Sozinho no Escuro
Aquele
tinha sido um dia exaustivo, numa semana exaustiva de um mês exaustivo.
Ali
estava eu, abrindo a porta de minha casa para o merecido repouso, disposto a me
livrar dos problemas com um banho quente e uma boa noite de sono.
Já
em meu quarto, joguei as tralhas que carregava no chão, tirei a camiseta e me
postei sobre a cama, bagunçando o lençol carinhosamente ajeitado por minha mãe.
Sim, eu ainda morava com meus pais, na época. Era uma casa boa, uma família
interessante, por mais que o pai tivera sido substituído por um padrasto e eu
pouco o visse. De qualquer modo, a cama estava arrumada, e por ora isso
bastava.
Permiti-me
suspirar, aliviado por estar ali, e não de frente a todos os meus problemas. Eu
precisava de um banho, precisava mesmo, mas a cama estava tão boa. Olhei o
relógio no pulso, ele marcava 18h40. Minha mãe chegaria mais tarde, longe das
20h. Eu tinha um bom tempo antes disso. Resolvi esperar ali, assistir uma
televisão e esperar até que a coragem novamente me abordasse.
O
telejornal que me recepcionou falava sobre morte e violência, e eu me perguntei
se não era o mesmo programa do dia anterior, e do anterior ao anterior, pois
todas as noites era a mesma coisa. Mudei o canal, vi a mídia alienar, carregar
os telespectadores com suas notícias macabras e então aliciá-los num momento de
fraqueza súbita com suas novelas emporcalhadas de situações desprezíveis. Eu
odiava aquilo tudo, mas não tinha tantas opções em meu pacote de tv a cabo.
Tive de me contentar com a dublagem bizarra de um filme trash.
Foi
quando a luz apagou.
Era
um blecaute, imaginei, talvez somente ali, em minha casa. Olhei pela janela e
constatei que não, era uma falta de luz um pouco agravada, agarrando
parcialmente meu bairro. Do segundo andar, era fácil entender que as
proximidades ainda tinham iluminação, o que resumia o problema como simples.
Logo ela estaria de volta, tive certeza. Teria que esperar pelo meu banho
quente.
Dei
de ombros e tirei meu celular do bolso, usando sua tela de led como única fonte
de iluminação. Minha gata estava ali, lambendo meus pés. Ela não tinha medo do
escuro. Eu também não, obviamente, mas ela enxergava muito melhor do que eu. A
gatinha ronronou, esfregou-se em me tornozelo, esticou-se por segundos ao meu
lado, brincalhona, e então se foi, correndo pelos corredores.
O
celular apitou, anunciando que a bateria estava baixa.
Eu
sempre fui um pouco impaciente, parte pela hiperatividade, parte pela
velocidade irreparável dos acontecimentos do dia-a-dia. Sendo assim, precisava
arrumar algo para passar o tempo, algo que me sustentasse ligado diante daquela
escuridão.
Resolvi
ler as minhas mensagens de celular.
Abri
a primeira, e ela me dizia sobre uma garota que conhecera há alguns meses, com
a qual não tive oportunidade de me relacionar como deveria. Ela era bonita e
agradável, sempre cheirando a flores. Uma amiga. Talvez ela quisesse mais do
que isso, mas eu tinha medo de arriscar. No escuro e no silêncio, pensava no
quão grandioso um pseudo-relacionamento com tal pessoa poderia estar naquele
instante, mas ele não existia, e possivelmente não existiria durante a vida
toda, graças ao medo da perda e do vazio. Como amiga, ela sempre estava ali,
sempre estaria. De resto, não conseguia imaginar nada.
Algo
estalou em meu apartamento. Apontei a luz do celular, até então voltada para
meu rosto, para a porta de meu quarto, iluminando parcialmente o corredor que
me guiaria até a cozinha. Não havia nada.
Voltei
à posição original e fui para a próxima mensagem.
Ela
era de uma antiga pretendente. Anos antes, senti algo muito forte por ela. É
estranho tentar compreender os sentimentos, não é? Eu a amei, ou sei lá, o mais
perto disso que minha mente me permitiu chegar. Depois, quando as coisas deram
errado, tudo escorreu pelos dedos, vazando pelas frestas como água. Todas as
promessas se perderam em novos lábios, novos abraços, e o tempo passou como
passaria de qualquer forma. O relógio não espera por ninguém. Eu percebi que
não gostava tanto dela assim. Percebi que deixei de amá-la com facilidade. Agora,
quando a reencontrei, percebi que talvez estivesse enganado. Eu notei que nunca
antes senti nada por aquela pessoa. Agora, no entanto, o coração palpitava em
sua presença. Isso era um bom sinal, ou uma pequena loucura de reencontro,
descontrolando o entendimento do teatro iniciado pelos pensamentos?
Ouvi
um barulho estranho, outra vez.
Apontei
a luz para o corredor, e lá estava a minha gata. Ela tinha um rato morto na
boca. O sangue escorria por seu pelo branco, manchando seu rosto e seus
bigodes. Eu a xinguei, e ela correu, deixando o cadáver do animalzinho ali, à
frente de meu quarto.
Tive
a impressão de escutar passos, mas sempre me confundia quanto à distância dos
ruídos. Eles poderiam estar ali, ao meu lado, ao mesmo tempo em que poderiam
estar no apartamento de baixo, no vizinho, no prédio da frente.
Os
pelos de meu braço eriçaram.
Voltei
os olhos para o celular, li a terceira mensagem.
Era
de um amigo. Um ex-amigo, quem sabe. Isso realmente existe? Ele me ofendia.
Tomara as dores de um relacionamento que terminou de maneira errônea, comprava
uma briga que não existia. Eu nunca me deixo levar pela irritação. Nunca
levantei a voz para ninguém que desmerecesse, raramente o faço para quem
merece, na verdade. Fico ali, na minha, calmo como sempre. Mas há tantas
mentiras quanto pessoas, e elas afastam-nos de quem é volúvel aos boatos.
Mentiras se espalham como veneno, saídas da boca de pessoas sujas, da imundice
repugnante de víboras com pernas e braços, serpentes que podem sorrir e
enganar. Elas não matam, mas ferem por dentro, marcam sem cicatrizar. Assim eu
me indagava sobre o provável ex-amigo, sobre a vida que ficara para trás, sobre
tudo o que passamos juntos e, ao fim, tentava acreditar que um amigo não se
perde, e que se o estava perdendo, talvez ele nunca antes fora um amigo de
verdade.
Ouvi
passos, e dessa vez tive certeza de que estavam ali, bem pertos.
Mirei
a luz para o corredor. A gata não estava lá.
Também
não estava lá o rato.
O
que existe de tão peculiar na escuridão? Aquilo que nos faz acreditar ver
coisas, ouvir barulhos, que nos faz pensar no improvável e no inacreditável. Eu
adorava filmes de terror, mas estar na cena de um deles não me era agradável.
Ali, no escuro, eu pensava em minha vida, no que fiz e no que hei de fazer, e
me sentia vazio. Não estava vazio, é claro, mas assim me sentia, como uma
bexiga furada, deixando todos os temores escaparem enquanto eu murchava no
lugar, incapaz, fraco e infantil. Ri da incompetência de meus pensamentos,
recompondo-me. Quanta bobeira. Aquilo era apenas uma falta de luz, nada mais.
Não havia ninguém ali.
Algo
passou nas sombras, oscilando a luz de meu celular. O tempo do display chegou
ao fim, e ela se apagou. Acionei o botão novamente, a luz retornou, não havia
nada.
A
sensação era estranha. Eu me sentia vazio, e agora, acompanhado. Mirei as
bordas da cama, ninguém. Mirei o teto, a janela cerrada, o computador e a
televisão desligados, nada. O corredor, outra vez, sem sinal da gata e do rato.
Ela provavelmente o pegou, arrastando-o numa brincadeira cuja finalidade era
indizível. Ela o levou, tinha sua companhia, e eu fiquei sozinho, sozinho no
escuro, sem nada de útil para pensar.
Mudei
para a quarta mensagem, mas ela se fechou antes que eu pudesse fazer algo.
A
bateria chegara ao fim.
Ouvi
passos, novamente. Um miado, distante, e o barulho das garras de meu animal de
estimação. Ela faria uma bagunça com o sangue do rato, eu sabia. Minha mãe
ficaria brava e a xingaria, e ela se esconderia embaixo da cama, e eu riria de
algo cuja graça inexiste. Por que estava pensando naquilo tudo? Era o escuro,
claro. O escuro ofusca os pensamentos. Eu deveria pensar nas provas da semana
seguinte, nos resultados da semana anterior, mas não, pensava no rato e na
gata, em minha mãe e suas reações.
Sacudi
o rosto, ainda ouvindo barulhos. Eu estava cansado, era isso. No completo
escuro em que estava, sequer me arriscava a levantar, temeroso de acertar algo
das proximidades. Fiquei ali, tentando refletir se deveria arriscar algo com a
amizade diferenciada que encontrara, tentando encontrar defeitos num
relacionamento que terminou sem razão, buscando um meio de me vingar daqueles
que espalhavam calúnias sobre minha pessoa, por mais que repugnasse a vingança.
Esqueci das provas, esqueci da cama, concentrei-me no escuro. Quantos problemas
encontraria ali, no silêncio? Quantos gritos calados me fariam tremer e
arrepiar?
Não
sabia se meus olhos estavam abertos ou fechados.
Passos.
Olhei
para os lados, a visão era a mesma: escuro. Luzes apagadas, noite sem estrela,
olhos abertos debaixo de um cobertor pesado. Escuro, não mais, não menos.
Pisquei, forcei os olhos abertos, senti a cabeça doer. Cocei o cabelo, escutei
o barulho das unhas nos fios.
E
passos, mais passos.
Um
miado, então silêncio. Um carro buzinou lá embaixo, acelerando. A rua ainda
existia. Eu havia me esquecido. Só me lembrava do escuro.
Alguém
gritou algo, um som abafado que trespassou minhas janelas. Era outra pessoa,
não eu. Outras pessoas também existiam. Eu não era o último homem, não era
sozinho. Mas estava sozinho. Sozinho no escuro, no silêncio, sozinho numa noite
emudecida, sob uma coberta negra e vazia, uma lacuna da inexistência. Por
quanto tempo ficaria assim, calado na vontade de gritar?
Abri
a boca, tentei falar algo, a voz me falhou, ou talvez tenha saído e eu não a
escutei.
Outros
passos.
Algo
caiu na cozinha, o metal tilintou no chão duas, três vezes, estacou. Uma faca,
talvez? Um garfo? Uma panela pendurada para secar? Era minha gata, claro. Ela
sempre fora bagunceira. Ela sempre fora complicada, sempre criou problemas.
Ela
estava ali, ao meu lado, deitada. O rato morto estava em sua boca, sobre o
lençol limpo de minha cama.
Ela
o mastigava.
Coloquei-a
no chão com seu novo brinquedo, ela correu para longe, sumiu de minha vista, e
tudo era escuro outra vez. Encostei-me à parede, o frio me arrepiou a espinha.
O silêncio era uma música, e ela cantava sem alegria, cantava de maneira
tediosa e branda, como um sussurro melódico, uma sinfonia cadavérica.
Lembrava-me a trilha sonora de um cemitério, por mais que isso soasse bizarro
de se pensar.
Olhei
para o lado, a gata estava ali outra vez. O rato não estava mais com ela.
A
porta de meu quarto sacudiu, como se empurrada. O metal rangeu conforme a
madeira deslizou no chão.
Havia
alguém ali.
Eu
me peguei tremendo. Ela estava ali, aquela pessoa. Eu pude ver a sua sombra. Eu
pude sentir sua respiração, pude ouvir seus dedos estalando. Sabia que ela
estava ali. Eu poderia me preocupar com a minha vida, com a minha segurança.
Ao
invés disso, preocupava-me com as palavras que saltaram até a ponta de minha
língua e, pelo medo, foram engolidas outra vez, engolidas para nunca mais se
aventurarem.
O
Eu te Amo, o Vá Embora, o Fique Comigo, tudo me passava pela cabeça, tudo
girava num turbilhão. Sentia-me incapaz de resolver qualquer problema, pois
problema algum escaparia da escuridão. Eu estava ali, no escuro. Não mais
sozinho.
Não
mais seguro.
Passos.
Ela
se aproximava. Eu não sabia o que fazer. Queria gritar, voz não havia. Apertei
o celular algumas vezes, a bateria não faria milagre algum. Eu me escorei na
parede. Respirei, uma respiração pesada, pois só então percebi que segurava o
ar dentro de mim. A respiração que tocou meu rosto era outra. Tão quente, tão
manhosa, tão serena.
Você
está bem?
Eu
abri os olhos, o escuro não estava mais lá. Minha mãe mexia em meus cabelos,
bem próxima. Percebi que suava frio.
Respondi
que sim, que estava, e ela me disse que a luz voltara algum tempo atrás. Estava
tudo bem agora. Tudo estava certo, e eu tinha a luz, tinha o mundo outra vez.
Liguei a televisão, deixei o som me acalmar outra vez.
Tudo
estava certo. Eu não tinha motivos para ter medo. Voltava a pensar em minhas
provas, nas notas e nos resultados, deixando de lado a sorte no amor, as
mentiras, as intrigas, a covardia dos infames, o medo de arriscar e errar.
Pensar em tudo aquilo não me levaria a lugar nenhum.
Desliguei
a televisão, apaguei as luzes e parti para meu banho. No caminho, a gata afagou
minha perna, e eu a acariciei. Ela parecia estar com saudades. Brincou algum
tempo antes que eu me fechasse no box.
Eu
ri de meu receio pelo escuro. Nunca antes me senti daquela maneira. Era uma
grande bobeira, não era?
Sim,
eu era um grande idiota.
Contei
a minha mãe, horas mais tarde, que a nossa gata caçara um rato em sua ausência,
e ela me perguntou em que dia isso aconteceu. Que estranho. Acontecera agora há
pouco! Procurei pela casa, mas não encontrei sinal de rato algum. A gata não
parecia ter sangue nos pelos e nos bigodes, como vira anteriormente.
Resolvi
me deitar, apagar as luzes e fechar a porta.
Sozinho
no escuro, conseguia pensar em meus próprios problemas, sem ter de recordar que
minha gata estava no veterinário com a minha mãe, e não ao meu lado, não
caçando ratos, não ronronando em minha perna.
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