Olá, companheiros.
Esta postagem carrega o último ato de Delirium, encerrando assim mais uma Light Novel aqui no blog! Espero que gostem da leitura, e aguardem porque logo devo disponibilizar uma versão em PDF, bem como uma versão impressa para venda no PerSe, como fiz com A Balada do Caçador. Até lá, vou me despedindo de Delirium para dar lugar a uma nova Light Novel, Desejos de Juno, a qual já apresente anteriormente.
Até a próxima!
XXIV
Havia
um mundo negro e doloroso, onde a música era feita de gritos, e as paisagens de
corpos de animais sem vida. Pontes de ossos, montanhas de corpos, lagos de
sangue e florestas de esterco, tudo era comum naquele lugar. Cheirava a morte e
tortura, pois aquela era a terra dos pecados, meio homem, meio demônio.
Aquele
era o devaneio de um Sangue Azul.
Trevor
acordou ofegante. Aquela era a vigésima noite desde a batalha contra Lúcifer, e
em todas elas ele despertou após o mesmo pesadelo, onde encontrava a filha do
demônio, sua herdeira, naquele lugar sinistro. A sensação era terrível. Por
vezes, acordava banhado por urina, sem controle algum do próprio corpo; em
outras, despertava com sangue espalhado por todo o corpo, fruto de um martírio
indescritível.
A
cada novo pesadelo, as mesmas palavras passavam-lhe pela mente:
(Eu
vou morrer.)
O
corpo de Evelyn, se aquele era mesmo o seu nome, estava conservado sobre um
colchão fino, em seu quarto. Sabia que todo aquele teatro fora apenas
enganação; aquela mulher talvez nem mesmo existisse. Ainda assim, não conseguia
negar seu amor por ela, sua vontade de abandonar tudo, de deixar de lutar, de
desistir da vida solitária para se apaixonar por aquele anjo.
Um
anjo negro, infelizmente.
Evelyn
estava morta, e não voltaria. Livre do Senhor do Inferno, sua pele coberta de
tatuagens e adornos metálicos exibia os castigos daquela presença que a assolou
por tanto tempo, anos felizes que passou ao lado do ceifador. Trevor sentia-se
tolo por carregar aquele sentimento, mas era um homem, um humano e, como tal,
nascera e morreria tolo.
Aquela
não era a pessoa que conviveu com o psiquiatra, era apenas uma caixa vazia, uma
alma liberta da prisão de Lúcifer, uma marionete do inferno. Por mais que não
fosse a mesma pessoa, era ela ali, ao menos seu corpo, e isso impedia o
ceifador de abandoná-la. Cultivou aquele corpo como se cultiva um animal
empalhado, um hábito doentio e desprezível, sua única opção.
(Estou
enlouquecendo.)
Acordou
outra vez, já era dia. Sequer se lembrava de ter adormecido, mas assim eram
todas as noites. Após o sono, sentia-se mais cansado, gastando suas energias
para sobreviver a cada novo pesadelo com a filha bastarda e indesejada. Evitou
a catástrofe da Terra, mas não a sua própria. Era a ruína de um homem, de um
guerreiro.
De
um herói.
(Herói?)
Fechou
os olhos, mas não sabia se sonhava ou alucinava, ou talvez os dois. Talvez
fosse real, era quase impossível diferenciar.
Aproximou-se
do corpo de Evelyn, desejou-a outra vez. Lembrou-se de sua juventude, de seus
movimentos, de sua sedução.
(Não
era ela, Trevor! Era o demônio! Os prazeres proibidos são frutos do demônio em
pessoa!)
E
qual era a diferença? Era prazer, no final das contas. Era ela, Evelyn, tomada
por um ser de outro mundo, de outro tempo. Mas era ela. Sua amada, sua esposa.
A mãe de sua filha. Da cria que destruiria o mundo, do emissário do apocalipse.
Do monstro que Trevor matara uma vez e aprisionara outra.
(Estou
sonhando?)
Talvez
fosse um sonho, talvez realidade. Difícil distinguir. Mas lá estava Evelyn,
morta, cheirando a formol, lembrando um manequim de lojas de roupas. Inerte, de
olhos fechados, de pernas unidas. Trevor acariciou suas pernas, suas coxas, sua
virilha. Sentiu-se enrijecer, desejando um cadáver.
(Eu
estou louco.)
Mas
era um herói, não era?
(Sou
um herói?)
Não
era sua intenção, mas acabara por salvar o mundo, ou ao menos assim pensava.
Impedira o caos da cria de Lúcifer, impedira o domínio do Senhor do Inferno.
(Impedi
ou atrasei?)
Aquele
demônio disse que poderia encontrar outro homem, outro ceifador, seduzi-lo como
fez a Trevor, parir outra cria desnaturada para arrasar a vastidão da Terra.
Poderia ser verdade, ou apenas um blefe, mas aquele era o diabo em pessoa. Não
poderia duvidar.
(Como
duvidar do demônio?)
Trevor
se deitou sobre Evelyn. Beijou seus lábios gélidos, apalpou suas nádegas e seus
seios murchos. Admirou as tatuagens, os transversais, o piercing em seus
lábios. Estava tudo lá, conservado pelos produtos. O amor de Trevor, único e
verdadeiro.
(Eu
estou completamente louco.)
E
estava. Delirava. Via Evelyn se levantar, correr de um lado para o outro,
saltitar alegremente em sua não-vida. Sorria, abraçava-o, agradecia por toda a
bondade que fizera por ela.
“Temos
uma filha, Trevor!”
(Eu
tenho uma filha?)
“Uma
filha linda e inteligente!”
(Filha?)
Um
demônio.
Trevor
estava atirado no sofá de sua casa, a saliva espumada lhe escapava os lábios. Os
olhos virados, os membros trêmulos, alucinava. Gritava, sorria, gemia, sequer
entendia o que acontecia ao mundo ao seu redor. Caiu ao chão, rolando para os
lados como um louco. Empoçou o carpete com sua saliva, tossiu sangue.
(Eu
vou morrer?)
Era
mesmo uma pergunta?
(Eu
vou morrer.)
O
mundo ao seu redor girava, subia e descia, explodia e se refazia outra vez.
Acordou,
estava bem. Suado, sangrando, exausto, mas bem. Fora sua melhor noite de sono
em um mês.
O
corpo de Evelyn ainda estava lá. Decidiu enterrá-la. Uma cerimônia simplória,
logo o cheiro artificial da conserva deixou sua casa. Limpou suas coisas,
despediu-se do espelho da verdade que já não mais existia. A moradia estava
novamente pronta para receber pacientes.
Postou-se
à frente do espelho, estudando suas olheiras.
“Vou
voltar a atender.”
Falava
consigo mesmo. Estava realmente louco.
“Preciso
ocupar a mente com alguma coisa. Vou voltar a atender alguns pacientes.”
Decidido,
Trevor liberou sua agenda para novos nomes.
No
dia seguinte, alguém bateu à sua porta. Não tinha horário marcado, mas ele não
tinha nada a perder. Precisava se afastar das alucinações, do martírio de
conviver com aquele demônio dentro de si.
(Será
um paciente?)
Torceu
para que fosse.
Abriu
a porta.
“O
senhor é o doutor Trevor Kraepelin?”
Estremeceu.
Era uma linda mulher de olhos bicolores, um verde e um violeta, tatuagens
ilustrando os braços magricelas. Encantadora, despejando seus longos cabelos
negros de maneira deslumbrante, vestindo-se em tecidos delicados e macios.
Evelyn.
“Sim...”
Trevor
mal conseguiu gaguejar.
“Pode
me ajudar, doutor? Eu tenho um problema. Ouvi dizer que o senhor é o melhor da
Alemanha.”
Emudeceu.
“Me
desculpe a intromissão, mas não tive tempo de marcar um horário. Meu nome é...”
“Evelyn.”
A
mulher se surpreendeu.
“Como
sabia?”
“Intuição.”
“O
senhor é realmente o melhor, doutor! Pode me ajudar?”
Ao
longe, Lúcifer gargalhou.
Assistia
a tudo num espelho exótico, sem detalhes ou adornos. Lá, via a dor das memórias
de Trevor se confrontando, suas lembranças reagindo à visão de sua mais nova
paciente.
Aquilo
era excitante.
“Veja
bem, meu caro ceifador, você não é um herói. Está preso em meu jogo, em meu
mundo, até quando achar que devo. Pretendo me divertir com sua loucura, doutor, ver o quanto consegue sobreviver
neste ciclo infinito. Depois disso, terei minha filha de volta. Nossa filha.”
Riu
alto, mas parou de imediato.
Havia
alguém além de Lúcifer.
Alguém
maior do que Lúcifer.
“Está
se divertindo, Senhor do Inferno?”
A
voz fez o inferno tremer. Era grave e assustadora, ainda que carregada por uma
ironia macabra.
“Não,
meu mestre.”
“Não
pretendo lhe conceder outra chance, lacaio.
Portanto, não perca tempo com suas diversões desnecessárias. Ria o que tiver
para rir. Depois disso, garanta-me o meu
domínio.”
“Sim,
mestre.”
Mas
a resposta era vaga, pois o Senhor do Inferno estava novamente sozinho.
Lúcifer
ofegou. Mesmo ele estava desacostumado àquela presença poderosa, sentia-se
extasiar simplesmente pelo conhecimento daquela força. Livrou-se daquela
sensação, voltou a observar Trevor.
O
ceifador outra vez se entregava a Evelyn, pois assim eram os homens. Dispostos
a errar incansáveis vezes, assistir aos próprios erros e, numa próxima
tentativa, repetir todas as coisas da mesma maneira.
“Deleite-se
nessa sensação, Trevor. Será sua última. Não restará mundo algum para viver a
desgraça de seu amor. Resta sua insanidade, pois ela é combustível para o mal
que carrego em meu interior. Para o mal que me governa, que me ordena.”
E
apenas aquilo restava. Trevor se apoiava nos sonhos, mesmo nos pesadelos, para
sobreviver a uma vida de mentiras. Restavam a insanidade, a loucura, os
devaneios. No fim, sua vida era apenas aquilo: uma falsidade, uma enganação.
Um
intenso delírio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário