XXIII
O
espelho da verdade fora deixado para trás, assim como aquele devaneio
inacreditável.
Na
Terra, mais precisamente em algum lugar da Alemanha, Trevor desabou em sua
própria moradia. Ao seu lado, o corpo de Evelyn, de Clufeir e de Karina. Do
Senhor do Inferno.
Trevor
sentiu-se sangrar, sentiu-se morrer. Na Terra, não era um guerreiro, não era um
ceifador. Não tinha uma arma, não sabia empunhar uma foice. Era apenas um homem
comum, um homem qualquer, despejando vísceras e entranhas pelo rompimento que
riscava de seu peitoral até a cintura, deixando a pele navegar num mar vermelho
e ardente.
Por
outro lado, Lúcifer tinha poderes. Era o demônio, o grande traidor de Cristo, e
nem mesmo a Terra o impedia de se mostrar poderoso. Ali, no entanto, usava do
corpo de uma mulher, uma representação de sua existência na terra dos homens, e
não sua forma angelical e intangível. A foice o marcara na terra dos devaneios,
cicatrizando os seios de maneira grotesca. Sangrava junto de Trevor, mas não
parecia se importar. Ao invés disso, sorria.
Ao
lado de ambos, o espelho da verdade se pulverizou.
“Maldito
seja, Sangue Azul! Você aprisionou a própria cria dentro de seus pesadelos!
Sofrerá a consequência de tal ato pela eternidade, pois uma vida não lhe será o
suficiente para se livrar deste fardo!”
“Não
pretendo me livrar de fardo algum, monstro. Já disse, não sou um herói. Não
quero salvar, não quero proteger. Quero corrigir o meu erro. E o meu erro foi
confiar em você.”
“No
fundo, todos vocês confiam em mim. Agora me responda: de que adiantou
aprisionar a minha cria? Sabe que não demorarei a encontrar outra pessoa que me
oferecerá a compaixão de uma cria, Trevor. O mundo sofrerá o mesmo fim que
tentou impedir, e você sofrerá antecipadamente. O que acha disso, ceifador?”
Trevor
sorriu.
Por
dentro, sofria a morte de todas as maneiras existentes, um pesadelo tão real
que parecia capaz de extinguir a sua vida num piscar de olhos.
“Sabe
o que eu acho? Acho que, no fundo, eu gostaria mesmo de ser um herói. Um
cavaleiro, um guardião, não sei. Um protetor, talvez. Um homem de valores, de
valentia incomparável.”
“As
mesmas palavras de sempre, Trevor. Como todos os homens, como todos os mortais,
vocês sempre desejam mais. Sempre almejavam a ganância, sempre são movidos pela
ambição. Sempre têm sonhos impossíveis, passam por cima de todo mundo para
realizá-los, ao menos para dizer que tentaram. Isso me fortalece, doutor. Isso me faz ser quem sou, me
fornece aquilo que preciso para manter minha influência sobre o mundo todo que
Deus tanto protegeu.”
“Que
seja. No fim, as palavras não importam. Importam apenas os atos.”
Trevor
suspendeu os braços. Sangrava, morria, sentia-se fraquejar a cada instante. Mas
tinha de fazer aquilo. Precisava ser um ceifador em seu próprio mundo.
Precisava ser um vitorioso, recompensar o mundo por seus erros.
Precisava
tentar.
Brilhava,
sem perceber.
“Você
não é um herói, Trevor!”
“Talvez
não seja, mas preciso tentar ainda assim.”
Assim,
brandiu sua foice encantada, tomada por um clarão vívido e potente. Com ela
avançou, girou como um passo de dança, nada ao seu redor foi destruído. A arma
era irreal, apenas uma manifestação espectral de seu poder, de sua vontade. Não
poderia destruir, não poderia matar.
Não
aquilo que vivia.
Lúcifer
desintegrava dentro do corpo daquela mulher.
“Você
não pode me matar!”
“Nunca
pretendi matá-lo. Fiz tudo isso apenas para lhe dizer quatro palavras: vá para
o inferno.”
Como
uma ordem obedecida.
Mas
Lúcifer sorria.
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