XVI
Trevor
abriu a porta e encontrou uma mulher de lindos traços. Era pouco mais que uma
garota, trajada no negro gótico incomum para sua região, provando seu
estrangeirismo. O cabelo vermelho despencava por sobre os ombros delicados, em
contraste com os olhos castanhos e desfocados.
“Eu
preciso de ajuda, doutor.”
E
desabou em lágrimas. Olheiras enormes marcavam seu rosto, mas ela não parecia
preocupada em escondê-las com maquiagem pesada. Estava natural, uma única
madeixa rosada lhe adornando a testa pálida, o restante de seus fios penteado
com violência para trás, deixando muitos fios embaraçados ao seu redor.
“Por
favor, entre.”
Era
a mesma casa de tantos anos mais tarde, mas ainda modesta e despreparada.
Atendia seus pacientes no que deveria ser a sala de estar, empurrando os móveis
para os cantos e deixando, ao centro, uma poltrona inclinada próxima a uma mesa
de anotações.
“Qual
o seu nome, minha jovem?”
“Evelyn.
Eu me chamo Evelyn Mathews.”
“É
um prazer, Evelyn.”
“Gostaria
de poder dizer o mesmo, doutor.”
Indicou
o assento para sua nova paciente, despreocupado se havia horário marcado ou
não. Não poderia negar ajuda a alguém naquela situação, sabia disso, e também
não era tão requisitado como nos dias atuais. Aproveitou-se da brecha em sua
agenda para acomodar aquela mulher que tanto parecia precisar de alguém que a
escutasse.
“Sinta-se
à vontade, senhorita Evelyn.”
“É
impossível, doutor. Eu não consigo ficar à vontade, nunca mais vou conseguir.
Minha vida está um caos, tudo parece ruir ao meu redor.”
“Acalme-se,
senhorita. Vamos resolver os seus problemas.”
Enquanto
Evelyn tentava se acomodar no conforto de seu assento, Trevor estudava seu corpo.
Sem interesse ou malícia, pois não havia muito o quê se admirar em sua beleza
estática, mas com razoável preocupação. Na palidez de sua tez, Trevor encontrou
diversas marcas de cortes, cicatrizes de autoflagelo que provavam tentativas de
suicídio, por vezes riscos rubros bem próximos aos pulsos.
Aquela
mulher parecia realmente perturbada.
“Me
desculpe pela ausência de uma apresentação mais educada, senhorita Evelyn. Meu
nome é...”
“Trevor
Kraepelin. Eu sei quem é o senhor, doutor. Sei que é o único que pode me
ajudar.”
“Sinto-me
lisonjeado com suas palavras.”
“Eu
preciso de ajuda. Não aguento mais ficar sem dormir, não aguento mais escutar
aquelas vozes. É um martírio, doutor, uma dor que eu não posso mais suportar!
Preciso de sua ajuda!”
“Pode
contar com todo meu apoio.”
Trevor
preparou seu bloco de anotações, ligando o gravador de áudio a seguir.
“Vai
gravar nossa conversa, doutor?”
“Apenas
caso seja necessário relembrar alguma passagem mais tarde, senhorita Evelyn. Se
desejar, posso apagar a gravação assim que você estiver melhor.”
“Não
me importo com mais nada, se quer saber. Pode gravar, filmar, faça o que
quiser. Eu só quero conseguir dormir uma noite
com tranquilidade, senhor Trevor.”
“Vamos
alcançar sua paz juntos. Que tal conversarmos sem pressa, sem atropelarmos um
ao outro? Me falou anteriormente sobre vozes, pelo que entendi. São essas vozes
que não lhe deixam dormir?”
“Sim,
elas estão na minha cabeça. Eu estou ficando louca, tenho certeza! Escuto
gritos, lamúrias e zombarias, risadas sarcásticas e um pranto tenebroso. Tudo
parece estar aqui dentro, ironizando minha loucura, tentando fugir das paredes
de minha mente. Eu não aguento mais, doutor!”
“O
que é certamente preocupante, senhorita Evelyn. O sono é fundamental para o ser
humano. Este distúrbio pode estar lhe custando caro, aumentando cada vez mais o
preço até que não lhe reste nada grandioso o suficiente para pagar tal valor.
Sua saúde depende de seu esforço, pois apenas sua dedicação poderá livrá-la de
tal sofrimento.”
Evelyn
se precipitou da cadeira, agarrando os braços de Trevor com mãos gélidas e sem
força.
“Eu
faço qualquer coisa, doutor, qualquer coisa mesmo para me livrar dessas vozes!
Tudo o que eu quero é poder descansar, poder fechar os olhos e saber que não
terei de escutar todos esses fantasmas outra vez.”
“E
o que esses fantasmas lhe dizem?”
“Várias
coisas, mas grande parte é indecifrável. Eles choram e gritam e gemem,
praguejando por suas mortes dolorosas, falam sobre seus pecados e seus sonhos.
Eu não quero saber essas coisas, não mesmo! Quero apenas dormir!”
“Prometo
que vai conseguir dormir em breve, senhorita. Agora, se me permite questionar,
por que tem tantas cicatrizes em sua pele?”
Evelyn
examinou os cortes em seu corpo, surpreendendo-se como se nunca os tivesse
visto. Tentou esconder, puxar as roupas para baixo de maneira desesperada, mas
era impossível acobertar todos. Desistiu, murchando em sua cadeira com uma
vergonha admirável, não fosse a situação em que se encontrava.
“Eu
não tinha outras escolhas, doutor. Nenhum médico conseguiu me ajudar antes.
Tentei vários, muitos mesmo, mas nenhum deles tinha outra sugestão a não ser me
internar, e não é isso o que eu quero. Alguns queriam me prender, consegue
imaginar isso? Queriam me prender como uma criminosa! Eu não sou uma criminosa,
senhor Kraepelin! Não sou uma assassina!”
Havia
algo de estranho naquela mulher. Nenhum psiquiatra indicaria alguém à prisão
sem um bom motivo.
“Acredito
em você, senhorita Evelyn. Você não é uma criminosa, muito menos uma assassina,
disso tenho certeza. Mas talvez estejamos pulando algum detalhe importante
dessa história. Há quanto tempo escuta essas vozes estranhas?”
“Há
meses, desde que... Desde que eu briguei com eles.”
“Com
eles?”
“Meus
pais. Eles não gostavam de mim.”
“Não
gostavam?”
“Não
admiravam meu estilo. Riam dos meus gostos, zombavam das minhas roupas. Achavam
que eu era uma piada.”
“E
agora não acham mais?”
“Não
mais.”
“Conseguiu
convencê-los?”
“Não.
Eles estão mortos.”
Trevor
se inquietou na cadeira. Terminou suas anotações, então abandonou o bloco. Não
lhe seria útil naquela ocasião.
“E
como eles morreram, senhorita Evelyn?”
Outra
vez, aquela mulher de vestimentas enegrecidas desabou num choro doloroso,
escondendo os olhos com o braço marcado pelas incontáveis tentativas de
extinguir a própria vida.
“Doutor,
foi horrível! Eu não tive culpa, eu juro que não tive culpa, mas não conseguia
mais aguentá-los! Eles continuavam a gritar comigo, a zombar de mim, como todas
as pessoas ao meu redor sempre fizeram! Eu não conseguia mais suportar, não
conseguia mais ouvir! Cobri os ouvidos com as mãos, meu pai me forçou a
escutar, puxou meus braços para trás.”
Soluçava
com pesar enquanto desabafava para Trevor. Em sua cadeira, o ceifador entendia
que aquelas palavras estavam presas há muito tempo, e agora escapavam como
gorilas famintos.
“Prossiga.”
“Ele
me machucou, eu gritei, mas ele não me soltava! Minha mãe viu tudo, mas ela era
outra idiota. O que poderia fazer? Me ajudar? Não, diferente de uma mãe comum,
ela apenas viu tudo, apontou e riu de mim! Aqueles filhos da mãe estavam lá,
ironizando a própria filha! Apontavam e riam, como estranhos, como os malditos
da minha escola fizeram durante anos.”
“E
o que você fez, Evelyn?”
“Eu
corri, doutor, corri para longe deles, mas eles me perseguiram. Morávamos em um
prédio, no sétimo andar. Corri até a amurada, de onde gostava de assistir aos
carros passando, onde eu me sentava para escrever poesias.”
Parou,
de súbito, como se as palavras rasgassem sua garganta. Tentava segurá-las,
guardar a verdade para si, mas Trevor era influente. Como um confidente, ou
mesmo como um pai, Trevor deixou que
uma de suas mãos tocasse os dedos delicados de Evelyn.
“Pode
me contar tudo, senhorita. Não sou apenas um médico pago para lhe escutar. Não
vou lhe mandar para um hospício, muito menos para uma prisão. Quero apenas
ajudá-la, mas você precisa me contar tudo.”
Evelyn
engoliu o choro.
“Eu
empurrei meu pai, doutor. Empurrei-o e o assistir cair, seu rosto explodiu na
calçada, quase atingiu uma velhinha que passava lá embaixo. Minha mãe correu
para ver, não hesitei. Eu a empurrei também. Caíram ambos, os ossos não
resistiram à queda. No fim, ainda que zombasse tanto de mim, eles também eram
fracos. Também podiam morrer. É irônico, não?”
Um
pequeno sorriso surgiu entre as lágrimas pesadas derramadas pela garota.
“Um
pouco. É um caso complexo, senhorita Evelyn.”
“Desde
então tenho escutado vozes, e elas não me deixam descansar. Nem mesmo uma
noite, uma única noite, elas não se cansam jamais!”
“Imagino
como é ruim passar por tudo isso. Mas não se preocupe. Eu prometo que vou lhe
ajudar.”
“Obrigado,
doutor.”
“Não
precisa me agradecer, Evelyn.”
Não
havia mais dúvidas: as vozes eram um assombro, não uma loucura convencional.
Trevor tinha de ser psiquiatra, mas se agisse como um, indicaria Evelyn a um
manicômio, onde seria internada para se esquecer do trauma de sua vida. Acima
de tudo, naquele momento, tinha de agir como ceifador, ou não seria capaz de
livrar aquela mulher de seus problemas.
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