V
Encontrei,
num beco escuro, um garoto sonhador.
Já
era tarde para sonhar, no entanto. A mente que um dia trabalho tão veloz, tão
criativa, agora estava perfurada por um disparo nada acidental. A arma em suas
mãos ainda fumegava quando eu cheguei, mais pelo frio do que pelo ato. Quedado
contra o solo, o garoto tinha saliva a escorrer de seus lábios, sangue de seu
rosto e sonhos de seus pensamentos. Tudo jorrava ao mesmo tempo, tudo se perdia
ao mesmo vento, tudo era levado numa única respiração.
Ele
estava ali, com os braços cruzados, observando seu próprio corpo atirado ao
solo. O espectro tinha, da mesma forma que o cadáver, uma grande perfuração na
testa, o suicídio que preferira ante o afrontamento de seus problemas.
Pelo
pranto de seus olhos atônitos, eu ouvi a razão de sua escolha.
Ele
gostava de coisas simples, mas ela não era nada simples. Ela era complexa. Ela
era linda, atraente, inteligente, e complexa. Nunca a entenderia, não
precisava. Precisava dela como ela era: perfeita.
Uma
noite, a única noite que tiveram inteiramente para si, ele a tomou como mulher.
Perfeita, como sempre imaginou. Perfeita, como tinha certeza. A madrugada os
assolava com sono, mas o sono não lhe privaria de tê-la ali, ao seu lado, na
única oportunidade que ele teria na vida. Do céu negro à manhã clara, ele a fez
mulher de verdade, sentiu-se homem, não garoto. Foi feliz, feliz por amar, pelo
ato do amor, pelo amor em um ato.
Oito
horas era o fim; eram sete e cinquenta e nove. Ele gostava de coisas simples.
Gostava de relógios. Gostava dos ruídos que os relógios faziam ao mover os
ponteiros. Naquele instante, tudo o que queria era que o tempo parasse, que voltasse
às quatro da manhã, que nunca mais voltasse a correr. Queria parar de respirar,
queria que o mundo parasse de girar.
Ele
a amou demais. Sequer percebeu que ela não mais vivia, levada pela praga que
escondeu de seu príncipe.
A
necrofilia o abalou. O garoto sonhador não mais sonhava; tinha pesadelos. Ouvia
os gritos apavorantes da donzela que amou, era monstruosa. Ele quis o fim, e o
fim o teve.
Quando
ouvi o vento escuro, me escondi, temerosa, mas o garoto não o fez. Ele aceitou
com os braços abertos, sem sorrir, mas também sem chorar. Aceitou, de olhos
fechados, de mente preparada; aceitou.
O
silvo o carregou para longe, devorou-o sem deixar vestígios para o mundo.
Para
mim, no entanto, aquela dor estaria presente para sempre, como a mais profunda
das cicatrizes.
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