Até a próxima!
Tão
Perto, Tão Distante
Ele
não recordava nem mesmo seu próprio nome.
Quando
abriu os olhos, o mundo todo pareceu novo. A realidade tinha cores que ele
conhecia, seja no azul do céu ou no marrom terroso do solo acidentado, e também
no alvo das nuvens e no negro de seus fios. Era tudo familiar, ao mesmo tempo
em que perversamente desconhecido. Onde ele estava? Era seu mundo, seu lar, sua
morada, ou talvez não fosse nada daquilo. Tudo era estranho, mas poderia ele
ser o estranho ali, um homem que não fazia parte do grupo de tantos outros
homens que respiravam —ou tentavam com todas as forças —ao seu redor.
Quase
todos mortos ou mutilados.
Estendia-se
à sua frente um jardim de corpos e destroços, e a terra se tornava barrosa e
escarlate na mistura asquerosa que se fazia do sangue e do solo, e ambos eram
um só, algo sem nome, sem escrúpulos, sem pudor. Braços e pernas, torsos e
cabeças, armas e armaduras estilhaçadas por uma guerra cujas limitações se
perderam muito tempo antes do mísero início.
E
ele ali, no meio de tudo, sem que se lembrasse de nada.
Caminhou,
no silêncio pavoroso daquela paisagem melancólica e sombria, buscando no odor
da morte, na visão fúnebre de infindáveis vidas perdidas, memórias do que ele
fora ou era ou deveria ser, mas nada. Tudo era caos e desordem, resquícios de
um louco embate entre duas nações, duas forças adversas e poderosas, dois
estandartes distintos, cuja união parecia inimaginável, e assim seria pela
eternidade, ainda que os ideais e as metas se tornassem similares.
Foi
quando ele viu, com seus olhos de cor surreal, o rosto que lhe fez perder a
noção da vida.
Ela
era linda, mas linda seria uma palavra de pouco efeito se comparada á beleza
daquela mulher. Seus olhos brilhavam numa existência angelical, e isso o homem
sabia ao vê-la de olhos fechados, adormecida, gélida atrás de uma mágica
substancial, uma feitiçaria capaz para poucos e valorosos encantadores, uma
prisão cristalina que manteria seu corpo ali, fervoroso na mais fria das
superfícies, rumando para um congelamento que não a permitiria envelhecer,
sorrir ou morrer.
Trajada
em vestimentas tão suaves quanto a própria brisa, a mulher abraçava o próprio
corpo, tomada por uma carícia que lhe permitia sentir a vida dentro de si, o
sangue circulando vagaroso e frio, quase que inerte nas trilhas de veias, e
assim ela ficou por muito tempo, os lábios arroxeando pela sensação, e assim
ficaria por anos sem caso um herói de valor não a salvasse, sacrificando a vida
numa empreitada que lhe permitisse afrontar a mágica que a cercava e retirá-la
dali, garantindo uma nova vida àquela princesa de beleza sem igual.
O
homem, imerso num território caótico, esqueceu-se de toda a morte, de todas as
atrocidades que o circundavam, e a admirou, parado à frente do imenso cristal
que aprisionava seu corpo, golpeando vez ou outra para ter certeza de que
aquilo era real, de que ela era real, de que ele e todo o resto não eram
somente um sonho confuso.
—Quem
seria capaz de fazer isso?
Ele
ouviu a sua voz depois de tanto tempo e estranhou. Ela estava mais grossa.
Avaliando seu corpo, seus braços longos e suas cicatrizes, ele teve certeza de
que era um adulto, um guerreiro de valor, talvez, um dos cavaleiros dos
exércitos que se afrontavam. Quem era ele?
Algo
se moveu no horizonte.
Com
olhos despreparados, o homem aguardou até que a silhueta se tornasse
reconhecível, e ali viu um cavalo a carregar uma montaria atirada em seu
corpanzil.
A
primeira vontade lhe dizia para correr até lá, oferecer ajuda, verificar aquilo
—ou aquele —trazido pela montaria, mas não foi isso o que fez. Não o fez
porque, mesmo em silêncio, a garota lhe dizia para ficar ali, ao seu lado, para
não deixá-la sozinha, não mais, porque a solidão era ruim, mais fria do que
todo aquele gelo que a aprisionava.
—Você
está bem?
O
homem sobre o cavalo não estava bem. Ele estava morrendo, com cicatrizes
espalhadas por todo o corpo, cortes tenebrosos trespassando a armadura em
destroços e órgãos vomitados pelo corpo torneado. Não estava nada bem, era
fácil perceber. Não montava o cavalo, mas sim escorava seu sofrimento no dorso
daquele animal, deixando-se levar no movimento rítmico das patas de sua
montaria, que talvez nem mesmo fosse sua e sim de um dos incontáveis corpos que
jaziam naquele lugar.
Ele
se aproximou o máximo que pôde, e só então o desmemoriado viu que, nas mãos de
seu companheiro, uma espada era carregada sem força alguma.
—Como
pôde?
A
voz do outro soava branda, dotada de vontade, mas não de capacidade. Ele
morria.
—Quem
é você?
—Não
zombe de mim. Eu não disse que desisti.
Quem
era aquele cara? As hipóteses eram muitas, cada qual tão improvável quanto a
anterior, senão mais. Ele tinha uma arma.
O
homem olhou para suas mãos, sentindo o peso do metal incomodá-lo.
Ele
também tinha armas. Duas espadas longas, lâminas banhadas por mágica, radiantes
na benção que as aturdia em nome de alguma divindade que ele sequer era capaz
de se lembrar.
—Eu
não entendo.
O
homem carregado pelo cavalo vomitou sangue, e cada espasmo em seu corpo parecia
causar uma dor que os mais treinados exércitos não seriam capazes de suportar.
—Então
eu lhe farei entender.
Ele
rolou no lugar, e o cavalo partiu, deixando-o cair com um baque que fez o outro
oscilar, tamanho impacto que o estrondo dos ossos pareceu causar. Com um
esforço sem tamanho, o homem quedado se pôs em pé, escorando o corpo no cabo da
espada longa, as pernas tremulando. O outro se aproximou, ofereceu apoio,
esticou os braços e foi repreendido, alvejado por um golpe sem força, sem vida,
mas cheio de determinação.
—Você
poderia me matar agora. Por que não o faz?
Ele
não entendia. Por que mataria aquele homem? Ele sequer se lembrava de quem era,
de quem era aquele cavaleiro, de que lugar era aquele.
Suas
armas tinham sangue, mas ele não percebeu, ou não quis perceber.
—Por
que eu o mataria?
—Pelo
mesmo motivo que matou todos os outros. Desde quando você se preocupa com
razão?
Algo
estava errado. Tantos corpos, tantas mortes. Eram obra dele? As armas em suas
mãos tinham sangue, realmente, mas um sangue de muitos, de todos. Ele tinha
marcas, tinha o cansaço de quem lutara uma guerra.
—Eu
não fiz isso!
O
homem deslizou no lugar, a espada tombou e ele a acompanhou, os ombros
estrondando nas manoplas de tantas outras ruínas de guerreiros. Sem forças,
tossiu sangue para longe de si, virou-se para encarar o sol, os olhos
semicerrados.
—Você
não se lembra, não é? Você falhou.
—Eu...
falhei?
Engoliu
em seco.
Voltou
seu rosto para a garota congelada, e só então sentiu o suor frio escorrer em
seu corpo.
Correu.
O
gelo esfriou suas mãos, que até então estavam quentes pela pressão nas armas.
Deslizando os braços pela mágica, ele sentiu aquele carinho, aquele amor que
tanto lhe fez falta, aquele sentimento capaz de validar as emoções e
transformá-las em força, em vontade, em uma determinação capaz de cegar diante
dos erros, fazendo com que toda culpa fosse esquecida, deixada para trás.
Atrás
do gelo, a mulher chorava, incapaz de se mover.
E
ele então lembrou.
Lembrou
de si mesmo, de sua jornada em busca de resposta, em busca da salvação daquela
que ele amou, daquela que conquistou seu coração de maneira irremediável,
espalhando aquele sentimento na forma de uma doença sem cura, de uma praga que
o assolou e destruiu, fazendo de sua vontade ruína. Ele a viu ser alvejada pelo
caos, e a magia a aprisionou pela eternidade, mantendo-a congelada para que o
tempo não mais corresse, e ele não teria o relógio ao seu lado durante a caçada
pelo resgate.
Com
lágrimas nos olhos, ele reviveu todos os momentos que o levaram àquele lugar: o
mundo que o recepcionou como única opção de cura, a força que adquirira de
maneira impensável, o pacto que fizera sem medir escolhas ou consequências, sem
nem mesmo pensar. Tudo o que lhe fora oferecido fora aceito, não eram escolhas,
eram obrigações. Ele avançou, tornou-se inimigo do mundo na busca incomensurável
por aquilo que deveria inexistir, matou e matou demais, sem hesitar nenhuma
vez, pois vida nenhuma lhe importava num cenário onde o amor que encontrara
naquele anjo não mais existia.
E
ele matou hordas e exércitos, livrou-se de generais, venceu os maiores heróis
do mundo, e agora estava ali, tendo todo o sacrifício que lhe fora cobrado ao
seu redor na forma de um banho de sangue, e sua esposa, sua razão de viver,
ainda congelada para todo o sempre.
—Eu...
falhei.
O
general se arrastou até os seus pés, sem se importar com armas, com proteções,
com nada. Ele morria, e não se importava nem mesmo com a vida.
Tinha
sua última arma ali, nas palavras.
—Você
fraquejou.
O
homem sentiu-se tremer.
Abraçado
à cela de sua amada, deixou-se chorar como criança, tomado pela
responsabilidade de tantas vidas destruídas, de tantas famílias tornadas
cinzas. Quantos não foram os homens que perderam suas esposas diante daquele
desejo inviável? Quantas não foram as esposas que viveram na solidão conforme
seus maridos jaziam em combate? As crianças, as escolas, os doentes; tudo era
culpa dele.
Ele
fora um vilão, ainda que agindo pelos próprios instintos.
Chorou
sem que conseguisse parar.
—Eu
falhei, meu anjo. Eu falhei.
O
general, aos seus pés, sentiu-se satisfeito. Seu mundo estava morto, mas ele
salvara ao menos uma vida da perdição. Após tantas décadas de guerras e
conflitos, ele finalmente deixou-se descansar, exausto.
E
o homem chorou, mas de que adiantaria o choro? Ele se perdera numa vontade de
remediar o irremediável, de consertar um erro tendo como base tantos outros
erros, passando por cima de inocentes por ver apenas a cegueira do egoísmo de
seu único desejo de ter de volta aquilo que ele mais amava na vida.
—Eu
te amo.
A
mulher, dentro do cristal, o escutava, como sempre escutara. Por dentro, ela
chorava num sofrimento irreparável, torturada ao ter de assistir o amor de sua
vida agir de maneira impensada, de fazer o possível e o impossível para tê-la
de volta, e ela não poderia culpá-lo. A dor que sentia não era pelo fato de
vê-lo fazer tanto por ela, ainda que tudo fosse errado. A dor que sentia era
ainda mais aguda, por imaginar-se na situação inversa, estando ela do lado de
fora, sabendo ser capaz de fazer tanto quanto, senão mais, por ele.
Tornar-se-ia vilã, de malícia sem igual, caso fosse isso necessário para ter de
volta o amor daquele que um dia se declarou para ela com uma sinceridade que
não mais se encontra.
Pensando
assim, mantinha-se ali, gélida, sem que força de vontade alguma pudesse lhe
libertar do mais simples dos encantos, cujas proporções se extinguiriam caso a
crença da prisioneira superasse o desejo do mago que a alvejou; ao mesmo tempo,
do outro lado das paredes cristalina, o homem mostrava uma força sem igual, mas
de que lhe adiantou senão na contribuição da extinção de um mundo?
Eles
estavam ali, lado a lado, tão pertos, mas nunca antes estiveram tão distantes,
e assim teriam de sobreviver até que os dias infinitos chegassem ao fim.
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