”
“Pense
em minhas palavras, garoto. Você terá de lutar, de uma maneira ou de outra. Sua
alma me pertence, temos um acordo. Isto, entretanto, pode ser vantajoso para
você. Abra seus olhos, retorne à sua vida. Conversaremos outra vez, em seu
mundo.”
E
tudo ficou branco novamente, então escureceu, sem aviso. Dylan viu seu corpo
ser tragado pelas sombras, até que nada mais restasse de sua armadura ou sua
pele.
***
Allana
sentiu o corpo todo dolorido.
Coçou
os olhos, mas não soube definir onde estava. Era noite, mas provavelmente não a
mesma noite na qual fechara os olhos. Quanto tempo havia se passado? Onde ela
estava?
Levantou-se,
imaginando estar deitada em sua cama, mas era rígido e desconfortável. Livre da
visão turva, Allana viu o céu, notou que estava próximo. Olhou à frente, viu o
Mar Celeste, o mesmo mar azul que separava Ylenia de outras cidades-nação, como
Mireia e Naara. Olhou para baixo, e só então percebeu a altura a que estava.
Gritou.
“Ninguém
vai te escutar aqui, Allana.”
A
voz. Aquela mesma voz de tantos anos atrás. Estava lá, atrás de seus cabelos
castanhos, dentro de sua mente. Era familiar.
“Onde
eu estou?”
“Acima
da Estátua de Adriel.”
Era
uma larga construção humanoide em homenagem ao herói de Ylenia que, muito tempo
antes, enfrentou os perigos da guerra em nome da cidade-nação.
“Como
eu vim parar aqui?”
“Isto
não é importante. Se estivesse no chão no momento da catástrofe, seria pior.”
“Catástrofe?”
“Não
consegue perceber, Allana?”
Conseguiu.
Na noite anterior, vira a lua chorar. Sentiu uma sensação estranha, mas
acreditou se tratar de um pesadelo, uma brincadeira de seu sono. Estava errada.
Era real, e a lágrima da lua explodiu contra Ylenia, demarcando grande parte da
cidade com um abismo.
“O
que aconteceu aqui?!”
Estava
surpresa, tudo parecia irreal. O Estádio Central de Ylenia, onde tantas pessoas
estavam concentradas para assistir à grande final do Armor Boxing,
transformara-se em ruínas. Grande parte dos prédios que o circundavam tornaram-se
nada além de poeira, destroços e lembranças.
“Começou.”
“Começou?”
“Sim.
Está na hora de lutarmos. Agora, você tem a chance de consertar tudo.”
Allana
pareceu surpresa.
“Juno
voltou, Liam?”
“Ela
está entre nós outra vez. É a nossa chance, Allana. É a sua chance de reparar
os erros.”
“Não
somos os únicos, não é?”
“Há
muitos, dessa vez, posso senti-los. Estão espalhados, despertando, tornando-se
Vongeist. Temos de completar nosso acordo, irmãzinha.
Temos de fazer nosso Reiseziel.”
“Não
perca mais tempo, Liam, comece agora mesmo! Não podemos ficar para trás de modo
algum!”
Liam
sorriu.
“Adoro
sua vontade, irmãzinha.”
***
Dylan
abriu os olhos.
Havia
máquinas em toda parte, assim como aparelhos de respiração presos ao seu rosto.
Algo
apitou.
“Ele
despertou!”
Os
médicos anunciaram assim que as máquinas alertaram sobre o retorno de Dylan.
Judith, a tia que o acolhera após a morte dos pais, estava lá, ao seu lado,
sempre prestativa. Dylan sentiu-se feliz ao vê-la, ainda que se sentisse um
fardo para a velha. Não bastasse ver seu próprio marido morrer em um hospital,
Judith agora tinha de acompanhá-lo em coma, o que, provavelmente, era uma
grande tortura para ela.
“Tia.”
“Não
fale! Você acabou de se recuperar, precisa de repouso. Oh meu deus, Dylan, eu
estava tão preocupada! Os médicos já estavam desistindo, ninguém conseguia
apontar o que tinha acontecido a você!”
“Obrigado
pela companhia, tia, você é muito importante.”
“Não
me agradeça, eu simplesmente precisava estar aqui, ao seu lado, até que
estivesse completamente recuperado.”
“Tia,
o que aconteceu?” Dylan viu os olhos da mulher estreitarem, tomado por
lágrimas. “Eu preciso saber o que aconteceu!” Olhou ao redor, procurou por
Rachel, ela não estava lá. Nem mesmo Victor estava presente.
“Dylan,
eu quero que saiba que tem de ser forte. Você precisa suportar o que eu tenho
para dizer, por mais duro que seja. Acha que está pronto para escutar a
resposta de suas perguntas, meu filho?”
Os
olhos de Dylan marejaram, mas ele fez que sim.
“O
Estádio Central de Ylenia desmoronou durante sua luta, querido. Você estava
vencendo, eu acompanhei na televisão, você seria o campeão!”
“Tia,
onde estão Rachel e Victor?”
Judith
engoliu em seco.
“Pouca
gente sobreviveu, Dylan. Você não está sozinho, eu sempre estarei aqui! Você
vai se recuperar, farei o meu possível, vai voltar aos ringues em breve,
mas...”
“Eles
estão mortos.”
Judith
soluçou.
“Sim,
Dylan. Rachel e Victor estão mortos.”
Não
era uma pergunta, mas ouvir aquilo de sua tia confirmou o martírio que espremia
o coração de Dylan. Em três palavras, o jovem viu desmoronar toda a sua vida,
seus sonhos, sua vontade.
Rachel
estava morta, e ele sequer a pedira em casamento. Os planos desabaram, perdidos
como gotas de chuva num maremoto, a vida toda ruiu junto daquele estádio. Mesmo
Victor, o treinador que mostrara a Dylan o verdadeiro significado de força de
vontade, o mais resistente dentre os homens conhecidos pelo jovem, estava morto
agora. Sua sabedoria, seus ensinamentos, tudo fora apagado pelos destroços de
uma construção amaldiçoada.
Dylan
se deixou chorar como uma criança.
Sem
sua amada e seu mestre, era pouco mais do que um bebê.
***
Anoiteceu.
Com
a noite, vieram as sombras. Os primeiros Vongeist começavam suas caçadas, todos
em busca de um desejo impossível de se realizar.
Alguns
não eram Vongeist.
Havia
um homem caminhando nas calçadas. Arrastava os pés no cimento, sem se preocupar
com o ruído incômodo que produziam. Vestia-se num sobretudo largo, e mesmo este
parecia menor do que seu corpo, ao menos do que suas costas. Alguma coisa se
movia ali, como uma corcunda viva, um membro diferente.
Assoviava
uma música lenta.
“Será
que você poderia parar de fazer barulho?”
Era
um morador de rua, deitado sobre uma cama improvisada no papelão. O velho
cheirava a álcool, a barba e o cabelo eram desarrumados. Parecia recém-desperto
de um longo sono.
“Como
disse?”
“Disse
se você pode parar de fazer barulho, estou tentando dormir!”
“Ah,
claro. Deseja apenas dormir, não é?”
“É
sim, será que é possível?”
O
homem sorriu, malicioso.
“Claro.
Vou lhe ajudar.”
Aproximou-se
do mendigo com velocidade, agarrou-o com uma das mãos, arrastou-o para um beco
escuro entre dois prédios. Jogado a uma das paredes, o velho tentava se
levantar, ainda zonzo pela bebida. Temia pelo maltrato dos jovens, uma notícia
comumente mostrada na mídia, mas este seria o menor de seus males.
“O
que devo fazer?”
“Não
precisa ter medo, meu senhor, não vou me aproveitar de você. Só vou te ajudar
com aquilo que me pediu. Você quer dormir, não é? Quer fechar os olhos e
descansar, estou certo? Acalme-se. Vou providenciar para que feche os olhos
como nunca fez antes.”
Abrindo
os braços, o homem retirou o sobretudo, deixou que caísse ao solo. As costas
eram comuns, mas havia algo a mais. Um membro extra nascia de sua cintura,
curvando-se acima de sua cabeça de maneira nauseante, terminando em um ferrão
afiado e gosmento.
Como
um escorpião.
O
velho gritou, mas já era tarde. O ferrão trespassou sua carne e seus ossos,
despejou veneno em seu corpo até que transbordasse de sua boca. Então recuou, enrolando-se
até desaparecer novamente sob a vestimenta.
“Infelizmente,
não posso garantir que vá abri-los outra vez.”
Sorriu
de sua própria ironia.
“Você
não deveria estar perdendo tempo com esse tipo de gente, Ioritz.”
A
voz veio de cima, sem aviso, assustaria qualquer pessoa despreparada, mas
Ioritz estava sempre atento. Como um escorpião, vagaroso e destemido, sempre
preparado para o bote que traria um fim à vida de suas vítimas.
“Quanto
tempo faz, Âmbar?”
Uma
mulher de cachos dourados e vestes pomposas surgiu, como se saída de uma
parede. Suas unhas eram enormes e amareladas, assim como os caninos avantajados
de seu sorriso.
“O
suficiente. Juno está de volta.”
“Acha
que não sei?”
“Estou
apenas dividindo a felicidade.”
Riram.
“Talvez
seja possível, desta vez”, ela continuou. “Podemos conseguir. Podemos
encontrá-la. Tudo ficaria bem outra vez. Tudo ficaria perfeito.”
Ioritz
a abraçou. A cauda atrás de si se movia, excitada. Sedenta.
“Juno
será nossa, Âmbar. Ninguém poderá nos impedir.”
***
Judith
partira para sua casa, Dylan passaria outra noite no hospital. Estava se
recuperando rapidamente, logo poderia sair, mas não sem antes realizar novos
exames. Recebeu uma dose de antidepressivos e calmantes, e mesmo estes não
foram suficientes para atordoá-lo. O sofrimento era uma agulha, uma dor aguda
que sempre o despertava, por mais que o cansaço ordenasse que fechasse os
olhos. Dylan agradecia por não conseguir dormir. Tinha medo dos pesadelos que
poderiam assolá-lo.
“A
vida é uma batalha árdua, não é?”
Era
Oriol. Sem aviso, sem forma, sem bater na porta antes de entrar. Era como se
estivesse lá, desde sempre, esperando apenas que os sentimentos de Dylan se
acalmassem, que sua mente voltasse a funcionar.
“Saia
daqui.”
“Não
sairei. Vai se atirar às traças, esperando que o tempo se encarregue de
livrá-lo deste sofrimento surreal? Vai se suicidar, esgotando assim a carreira
de campeão de Ylenia, de guerreiro vitorioso, que conquistou no Armor Boxing? É
assim que pretende terminar a sua vida, Dylan?”
“Vá
se foder, Oriol. Você não existe, não é nada. Não preciso me preocupar em
responder às suas perguntas.”
“Continue
pensando que eu não existo, enquanto tenho sua alma em mãos. Você me deve um
acordo. Não há como fugir disto.”
“E
se eu me negar?”
“Sofrerá
um destino pior do que a morte.”
“Como
se me importasse com isso.”
“Sabe,
Dylan, como disse anteriormente, esta batalha é diferente daquelas que você
está acostumado. É uma luta perigosa, uma guerra de virtudes, repleta de
recompensas. Eu preciso vencer. Preciso, pois apenas assim serei livre outra
vez. Se me ajudar, entretanto, terá direito a um desejo. Pode realizar qualquer
vontade que tiver em mente.”
“De
que me adiantaria um desejo, Oriol, se não tenho Rachel ao meu lado para
desfrutar dessa recompensa?”
“Você
não entendeu o que eu quis dizer. A recompensa é ilimitada, garoto. Você pode
pedir o que quiser.”
“Não
sou um garoto, maldito.”
“É
o que vejo. Um garoto chorão e fraco, amedrontado por uma perda que pode reparar.”
“Reparar?”
“Não
está me escutando, Dylan. Você pode pedir o que quiser. Mesmo a vida de sua
amada Rachel, ou de seu mestre, ou de ambos. Pode tê-los outra vez, se vencer.”
Dylan
incendiou por dentro. Parecia tolice, nada era capaz de trazer os mortos de
volta à vida, mas algo em sua mente obrigava-o a confiar nas palavras de Oriol.
Imaginou-se junto de Rachel e de Victor, outra vez, amando-a, zombando do velho
treinador. Seria bom demais para ser verdade.
“Você
está mentindo. É impossível trazer os mortos de volta à vida.”
“Nada
é impossível para a Senhora dos Desejos.”
“Senhora
dos Desejos?”
“Juno.
O Pranto da Lua. A Senhora dos Desejos. Chame como quiser. Nós temos que
encontrá-la, Dylan, temos de vencer esta batalha! Ela pode realizar qualquer
uma de nossas vontades! Ela pode te fazer feliz novamente!”
“E
o que eu preciso fazer?”
“Você
precisa concluir nosso acordo. Transformá-lo em um Reiseziel. Tornar-se um
Vongeist. Somente assim seremos um par, poderemos caçar Juno, alcançar todas as
nossas vontades!”
Dylan
não entendia.
“O
que é você, Oriol?”
“Já
lhe respondi esta pergunta. Sou um Uberein. Agora, vamos concluir nosso
Reiseziel.”
“O
que vai acontecer comigo depois disso?”
“Você
vai ficar forte. Vai ser capaz de lutar, de enfrentar o que há pela frente. Vai
se tornar um Vongeist, um caçador da Juno.”
“Não
entendo.”
“Posso
lhe explicar essas coisas quando for preciso. Agora, você precisa apenas
concordar com o acordo, formar nosso pacto final. Com o Reiseziel, você será
capaz de enfrentar outros Vongeist, de derrotar qualquer obstáculo que nos
afaste de Juno. Vamos, Dylan, aceite minha oferta! Você pode ter Rachel outra
vez em seus braços!”
Aquela
era uma oferta tentadora. Dylan se sentiria incompleto pela eternidade sem
Rachel, e Oriol lhe oferecia uma chance de tê-la outra vez, assim como a
Victor. Parecia absurdo, mas era sua única chance. Diferente daquilo, seria
melhor morrer.
“Está
certo, Oriol. Eu aceito seu acordo. Faça o Reiseziel.”
Lá
fora, algo explodiu. Dylan sentiu a cama tremular.
“O
que foi isso?”
“Está
começando. Erga seus braços, temos que apressar as coisas!”
Dylan
obedeceu sem relutar, sentiu os músculos arderem, torturados. Algo irradiou,
entrelaçou seus dedos, percorreu a extensão de seus membros até alcançar seu
rosto, seus olhos, sua mente.
Lá
fora, algo estrondava contra as paredes do hospital.
“O
que é isso, Oriol?”
“Concentre-se
no Reiseziel!”
Dylan
obedeceu, fechou os olhos. Sentiu aquela energia circundar seu corpo,
acompanhar o fluxo de suas correntes sanguíneas, desbravar suas veias.
Sentia-se invadido, dividindo o corpo com outro ser, um segundo espírito. Era
Oriol, sabia, mas demoraria a se acostumar com aquela sensação exótica.
“Temos
um contrato, Dylan?”
O
jovem hesitou. Estrondo.
“Temos.”
As
luzes sumiram, concentraram-se nos punhos, Dylan se viu com um par de luvas de
couro, ilustradas por um escarlate sombrio.
Estrondos,
cada vez mais próximos.
“Está
feito, Dylan. Temos que sair daqui!”
“Eu
ainda não me recuperei!”
“Tente
se mover!”
Tentou,
viu que conseguia. Não havia mais dor. Estava revigorado, melhor do que
acreditou ser possível. Sentia os braços poderosos, as pernas ágeis, o corpo
preparado para a batalha.
“Estou
curado!”
“Agora
você é um Vongeist, Dylan, não é mais um humano comum!”
“Me
sinto incrível!”
“Logo
vamos descobrir o quão incrível você está. Pegue suas coisas!”
Dylan
olhou ao redor, viu a armadura de Armor Boxing de Ylenia atirada a um canto,
correu até ela. Vestiu-a despreocupado, não regulou com perfeição. Atirou as
vestes de paciente no chão, admirou suas luvas.
“O
que são essas coisas?”
“Pode
deixar as perguntas para depois? Você precisa sair daí!”
Mas
já era tarde. O estrondo estava ali, seguido por um rugido grotesco, e então
algo silvou no ar. Dylan se atirou no chão, viu as paredes e o teto
desmoronarem, rasgados por garras
enormes e prateadas. A janela deu lugar a uma lacuna cavernosa, por onde
conseguia ver quase toda a cidade de Ylenia. Ver a cidade, entretanto, era a
menor de suas preocupações.
Havia
um felino de três caudas, o dono das garras que destruíram o quarto do
hospital. Ele rugiu, poderoso, preparou um novo ataque.
“Você
tem que saltar!”
“Saltar?”
Observando
de maneira imprecisa, Dylan acreditou estar no quarto andar.
“Sim,
saltar!”
“É
impossível! Estamos numa grande altura, se eu pular daqui vou...”
“Você
é um Vongeist, Dylan, não é um humano comum! Pule!”
O
monstro rugiu, atacou outra vez. Dylan correu em sua direção, esperou por suas
garras, saltou em esquiva.
Por sorte, estava errado. Não estava no quarto
andar.
Aquele
era o décimo primeiro.
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