III
Havia
um jardim repleto de flores.
Todas
elas estavam murchas, sem vida e sem cor. Todas elas carregavam esperança, mas
a esperança era inútil quando não se tinha mais nada.
Sobre
as flores, jazia o corpo de uma bela criança.
Seus
cachos foram louros, um dia. Agora, não mais brilhavam, não mais pareciam
lisos. Eram cabelos de um cadáver, decompondo-se enquanto o corpo se preparava
para se tornar cinzas. Os braços estavam abertos, as pernas manchadas pelo
sangue negro. Eu pude ver seu sangue cintilar, um vislumbre da imagem que um
dia existiu, os cortes que deixavam jorrar o sangue rubro por sobre as flores,
contaminando-a, impregnando o mundo que já estava enojado de imundice.
Eu
me aproximei, e então ouvi-la cantar.
Ela
estava ali, sentada sobre a amurada daquele jardim, olhando para as flores e
para a lua. Espectral, como fora o homem enforcado, desenhava com os dedos
infantis figuras de constelações, pintava as flores em seus olhos foscos. Ela
cantava com emoção, cantava uma canção belíssima, perdida nos agudos,
desafinando; nem mesmo assim sua música se tornava ruim.
Era
apaixonante.
Com
os olhos, com a música, ela me contou sua história.
Eu
a ouvi cantarolar sobre sua mãe, aquela que durante anos cultivara aquele
jardim. Ali, nas cores, tinha ela a tola esperança de ver seu marido retornar,
e a garota a auxiliava, escorando o sofrimento da mãe no perfume das últimas
flores do mundo. Quando a mãe se foi, imersa na loucura da solidão, ela ficou
ali, sozinha, e as flores então foram suas companheiras, a sua esperança, como
antes foram de sua mãe.
A
esperança não a ajudou quando foi necessário, no entanto. Diante do caos da
guerra, da malícia do homem e da obscuridade da existência, a garota
desfaleceu, usada como objeto, abandonada como um brinquedo.
O
espectro parou de cantar.
A
noite estava ali, acima de nós, mas também ao nosso redor.
A
noite se movia, silvava.
O
escuro se moveu trovoou sobre a amurada, como vento negro que era, levou
consigo a garota sem vida. Tentou levar também sua esperança, mas essa já não
existia.
Não
na garota, não no jardim, sequer no mundo.
Talvez
em mim ainda existisse até então, adormecida nos confins, hibernando na espera
de que tudo voltasse ao normal, de que outra vez pudéssemos respirar o mesmo ar
que antes fora tão puro.
Quando
o vento negro se foi, levara consigo o espírito da garota, seu corpo, suas
flores murchas e, também, o que restara de minha esperança.
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