quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

[A Balada do Caçador] - 6. Irmão de Sangue Distinto

Olá, companheiros!
Chegamos ao sexto capítulo de 'A Balada do Caçador', meu projeto de Light Novel iniciado após a postagem sobre essas novelas de origem japonesa, com descrições simplificadas e auxiliadas por ilustrações. Àqueles que ainda não leram os capítulos anteriores, pulem diretamente para eles usando o sumário logo abaixo, ou encontrarão spoilers fatídicos! Espero que estejam gostando da história. Falta pouco para acabar, o que a deixará abaixo da média de palavras, que circunda a faixa das 20000 (este capítulo acabou por meados de 12300). Enfim, é apenas o primeiro projeto de muitos outros, portanto, espero que gostem bastante.
Sumário das Postagens Anteriores
O QUE SÃO LIGHT NOVELS?
PERSONAGENS
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5



VI

Irmão de Sangue Distinto

Eloy matou todos.

Alguém aplaudiu. Era Abel.

O ferimento em seu rosto estava grotesco, mas o sangue parara de escorrer. Secava rapidamente, escurecendo e espalhando seu odor fétido por toda a plateia vazia.

“O que você está fazendo?”, perguntou Eloy.

As palmas cessaram.

“Estou te aplaudindo, não é óbvio? Depois desta performance fabulosa, merece mais do que aplausos, meu caro Eloy. Você é um pianista sem igual, sabia? Um pianista que sequer precisa usar seu piano para oferecer ao seu público uma excitação sem igual”.

Ao lado de seu assento, infindáveis corpos jaziam, todos mortos pela fúria de Eloy. Ninguém se movia. Era possível escutar a respiração dos caçadores.

“Onde estamos?”

“Não consegue definir?”

“Este não é o inferno. Saberia dizer se fosse”.

“Certamente, companheiro, deve ser fácil entender quando se está no inferno. Será que tudo é um mar de chamas e magma, como os livros dizem? Será que os demônios que caçamos realmente são fugitivos de uma prisão de torturas sem fim, sobreviventes de castigos impensáveis? Como seria o inferno para você, Eloy?”

Eloy pensou.

“Talvez eu já esteja no inferno. Sua presença me enoja, Abel”.

Risos.

“Adoro sua ironia”.

“Onde estamos?”

O sorriso desapareceu.

“Desça daí. Sua chance de brilhar já terminou. Seus quinze minutos de fama estão esgotados. Agora, temos outro espetáculo para assistir”.

“Do que está falando?”

“Saia do palco, Eloy. A nova atração já vai começar”.

Eloy obedeceu, mas não por acatar a ordem de Abel. Algo se movia próximo a ele, não esperou para saber o que era. As cortinas se fecharam mais uma vez, algo grunhia atrás delas. Eloy se afastou, sentou-se distante de Abel, livrando os assentos da pilha de corpos que formada por sua tirania.

“Não precisa ter medo de mim”, zombou Abel. “Você não é o mais forte? Não me superou há muito tempo?”

“O que está acontecendo aqui, Abel?”

“Vamos ver uma história, apenas nós dois”.

“Que história?”

“Você gosta da Bíblia, Eloy?”

Eloy não era religioso. Aurora estava sempre lendo algum trecho do livro divino, sempre memorizando passagens, capítulos e versículos, mas não ele. Escutava, por vezes assentia, concordando com os ensinamentos, mas nunca se interessou por uma religião. Não duvidava da existência de Deus, muito pelo contrário. Torcia para que fosse real, pois muita coisa pior do que Deus existia nos becos escuros. Achava graça, entretanto, ao ver as pessoas se apoiarem em Deus para todas as suas coisas. Fanatismo, proveniente de aproveitadores, que transformavam a religião ingênua e sincera numa fábrica de fortunas. Isto sim era uma tolice.

Mas a Bíblia era interessante, no mínimo. Não por transmitir a imagem de Deus, suas histórias e suas palavras. Era interessante por mostrar como os homens pensavam, como deveriam pensar. Por mostrar exemplos a serem seguidos, arquétipos presentes em todas as sociedades. Sua finalidade, de ensinar, fora esquecida. Era pouco mais do que um livro de normas, um amontoado de regras que os santos tinham de seguir para trilhar o caminho de Deus.

Eloy não gostava da Bíblia.

“Não a admiro. Os homens a usam como uma arma”.

“Talvez. Ainda assim, conhece algumas de suas histórias?”

“Aurora era religiosa”.

“Entendo. Acredita nessas histórias, Eloy?”

Pensou.

“Não sei. Acho que não”.

“Algumas são reais”.

“Como sabe? Estava do lado de Jesus quando ele veio à Terra, Abel?”

O comentário não foi intencional, mas Eloy não pôde evitar a ironia.

“Sei porque a Voz me contou, Eloy. Já parou para escutá-la?”

“Não. Eu a odeio”.

“Você odeia a Voz, Eloy?”

“Sim. Eu a odeio”.

Abel gargalhou.

“Temos aqui a maior prova de sua tolice. A Voz é real, é poderosa. A Voz é onipresente. Você, acima de todos, deveria acreditar na Voz, cultuá-la, escutá-la a todo momento. Mas não o fez, pois a odeia! Eloy, meu querido caçador, você causou todo o sofrimento que o assola. Você é o verdadeiro responsável por toda essa confusão que martiriza sua mente”.

As palavras não faziam sentido.

“Está sugerindo que eu chame essa Voz de Deus?”

“Não seja idiota. Esqueçamos Deus, por ora. A Voz é a Voz, e você deveria acreditar nela. Você não acredita em mim, Eloy? Não em minhas palavras, tenho certeza, mas em minha existência? Pode negar que eu existo?”

“Não, infelizmente”.

“Pois assim é a Voz, Eloy. Ela está relacionada. Faz parte de você. E você a odeia”.

“Também odeio você, Abel, e mesmo assim sei que você existe”.

“Me odeia por outro motivo, Eloy. Sabe o por quê?”

Fez que não com a cabeça.

“Você me odeia porque eu te matei”.

Sem sentido.

“Está falando asneiras”.

“Eu sempre falo asneiras, não é? Você nunca me escuta. Ainda pior, você nunca escuta a si mesmo, nem mesmo à Voz”.

“Asneiras”.

“Seu nome era uma asneira, Eloy? Por isso o esqueceu? Por isso o abominou, extinguiu de sua existência, chamou a si próprio de um modo diferente do que sua mãe decidiu?”

A cabeça doía, confusa.

“Asneiras”.

“Você desrespeitou sua mãe, Eloy. A nossa mãe”.

As cortinas começaram a se abrir.

“Eu também não me lembrava, mas ouvi a Voz. Ela me lembrou. Agora, ela vai te lembrar também”.

Apontou para o palco, Eloy se virou.

Havia dois bonecos de madeira. Um vestia preto, o outro, branco. Um tinha uma coroa, o outro, cabelos desajeitados. Um tinha um brinquedo, o outro, nada.

A Voz estava lá, em todo lugar.

“Uma família teve dois filhos”, narrou ela. “Gêmeos, ainda que diferentes entre si. Ambos especiais, ambos nascidos para brilhar. Ambos com olhos capazes de enxergar o que ninguém mais enxergava. Um era valente, o outro, temeroso. Chamaram o valente de Cain, por sua coragem. Chamaram o irmão de Abel, por seu temor”.

Eloy se espantou. Ao longe, Abel mostrava-se frio.

“Cain era talentoso. Falou, andou, demonstrou sua arte, tudo isso muito antes de Abel ser chamado de gente. Cain era o orgulho, Abel, a desgraça. Assim, Cain trouxe riqueza àquela família. Abel trouxe a doença”.

Os bonecos correspondiam à narração, dançando com movimentos vagarosos, sem música alguma para acompanhá-los.

“Cain era mágico. Abel também era, mas não sabia usar sua magia. A família se maravilhou com o filho prodígio, deu a ele tudo o que tinha. Ao outro, deram apenas o nome, e nada mais era necessário. Assim, Cain e Abel cresceram, juntos, mas separados pelo talento e pela inveja”.

“Cain não era bom, mas sabia atuar. Às vezes, errava. Jogava a culpa em Abel, e tudo estava bem. Ele era castigado, recebia as pancadas destinadas ao seu irmão, chorava trancado em seu quarto. Cain recebia abraços, gratificações. Cain era tudo. Abel, nada”.

“Isso está diferente da Bíblia”, disse Eloy, horrorizado com aquela história, que tanto lhe era familiar.

“Você mesmo disse que não gostava da Bíblia, Eloy, por que se importa com isso agora?” Abel era bom com as palavras, usava-as como agulhas. “Escute a história, não vai se arrepender”.

A Voz continuou.

“Um dia, Abel se revoltou. Tinha a magia, sabia dela, mas nunca soubera como usar. Cain era poderoso, entretanto, mas isso não abalou a vontade do irmão rejeitado. Enquanto Cain dormia, Abel rastejou até seu quarto. Jogou-se sobre ele, cortou sua língua para que não pudesse mais falar mentiras. Suprimiu seus gritos com a magia; deu certo, para sua surpresa. Cain cuspia sangue, Abel cuspia ofensas. Golpeou, sem piedade, fincou sua estaca no coração do irmão, sugou dele toda a vida, a vontade, o talento. Este era seu plano. Algo deu errado”.

Os bonecos de madeira lutavam no palco, rolavam de um lado para o outro, trocavam golpes. Eloy se virou para Abel, na plateia, encontrou seu único olho focado em si. Abel tinha um sorriso diferente do convencional. Um sorriso malicioso. Um sorriso verdadeiro.

“Sugou tudo o que havia de bom, mas também de ruim. Tirou de Cain o sangue de sua família, o sofrimento, a dor, a morte. Tirou tudo. Então, a magia tirou tudo do próprio Abel, e sua raiva o consumiu. Ali, Cain morreu, mas voltou a viver, pois Abel roubou até mesmo a morte de seu irmão. Tinha de oferecer algo em troca, mas não tinha nada. Tinha ódio e descontrole, os perdeu. Perdeu também a morte, não conseguia controlar aquele poder. Os pais batiam à porta, apavorados. Abel gritava, Cain não conseguia”.

Eloy sentia o corpo tremer, tinha medo. Abel, entretanto, parecia excitado. Aquela história era terrível, mas parecia real, assustadoramente real. Os bonecos de madeira se destrinchavam; a Voz não parava de narrar.

“Tudo aquilo se uniu, era mais poderoso do que ambos, do que todos. Era irreal, não tinha forma, ainda assim era forte. E aquilo fugiu, escapou pela janela, deixou que os irmãos, que sequer tinham o mesmo sangue naquele momento, sofressem pela vida que escolheram. E os pais arrombaram a porta, entraram em desespero ao ver a desgraça de suas famílias. Castigaram Abel, jogaram-no para morrer num rio, mas Abel não era capaz de morrer. Rezaram por Cain, esperando que ele morresse em sua cama, mas Cain também não morreria”.

“Assim, separados, entenderam o que tinham feito para suas vidas. Abel foi tomado pelo ódio, Cain retribuiu. Entenderam que, enquanto aquilo que fugiu de seus corpos não retornasse, estariam incompletos, incapazes de seguir em frente. A mãe entregou sua vida aos deuses, pediu para que o céu lhe ajudasse, sacrificou tudo o que tinha em nome de sua crença. Morreu, e nada estava resolvido”.

Os bonecos terminaram seu confronto, ambos mutilados pela fúria. Caíram, inertes, rolaram pelo chão. O palco estava vazio.

“E aquilo que fugira também estava incompleto. Era poderoso, era maligno, mas nada poderia fazer enquanto suas facetas coexistissem. Precisava que morressem, que deixassem de existir, só assim se tornaria real. Tinha toda a ambição de Cain, toda a inveja de Abel, a maldade e o poder de ambos. Queria ser real. Precisava de sangue, de vida, de morte. Precisava reunir os irmãos de sangue distinto, que um dia foram gêmeos, fazer com que ambos se enfrentassem uma última vez. Precisava que a morte reinasse onde um dia reinou, que aquele que matou voltasse a matar. Eles tinham de morrer”.

Abel se levantou e aplaudiu.

As cortinas se fecharam.

“Entende agora, Eloy, o que a Voz esteve tentando lhe dizer todo esse tempo? Ou será que deveria chamá-lo de Cain?”

“Essa história não é verdadeira”, disse Eloy, mas hesitava. “Isso não pode ser verdade!”

“Vai fugir até mesmo disso, irmão? Vai negar a própria essência, os próprios erros de seu passado nojento?”

“E você, o que pretende? Vai dar a ele o que deseja, entregar nossas vidas para que essa coisa se torne poderosa?! Vai se entregar assim?!”

Abel gargalhou, estava completamente insano.

“Você não entendeu, não é? A Voz é poderosa porque NÓS fomos poderosos, Eloy. Ela precisa que nós dois estejamos mortos para que possa existir. Precisa de nossas vidas para se tornar real”.

“O que quer dizer?”

“O que eu quero dizer é que, caso apenas um de nós morra, ela nunca mais poderá existir. Aquele que sobreviver terá o poder de ambos, será o verdadeiro rei. Quer saber o que eu pretendo, Eloy?”

Eloy se horrorizou.

Abel abriu os braços, ergueu-os com violência. Todo o teatro se suspendeu do solo, pulverizado por uma força maior, atirado para o céu com uma explosão sem cor e sem forma.

“Eu pretendo matar você, irmão, e ter aquilo que você tirou de mim: a vida”.



Até a próxima!

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