XX
No
inferno, Trevor morreu três vezes antes mesmo de tocar aquele solo pútrido e
chamejante.
Tudo
ao seu redor era um martírio; mesmo a simples visão de tais pecados poderia
matar. O fogo era sombrio, diferente das imagens bíblicas que irradiavam a
vermelhidão de fogueiras bruxuleantes. Chamas negras, bizarras e satânicas,
crepitando em momentos vulcânicos e instantes gélidos.
O
inferno não era fogo: era a dor, e somente ela.
“Não
fuja, demônio!”
Trevor
falou sem perceber, mas sabia que não estava sozinho. Não sabia o que esperar
daquele lugar, sequer sabia o que fazia ali. Por sorte, não demorou a perceber
que a consistência do ar era a mesma dos devaneios. Assim, por entender a
realidade que o circundava, conjurou a foice que lhe permitia enfrentar as
criaturas fantasistas de seus pacientes. Ali, era guerreiro, podia enfrentar um
demônio.
Mas
não aquele.
A
voz feminina deixou de existir. Em seu lugar, um ruído grotesco, grave e
incômodo, irritante como o ranger de uma porta descontrolada.
“Por
que me seguiu?”
“Por
que me enganou durante tantos anos?”
Uma
gargalhada ecoou.
“Precisava
de um Sangue Azul. Precisava de um ceifador para despejar minha essência, um
tolo para se apaixonar, para entregar sua vida a mim. Você é um marco na história
da humanidade, Trevor Kraepelin. Você é o pai daquele que carrega o fardo do
fim do mundo.”
“Eu
não sou o pai de tal criatura!”
“Você
é, Trevor, pois você fodeu o demônio! Você não mediu esforços, mesmo sabendo da
realidade, de minha natureza. Se entregou à sua paixão doentia, desistiu de sua
própria vida.”
“Mas
agora estou de volta, monstro, e não permitirei que essa monstruosidade retorne
ao meu mundo. Fui enganado por sua maldição, pelo encanto de seus olhos. Em meu
mundo, sou mortal, sou fraco. Não aqui. Aqui, tenho minha arma, minha força.
Aqui, não sou o homem de sua vida, criatura. Sou o homem de sua morte.”
A
risada soou macabra.
“Os
homens são sempre tolos, sempre enganados. É fácil ludibriar uma mente movida
pelo sexo, pela atração carnal, pelo pecado. Eu sou a origem de tudo, Trevor.
Todos os seus erros, todos os seus crimes. Eu sou o criador.”
“É,
você é foda, eu sei. Não me importa. Eu vou cortar a sua cabeça com a minha
foice, seu bastardo traidor. Vou arrancar o seu saco fora para que não possa
mais fazer filho algum.”
“Esqueceu-se
de que foi você quem me engravidou?
Eu não tenho um saco para você cortar, ceifador. Eu não sou um demônio, nem mesmo uma aparição.
Não há sexo nos anjos, pequeno Trevor.”
“Anjo?”
Trevor
rugiu de maneira ameaçadora, destruindo grande parte do inferno ao redor de si.
Derrubou montanhas de corpos, fez jorrar sangue do que já estava morto há
séculos. Os muros invisíveis tombaram, revelando a imagem aterradora de Lúcifer
e, ao seu lado, a filha do demônio.
A
filha de Trevor.
“Você
não é um anjo, traidor. Você é apenas as fezes de um ser celeste, o que restou
daquele que se opôs à divindade maior. Eu não o temo.”
Lúcifer
realmente parecia um anjo. Cabelos dourados e cacheados, asas plumadas num tom
acinzentado, olhos azuis e faiscantes. Nu, coberto apenas por tecidos
translúcidos, o rei dos demônios não tinha órgãos, seios ou curvas. Era uma
tábua angelical e abissal, de pele espelhada e lábios inchados.
“Ninguém
teme ao diabo, Trevor. Vocês se entregam, abrem os braços para a tortura de
minha forma, me aceitam sem sequer perceber. Como você mesmo fez, garantindo-me
a criança que levará o mundo ao extermínio.”
“Já
disse que não vou permitir.”
Lúcifer
abriu seus braços, deixando o torso magricela desprotegido. Ao seu lado, a
filha de Trevor grunhia uma tristeza dolorosa.
“Me
mostre seus métodos de tortura. Garanto que já conheço todos.”
Trevor
se enraiveceu, cerrou os punhos no cabo de sua arma, tentou avançar, viu-se
incapaz. Estava enrolado por vinhas, plantas pontiagudas se cravavam em sua
pele. Sangrava, mas a dor era tolice. Precisava acabar com aquela criatura.
“Papai...”
Não
havia mais monstro. Ao lado de Lúcifer, uma pequena garota de cabelos negros
choramingava, abraçada a um urso de pelúcia. A tez pálida ruborizava pelas
lágrimas, os olhos marejados pelo medo daquele homem que ameaçava sua mãe.
E
Lúcifer era novamente Clufeir, ou Evelyn, ou qualquer nome que desejasse
possuir.
Trevor
hesitou.
“Papai!”
Aquela
era sua filha. Sua linda filha.
(Não!
Aquilo é um monstro! Ela está te enganando!)
Mas
era sua mente lutando contra seu corpo, e a batalha já estava perdida. Aquela
era sua filha, delicada e ingênua, entristecida pelo temor de se ver alvejada
pelo próprio pai.
As
vinhas abandonaram o corpo de Trevor, mas ele não se moveu. Por dentro, queria
matar Lúcifer, destruir aquela criatura que o chamava de pai. Mas não havia
Lúcifer. Havia Clufeir. Aquela que amou durante anos.
“Papai.”
“Veja,
Trevor, a nossa filha! Ela não é linda?”
Estavam
em casa.
Trevor
sentia-se nauseado.
“Papai,
papai!”
Cambaleou
para a frente, aliviando a pressão das mãos em sua foice. A arma oscilava.
“Dê
um abraço em sua filha, Trevor. Já pensou em um nome para ela?”
Não
pensara. Era um péssimo pai.
“Eu
te amo, papai!”
Sorriu.
Ergueu
a foice.
“Eu
também te amo, monstrinho.”
Sem
hesitar, partiu-a ao meio com a lâmina de sua arma, livrando o inferno do filho
do demônio. Livrando o mundo da catástrofe iminente.
Era
um herói, mas não se sentia como um.
Sentia-se
um assassino.
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