domingo, 12 de agosto de 2012

WN - Baile de Espíritos - 4


IV

Escutei as sonoras pancadas de um martelo gracioso.
Ninguém trabalhava, não mais, mas ali, tempos antes, um homem trabalhou. Seu corpo caía sobre o balcão, inerte, os olhos saltados em órbitas, o sangue fresco nos lábios. A mágica perfurar suas costas, deixando correr livre a brisa mórbida que ficara presa naquele estabelecimento.
O espectro do marceneiro batia um martelo contra a madeira.
Nunca mais poderia ele esculpir sua arte, criar as filhas que jamais tivera a oportunidade de gerar. Ali, ao lado do corpo e do fantasma, incontáveis imagens lapidadas na madeira ilustravam garotas sorridentes, meninos abraçados a seus brinquedos, filhos artificiais, incapazes de sorrir ou chorar, mas ainda assim merecedores de carinho.
Nas batidas do martelo preciso, escutei do marceneiro seu conto sofrido.
Ele se apaixonou, quando jovem. Amou, perdido nos beijos e nos desejos, tomado pelo anseio de uma paixão fervente. Amou, amou com todas as forças, e ela também o amava assim, ou talvez não. Eles queriam filhos. Não que fosse uma bela escolha, o mundo não os acolheria como deveria, mas eles os desejavam. Descobriram, tempos mais tarde, que o marceneiro era uma árvore sem frutos, e ele chorou, infeliz, e ela não o agraciou, e sim partiu, abandonando-o, deixando para trás o sofrimento, esquecendo-se do amor, livre da responsabilidade, da virtude, de tudo.
 Ele viveu, até então, fez o seu melhor para suas filhas de madeira. Era um pai solteiro, um pai sem crias, um pai infeliz, mas um pai.
E pais não sobrevivem à guerra.
O amor extinguiu a vontade daquele homem, e ele partiu sem dor, sem se incomodar. Perdera muito antes o que tinha de mais especial. O resto não lhe importava.
As portas da loja se abriram com um sopro sobrenatural, e o espírito do marceneiro deixou seu martelo cair, dissipando-o ainda no ar. A noite penetrou a loja de maneira áspera, fez cair todas as filhas do pai infértil, deixou-as partir no chão. Ele fugiu, se escondeu, mas viu seu sonho ruir e, assim, entregou-se, devorado pela sombra.
Eu senti o frio da morte daquele homem. Ouvi seu grito ao deixar de existir.
Ouvi o grito de milhões de almas.
Por último, ouvi o silêncio de meu medo.
Era alto demais.

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