II
Eu
encontrei um homem enforcado.
Seus
pés balançavam ao vento. A pele já estava cinzenta, rasgada pela fome de corvos
e urubus. Cheirava a carniça, ou algo pior. A corrente em seu pescoço era um
tormento, extinguindo sua vida sem dificuldade, deixando-o ali, dependurado num
poste de iluminação, sacolejando ao vento.
Quando
dei por mim, ele estava ao meu lado, translúcido e fúnebre. Tão morto quanto
eu, tão morto quanto seu corpo abandonado, porém espectral, fantasmagórico e
assombroso.
O
homem enforcado choramingava sua história, e eu a escutei.
Ele
era um trabalhador. Tinha uma família, uma esposa e uma filhinha adorável. Ele
disse seus nomes, mas eu não pude compreender. A voz dos mortos é estranha.
Nessa época de caos e catástrofes, o conflito tirava tudo de todos, e não foi
diferente com ele. Em fuga, viu sua vida ser privada de alegrias quando a morte
assolou sua mulher e sua prole. Vazio, tão vazio quanto o vento fúnebre que
soprava na mesma noite, ele tornou-se um fantasma antes mesmo de morrer. Da
alma nada restava; somente um corpo sem vontade, rastejando por escombros numa
eternidade que durava poucos segundos.
Foi
quando encontrou a corrente.
Na
corrente, viu o problema, mas ela era a solução. Parecia chamá-lo. Prometera a
ele a família de volta. Estariam juntos para sempre, felizes para sempre, como
um conto de fadas. Ele aceitou, obviamente. Era tentador demais. Deixou que a
corrente se enrolasse a seu pescoço, escalou, amarrou-a, e então saltou,
balançando por minutos, por horas, por um tempo que o ar restante não lhe
permitiu contar. Respirou a sujeira do mundo, tossiu, morreu várias vezes, mas
aquilo não lhe causava dor.
Morrera
muito tempo antes. Dor nenhuma seria como aquela.
Eu
assisti o homem enforcado chorar. Tive a impressão de ver seu corpo, ali
dependurado, derramar lágrimas também.
Do
escuro, nasceu o silvo.
O
homem se desesperou. Tentou fugir, escapar do que quer que fosse aquele ruído,
mas a luz negra se movia em velocidade inatingível. O espectro se dissipou num
lampejo, deixando para trás um grito que soava como música, a música tenebrosa
de um baile ritmado em velório, uma valsa melodiosa, dramática, sem a
possibilidade de um final feliz.
Do
escuro veio, ao escuro retornou, e eu fiquei ali, sozinha.
Antes,
fora eu, o fantasma e o corpo.
Agora,
eu e o corpo.
Eu,
o corpo e aqueles olhos que eu não via.
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