segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

[A Balada do Caçador] - 3. Medo e Fraqueza

Olá, companheiros!
Seguindo em bom ritmo no projeto de light novel, trago hoje o terceiro capítulo de 'A Balada do Caçador', um pouco maior do que de costume. Não vou prolongar a postagem, pois há mais de 1800 palavras para se ler à frente, hehe.
Situe-se nas demais postagens:
O QUE SÃO LIGHT NOVELS?
PERSONAGENS
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2


III

Medo e Fraqueza

Eloy girou sua lâmina, fincou-a no corpo do vampiro, deixou-o agonizar, vomitar sangue.

Nos últimos dias, sua cidade estava tumultuada. Houve mais casos de assassinatos, cada vez mais estranhos, nenhum suspeito era encontrado. As aparições do sobrenatural eram mais constantes, monstros cada vez piores abandonavam seus esconderijos para desbravar as ruas escuras, correr sob a lua, matar e zombar dos mortais. Eloy tinha trabalho a fazer.

A polícia estava confusa, a série de mortes estava cada vez mais bizarra. A televisão sempre apontava os últimos casos, noticiando aquilo que lhe agradava, dramatizando da maneira que somente a mídia sabia fazer.

“Nesta manhã foram encontrados dois corpos num apartamento pequeno”, dizia a apresentadora de telejornal. “Michelle e Vanessa Edrins eram gêmeas, e foram encontradas na banheira de sua moradia, com marcas de violência e agressão. Os pais chamaram a polícia após escutar ruídos estranhos oriundos dos cômodos mais distantes, mas a resposta não chegou a tempo. As irmãs tinham nove anos incompletos, e a brutalidade demonstrada no caso chocou grande parte dos envolvidos nas investigações”.

“Não sei como alguém é capaz de fazer uma coisa dessas”, falava um dos detetives, um velho de bigode, também presente no primeiro dos casos. “Parece-me que estamos caçando um insano que deseja fama por suas atrocidades. Com esses tipos, devemos tomar muito cuidado. Eles não medem esforços para ganhar renome na mídia”.

“Vocês têm alguma suspeita?”

“Infelizmente não, mas a investigação continua em ritmo acelerado. Nossa perícia está se esforçando para obter o máximo de informações das cenas dos crimes, para que então possamos interligar os fatos e alcançar o assassino que, a princípio, é o responsável por todas essas mortes horrendas”.

A jornalista fez outra pergunta para o investigador, mas Eloy desligou a televisão. Sentado à mesa de sua casa, sozinho, como de costume, tomava seu café da manhã mergulhado em pensamentos macabros. Era estranho enfrentar aquelas criaturas, ainda que o tenha feito durante toda sua vida. Agora, a situação era diferente. Elas estavam agitadas. Estavam motivadas. Como se alguma coisa maior as incentivasse a aparecer, a se aventurar no mundo dos homens.

E havia mais. Aquelas criaturas eram apenas o começo das estranhezas. Havia a Voz, que por vezes o incomodaram com suas palavras sem sentido. Havia Nerea, a garota misteriosa que surgira após a morte de Aurora, a única que sabia a verdade sobre a esposa de Eloy. Abel, que sempre rivalizava com Eloy em suas caçadas, não mais o importunara, o que também se tornou um fato exótico. Tudo isso, somado aos pensamentos peculiares que impregnavam a mente do pianista, tornava aquela situação enlouquecedora.

Os pensamentos eram realmente macabros. Acima de tudo, Eloy se sentia tocado pelas mortes. Sentia-se próximo, como sentiu-se a Aurora. Cada rosto apresentado na televisão, cada vítima, era como uma parte de seu corpo. Por vezes, escutava os gritos.

Como se estivesse presente em cada um dos casos.

Isso o enlouquecia.

Nerea estava lá, sentada em seu sofá, o urso nos braços.

“O que vai fazer, Eloy?”, perguntava ela. Estava sempre calma, como uma sábia, ainda que fosse apenas uma criança.

“Não sei. Essas coisas estão fugindo do controle. Na noite passada, enfrentei um vampiro e dois lupinos, há tempos não via algo assim! Eles estão envolvidos com algo maior. Eu não sei dizer o quê, e isso me machuca”.

“Acho que você deveria aliviar a mente”, sugeriu ela, como uma mãe. “Você fugiu dos últimos espetáculos. Não participou de nenhuma apresentação nas últimas semanas. Até quando pretende se isolar do mundo? Você é um pianista, Eloy!”

“Não. Eu sou um caçador”.

“E um pianista, não pode abandonar o seu talento e...”

“Eu sou um caçador, Nerea. Este é meu talento. Esta é a minha obrigação. Não vou fugir deste destino”.

“Não é fugir, Eloy, deixe de ser bobo. Mas, caso continue a se esforçar dessa maneira, não vai superar a morte de sua esposa! Não vai conseguir pensar direito, não vai conseguir vingá-la!”

“Quem disse que desejo vingá-la?”

“E não deseja?”

Desejava.

Mas tinha um problema.

“Ah, esqueci que você tem um pequeno problema quanto a isso”, zombava ela.

“Do que está falando?”

“Você está confuso, Eloy. Não sabe quem é. Não sabe quem está fazendo essas coisas. Não sabe o que você está fazendo”.

Tinha um pequeno problema: medo.

Eloy temia aquelas mortes. Temia a aproximação com cada vítima, o conhecimento de seus nomes, de suas rotinas. Sabia de tudo sobre elas, ainda que todas fossem desconhecidas, que nunca as tivesse visto em toda sua vida. Conhecia cada uma das pessoas que morrera, como se estivesse estudando-as.

Isso era estranho.

“Eu não estou confuso!”, mentiu, levantou-se da mesa, deixou que seu café caísse, manchasse o tapete. “Eu apenas...”

“Apenas não sabe o que está acontecendo. É, Eloy, talvez você não esteja confuso. Talvez esteja louco. Perdendo a sanidade que lhe resta”.

“Quem é você para me falar essas coisas, Nerea?”

“Eu?”, sorrindo. “Não me dê ouvidos, Eloy. Sou apenas uma criança. Sou apenas eu, Nerea, e nada mais. Não sou confiável, não sou uma boa conselheira. Sou uma observadora, agora, uma integrante da plateia. Você é o pianista, o músico, o artista. O centro das atenções, me entende? Me mostre um final digno para a sua peça, ou as coisas vão piorar”.

Eloy perdeu o controle. Chutou uma das cadeiras, virou a mesa e todos os talheres caíram ao chão, emporcalharam sua cozinha simplória. Aurora se assustaria, correria até ele, daria um abraço para que se acalmasse. Mas Aurora não estava mais lá.

Aurora estava morta.

Eloy também.

“Quer que eu lhe dê um abraço, Eloy?”

Bufou.

“Quero que vá para o inferno”, sem pensar.

“Ora, não perca a boa educação que lhe resta, caçador. Você pode ser melhor do que isso. Como pretende enfrentar o que está por vir se mal pode afrontar seus próprios problemas?”

“Cale a boca”.

Nerea parou. Observou, admirou, então sorriu, como se chegasse a uma conclusão.

“Entendi agora!” Jogou-se de joelhos no sofá, brincalhona. “Você está com medo! É isso, está com medo de si mesmo, de todas essas mortes! Será que não sabe nem mesmo o que você é capaz de fazer, Eloy?”

“Cale a boca!”

Nerea riu alto.

“Não poderá suportar as provações quando o momento correto chegar, Eloy, se nem mesmo pode enfrentar suas próprias dúvidas, seus próprios temores”.

Eloy olhou a bagunça em sua cozinha, deu de ombros. Passou por Nerea sem dar-lhe atenção, abriu a porta de seu quarto.

Nerea estava lá, deitada em sua cama.

“Vai se deixar abalar pelo medo?”, perguntou com ironia. Sua voz atordoava a mente de Eloy.

“Por que não cuida da sua própria vida?!”

“Não é óbvio? Eu não tenho uma vida para cuidar!” Gargalhou. “Eloy, Eloy, eu pensei que você era incrível! Acreditei em você. Apostei em você! Apenas para descobrir que, na verdade, você é um tolo. Um fraco”.

Eloy deu as costas a Nerea, bateu a porta atrás de si. Ela estava lá, no sofá, outra vez. Sempre estaria.

“Você é fraco, Eloy?”

“Não sei”.

“Os fortes não hesitam. Você é um fraco, Eloy. Por isso sua vida está ruindo. Por isso sua esposa foi levada”.

Eloy tremia.

“Por que está me falando isso?”

“Porque você tem de ouvir. Porque tem de ser dito, porque alguém tem de falar! Aurora está morta, Eloy, você a enterrou! Sabe de quem é a culpa? É sua!”

“Suma da minha casa...”

“Você não pôde protegê-la, você fraquejou! Você é um fraco, Eloy, nada além de um fraco e...”

“SUMA DA MINHA CASA!”

Nerea sorriu. Levantou-se do sofá, brincou com sua pelúcia.

“Sabe, eu apostei em você, sinceramente”, disse ela. “Nunca perco uma aposta, Eloy. Espero não perder essa também”.

“Saia!”

Ela então sumiu.

Mas não a Voz.

Ela estava lá, sem nunca estar. Estava presente, estava dentro de sua mente, contaminando seus sonhos.

Eloy tentava dormir, mas as palavras de Nerea o impediam. Abriu os olhos, viu o escuro de seu quarto, sentiu-se sozinho outra vez.

Sentiu medo.

“O irmão de sangue distinto, o irmão de sangue distinto”, repetia a voz, incansável.

Eloy fechou os olhos, ignorou-a.

“O irmão de sangue distinto, o irmão de sangue distinto...”

Pensou em Aurora.

Pensou nas mortes.

Pensou em um drogado do subúrbio, correndo numa esquina silenciosa, sangrando, oscilando, morrendo. Nunca o vira, mas sabia tudo sobre ele.

“O irmão de sangue distinto, o irmão de sangue distinto...”

Chamava-se Rafael Laurence, fora um publicitário de pouco sucesso. Um viciado, sempre disposto a devanear nos alucinógenos, sempre roubando dos pais ricos para sustentar o vício que o martirizava. Acostumado com a luxúria, Rafael fugira de casa, morava nas ruas, roubava para se drogar.

Eloy sabia.

“Sangue, sangue, sangue, sangue, sangue”.

Algo dentro dele queimava.

“Morte, morte, morte, morte, morte”.

A Voz não parava.

Rafael fugia do que não podia ver, corria daquilo que o alcançaria com facilidade. Não tinha um bom físico, não era um atleta. Deixou-se urinar pelo medo, chorava pelo temor. Acreditava que era um dos traficantes para quem devia, eles sempre arrumavam cobradores estranhos, teria uma desculpa para se proteger. Em sua mente, os pensamentos eram confusos, faziam de sua fuga uma brincadeira de criança.

Eloy sabia.

“Preciso de sangue. Preciso de vida. Preciso de morte”.

A Voz era ordem, para tudo e para todos. Eloy gania, se revirava nas cobertas.

Rafael morria. Talvez antes, talvez depois.

Eloy sabia tudo sobre ele.

“O irmão de sangue distinto, o irmão de sangue distinto. Sangue, vida, morte. Sangue, vida, morte. Aquele que matou voltará a matar. Aquele que se banhou em sangue se banhará no sofrimento alheio”.

Eloy sabia. Alucinava, debatia-se, grunhia como um animal esquartejado.

Rafael estava morto. Sangrava, jazia.

Eloy sentia o cheiro de seu sangue, de sua morte. Era capaz de tocar o sangue quente e espumoso, o vómito borbulhante da epilepsia. Sentiu o gosto do sangue em seus lábios, proveniente do largo sorriso no estômago de Rafael, por onde o corpo se deixava vazar.

“Aquele que matou voltará a matar. Aquele que se banhou em sangue se banhará no sofrimento alheio”.

Havia alguém lá, Eloy não conseguia ver. Não era Nerea, não era Abel. Cheirava a perfume, a fragrância era boa.

Aurora.

Ela o abraçou, deslizou os lábios por seu rosto.

“Eu te amo”.

Eloy chorou.

“Você é fraco”, a voz de Nerea.

“Até quando vai matar esses monstrinhos?”, a voz de Abel.

“Eu te amo”, Aurora.

Gritos. Rafael, sem vida.

A Voz ainda ecoava.

“O irmão de sangue distinto. O sangue, a vida e a morte. Aquele prometido para o distúrbio não poderá se esconder na calmaria. Onde a morte reinou, há de reinar outra vez. Não se pode evitar o destino”.

“Você é fraco”, Nerea.

“Não pode me vencer”, Abel.

“Eu te amo”, Aurora.

Eloy explodiu.

“NÃO!”

Abriu os olhos, era dia, o sol violentava as janelas cerradas. Eloy estava em sua cama, tomado por olheiras e dores no corpo.

“O que foi isso?” falou consigo mesmo. Achou-se louco, riu de seus devaneios.

Levantou-se, arrastando os pés até o banheiro, urinou. Ria, chorava, estava insano. Tudo fora um sonho.

Apoiou-se no lavatório, olhou-se no espelho.

Havia sangue em seu rosto, em suas unhas.

Não era seu.

“Não”, incrédulo, “não pode ser! Não é verdade, não é verdade!”

Mas era. O sangue cheirava forte, incomodava.

Havia sangue no espelho, só então reparou. O sangue formava palavras, misturadas ao reflexo daquele homem destruído:

“Onde a morte reinou, há de reinar outra vez. Não se pode evitar o destino.”

Eloy gritou, golpeou o espelho, viu seu sangue vazar pelo ferimento.

Nada fazia sentido.

Até a próxima!

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