quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Conto - Tão Perto, Tão Distante

Uma semana sem postagens, e peço desculpas pela falta de tempo e de inspiração para os textos aqui do blog. Em breve teremos mais novidades por aqui, mas por ora trago a vocês um novo conto, bem pequeno e modesto, chamado Tão Perto, Tão Distante. Ele é meu suspiro pelo grande tempo que se passou desde a última vez que escrevi algo medieval, e realmente gostei do resultado, ainda que ele seja muito mais filosófico do que heroico. Bom, vejam o resultado logo abaixo, e espero que apreciem a leitura!
Até a próxima!


Tão Perto, Tão Distante

Ele não recordava nem mesmo seu próprio nome.
Quando abriu os olhos, o mundo todo pareceu novo. A realidade tinha cores que ele conhecia, seja no azul do céu ou no marrom terroso do solo acidentado, e também no alvo das nuvens e no negro de seus fios. Era tudo familiar, ao mesmo tempo em que perversamente desconhecido. Onde ele estava? Era seu mundo, seu lar, sua morada, ou talvez não fosse nada daquilo. Tudo era estranho, mas poderia ele ser o estranho ali, um homem que não fazia parte do grupo de tantos outros homens que respiravam —ou tentavam com todas as forças —ao seu redor.
Quase todos mortos ou mutilados.
Estendia-se à sua frente um jardim de corpos e destroços, e a terra se tornava barrosa e escarlate na mistura asquerosa que se fazia do sangue e do solo, e ambos eram um só, algo sem nome, sem escrúpulos, sem pudor. Braços e pernas, torsos e cabeças, armas e armaduras estilhaçadas por uma guerra cujas limitações se perderam muito tempo antes do mísero início.
E ele ali, no meio de tudo, sem que se lembrasse de nada.
Caminhou, no silêncio pavoroso daquela paisagem melancólica e sombria, buscando no odor da morte, na visão fúnebre de infindáveis vidas perdidas, memórias do que ele fora ou era ou deveria ser, mas nada. Tudo era caos e desordem, resquícios de um louco embate entre duas nações, duas forças adversas e poderosas, dois estandartes distintos, cuja união parecia inimaginável, e assim seria pela eternidade, ainda que os ideais e as metas se tornassem similares.
Foi quando ele viu, com seus olhos de cor surreal, o rosto que lhe fez perder a noção da vida.
Ela era linda, mas linda seria uma palavra de pouco efeito se comparada á beleza daquela mulher. Seus olhos brilhavam numa existência angelical, e isso o homem sabia ao vê-la de olhos fechados, adormecida, gélida atrás de uma mágica substancial, uma feitiçaria capaz para poucos e valorosos encantadores, uma prisão cristalina que manteria seu corpo ali, fervoroso na mais fria das superfícies, rumando para um congelamento que não a permitiria envelhecer, sorrir ou morrer.
Trajada em vestimentas tão suaves quanto a própria brisa, a mulher abraçava o próprio corpo, tomada por uma carícia que lhe permitia sentir a vida dentro de si, o sangue circulando vagaroso e frio, quase que inerte nas trilhas de veias, e assim ela ficou por muito tempo, os lábios arroxeando pela sensação, e assim ficaria por anos sem caso um herói de valor não a salvasse, sacrificando a vida numa empreitada que lhe permitisse afrontar a mágica que a cercava e retirá-la dali, garantindo uma nova vida àquela princesa de beleza sem igual.
O homem, imerso num território caótico, esqueceu-se de toda a morte, de todas as atrocidades que o circundavam, e a admirou, parado à frente do imenso cristal que aprisionava seu corpo, golpeando vez ou outra para ter certeza de que aquilo era real, de que ela era real, de que ele e todo o resto não eram somente um sonho confuso.
—Quem seria capaz de fazer isso?
Ele ouviu a sua voz depois de tanto tempo e estranhou. Ela estava mais grossa. Avaliando seu corpo, seus braços longos e suas cicatrizes, ele teve certeza de que era um adulto, um guerreiro de valor, talvez, um dos cavaleiros dos exércitos que se afrontavam. Quem era ele?
Algo se moveu no horizonte.
Com olhos despreparados, o homem aguardou até que a silhueta se tornasse reconhecível, e ali viu um cavalo a carregar uma montaria atirada em seu corpanzil.
A primeira vontade lhe dizia para correr até lá, oferecer ajuda, verificar aquilo —ou aquele —trazido pela montaria, mas não foi isso o que fez. Não o fez porque, mesmo em silêncio, a garota lhe dizia para ficar ali, ao seu lado, para não deixá-la sozinha, não mais, porque a solidão era ruim, mais fria do que todo aquele gelo que a aprisionava.
—Você está bem?
O homem sobre o cavalo não estava bem. Ele estava morrendo, com cicatrizes espalhadas por todo o corpo, cortes tenebrosos trespassando a armadura em destroços e órgãos vomitados pelo corpo torneado. Não estava nada bem, era fácil perceber. Não montava o cavalo, mas sim escorava seu sofrimento no dorso daquele animal, deixando-se levar no movimento rítmico das patas de sua montaria, que talvez nem mesmo fosse sua e sim de um dos incontáveis corpos que jaziam naquele lugar.
Ele se aproximou o máximo que pôde, e só então o desmemoriado viu que, nas mãos de seu companheiro, uma espada era carregada sem força alguma.
—Como pôde?
A voz do outro soava branda, dotada de vontade, mas não de capacidade. Ele morria.
—Quem é você?
—Não zombe de mim. Eu não disse que desisti.
Quem era aquele cara? As hipóteses eram muitas, cada qual tão improvável quanto a anterior, senão mais. Ele tinha uma arma.
O homem olhou para suas mãos, sentindo o peso do metal incomodá-lo.
Ele também tinha armas. Duas espadas longas, lâminas banhadas por mágica, radiantes na benção que as aturdia em nome de alguma divindade que ele sequer era capaz de se lembrar.
—Eu não entendo.
O homem carregado pelo cavalo vomitou sangue, e cada espasmo em seu corpo parecia causar uma dor que os mais treinados exércitos não seriam capazes de suportar.
—Então eu lhe farei entender.
Ele rolou no lugar, e o cavalo partiu, deixando-o cair com um baque que fez o outro oscilar, tamanho impacto que o estrondo dos ossos pareceu causar. Com um esforço sem tamanho, o homem quedado se pôs em pé, escorando o corpo no cabo da espada longa, as pernas tremulando. O outro se aproximou, ofereceu apoio, esticou os braços e foi repreendido, alvejado por um golpe sem força, sem vida, mas cheio de determinação.
—Você poderia me matar agora. Por que não o faz?
Ele não entendia. Por que mataria aquele homem? Ele sequer se lembrava de quem era, de quem era aquele cavaleiro, de que lugar era aquele.
Suas armas tinham sangue, mas ele não percebeu, ou não quis perceber.
—Por que eu o mataria?
—Pelo mesmo motivo que matou todos os outros. Desde quando você se preocupa com razão?
Algo estava errado. Tantos corpos, tantas mortes. Eram obra dele? As armas em suas mãos tinham sangue, realmente, mas um sangue de muitos, de todos. Ele tinha marcas, tinha o cansaço de quem lutara uma guerra.
—Eu não fiz isso!
O homem deslizou no lugar, a espada tombou e ele a acompanhou, os ombros estrondando nas manoplas de tantas outras ruínas de guerreiros. Sem forças, tossiu sangue para longe de si, virou-se para encarar o sol, os olhos semicerrados.
—Você não se lembra, não é? Você falhou.
—Eu... falhei?
Engoliu em seco.
Voltou seu rosto para a garota congelada, e só então sentiu o suor frio escorrer em seu corpo.
Correu.
O gelo esfriou suas mãos, que até então estavam quentes pela pressão nas armas. Deslizando os braços pela mágica, ele sentiu aquele carinho, aquele amor que tanto lhe fez falta, aquele sentimento capaz de validar as emoções e transformá-las em força, em vontade, em uma determinação capaz de cegar diante dos erros, fazendo com que toda culpa fosse esquecida, deixada para trás.
Atrás do gelo, a mulher chorava, incapaz de se mover.
E ele então lembrou.
Lembrou de si mesmo, de sua jornada em busca de resposta, em busca da salvação daquela que ele amou, daquela que conquistou seu coração de maneira irremediável, espalhando aquele sentimento na forma de uma doença sem cura, de uma praga que o assolou e destruiu, fazendo de sua vontade ruína. Ele a viu ser alvejada pelo caos, e a magia a aprisionou pela eternidade, mantendo-a congelada para que o tempo não mais corresse, e ele não teria o relógio ao seu lado durante a caçada pelo resgate.
Com lágrimas nos olhos, ele reviveu todos os momentos que o levaram àquele lugar: o mundo que o recepcionou como única opção de cura, a força que adquirira de maneira impensável, o pacto que fizera sem medir escolhas ou consequências, sem nem mesmo pensar. Tudo o que lhe fora oferecido fora aceito, não eram escolhas, eram obrigações. Ele avançou, tornou-se inimigo do mundo na busca incomensurável por aquilo que deveria inexistir, matou e matou demais, sem hesitar nenhuma vez, pois vida nenhuma lhe importava num cenário onde o amor que encontrara naquele anjo não mais existia.
E ele matou hordas e exércitos, livrou-se de generais, venceu os maiores heróis do mundo, e agora estava ali, tendo todo o sacrifício que lhe fora cobrado ao seu redor na forma de um banho de sangue, e sua esposa, sua razão de viver, ainda congelada para todo o sempre.
—Eu... falhei.
O general se arrastou até os seus pés, sem se importar com armas, com proteções, com nada. Ele morria, e não se importava nem mesmo com a vida.
Tinha sua última arma ali, nas palavras.
—Você fraquejou.
O homem sentiu-se tremer.
Abraçado à cela de sua amada, deixou-se chorar como criança, tomado pela responsabilidade de tantas vidas destruídas, de tantas famílias tornadas cinzas. Quantos não foram os homens que perderam suas esposas diante daquele desejo inviável? Quantas não foram as esposas que viveram na solidão conforme seus maridos jaziam em combate? As crianças, as escolas, os doentes; tudo era culpa dele.
Ele fora um vilão, ainda que agindo pelos próprios instintos.
Chorou sem que conseguisse parar.
—Eu falhei, meu anjo. Eu falhei.
O general, aos seus pés, sentiu-se satisfeito. Seu mundo estava morto, mas ele salvara ao menos uma vida da perdição. Após tantas décadas de guerras e conflitos, ele finalmente deixou-se descansar, exausto.
E o homem chorou, mas de que adiantaria o choro? Ele se perdera numa vontade de remediar o irremediável, de consertar um erro tendo como base tantos outros erros, passando por cima de inocentes por ver apenas a cegueira do egoísmo de seu único desejo de ter de volta aquilo que ele mais amava na vida.
—Eu te amo.
A mulher, dentro do cristal, o escutava, como sempre escutara. Por dentro, ela chorava num sofrimento irreparável, torturada ao ter de assistir o amor de sua vida agir de maneira impensada, de fazer o possível e o impossível para tê-la de volta, e ela não poderia culpá-lo. A dor que sentia não era pelo fato de vê-lo fazer tanto por ela, ainda que tudo fosse errado. A dor que sentia era ainda mais aguda, por imaginar-se na situação inversa, estando ela do lado de fora, sabendo ser capaz de fazer tanto quanto, senão mais, por ele. Tornar-se-ia vilã, de malícia sem igual, caso fosse isso necessário para ter de volta o amor daquele que um dia se declarou para ela com uma sinceridade que não mais se encontra.
Pensando assim, mantinha-se ali, gélida, sem que força de vontade alguma pudesse lhe libertar do mais simples dos encantos, cujas proporções se extinguiriam caso a crença da prisioneira superasse o desejo do mago que a alvejou; ao mesmo tempo, do outro lado das paredes cristalina, o homem mostrava uma força sem igual, mas de que lhe adiantou senão na contribuição da extinção de um mundo?
Eles estavam ali, lado a lado, tão pertos, mas nunca antes estiveram tão distantes, e assim teriam de sobreviver até que os dias infinitos chegassem ao fim.

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