sábado, 11 de agosto de 2012

WN - Baile de Espíritos - 3

Dois atos seguidos, para compensar os dias que fiquei sem postar.


III

Havia um jardim repleto de flores.
Todas elas estavam murchas, sem vida e sem cor. Todas elas carregavam esperança, mas a esperança era inútil quando não se tinha mais nada.
Sobre as flores, jazia o corpo de uma bela criança.
Seus cachos foram louros, um dia. Agora, não mais brilhavam, não mais pareciam lisos. Eram cabelos de um cadáver, decompondo-se enquanto o corpo se preparava para se tornar cinzas. Os braços estavam abertos, as pernas manchadas pelo sangue negro. Eu pude ver seu sangue cintilar, um vislumbre da imagem que um dia existiu, os cortes que deixavam jorrar o sangue rubro por sobre as flores, contaminando-a, impregnando o mundo que já estava enojado de imundice.
Eu me aproximei, e então ouvi-la cantar.
Ela estava ali, sentada sobre a amurada daquele jardim, olhando para as flores e para a lua. Espectral, como fora o homem enforcado, desenhava com os dedos infantis figuras de constelações, pintava as flores em seus olhos foscos. Ela cantava com emoção, cantava uma canção belíssima, perdida nos agudos, desafinando; nem mesmo assim sua música se tornava ruim.
Era apaixonante.
Com os olhos, com a música, ela me contou sua história.
Eu a ouvi cantarolar sobre sua mãe, aquela que durante anos cultivara aquele jardim. Ali, nas cores, tinha ela a tola esperança de ver seu marido retornar, e a garota a auxiliava, escorando o sofrimento da mãe no perfume das últimas flores do mundo. Quando a mãe se foi, imersa na loucura da solidão, ela ficou ali, sozinha, e as flores então foram suas companheiras, a sua esperança, como antes foram de sua mãe.
A esperança não a ajudou quando foi necessário, no entanto. Diante do caos da guerra, da malícia do homem e da obscuridade da existência, a garota desfaleceu, usada como objeto, abandonada como um brinquedo.
O espectro parou de cantar.
A noite estava ali, acima de nós, mas também ao nosso redor.
A noite se movia, silvava.
O escuro se moveu trovoou sobre a amurada, como vento negro que era, levou consigo a garota sem vida. Tentou levar também sua esperança, mas essa já não existia.
Não na garota, não no jardim, sequer no mundo.
Talvez em mim ainda existisse até então, adormecida nos confins, hibernando na espera de que tudo voltasse ao normal, de que outra vez pudéssemos respirar o mesmo ar que antes fora tão puro.
Quando o vento negro se foi, levara consigo o espírito da garota, seu corpo, suas flores murchas e, também, o que restara de minha esperança.

Nenhum comentário:

Postar um comentário