terça-feira, 20 de dezembro de 2011

[A Balada do Caçador] - 4. Sempre Amáveis

Olá, companheiros!
Aproveitando esta madrugada repleta de pernilongos e tomada por um calor infernal, trago mais um capítulo da light novel 'A Balada do Caçador', iniciada como um projeto simples, mas que acabou por crescer e se tornar um texto que gostei bastante. Cuidado, este é o quarto capítulo, se você não leu o início pode acabar encontrando spoilers sobre a história de Eloy, nosso querido pianista-caçador sobrenatural. As postagens anteriores podem ser encontradas aqui:
O QUE SÃO LIGHT NOVELS?
PERSONAGENS
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
Sintam-se à vontade para comentar sobre a trama em si ou sobre a construção do texto, que é baseado no estilo das light novels japonesas, famosas pela escrita simples e pelas ilustrações (as quais eu ainda estou devendo, mas vou dar um jeito, relaxem! hehe) que apresentam os personagens e certas situações. Sem mais demoras, vamos ao capítulo 4 desta história, espero que admirem o desenrolar!

IV

Sempre Amáveis

“Vocês ouviram os boatos?”, dizia uma velha senhora, caminhava ao lado da neta, acompanhada por outras duas idosas. “Disseram ter visto um anjo”.

Eloy achou graça. Estava melhor, o trauma do dia anterior superado, mas aquilo era demais. Mesmo ele, acostumado a lidar com o sobrenatural, a acreditar no que muitas pessoas desacreditam, tinha de rir daquele comentário. Anjos. Depois de todos os demônios que enfrentou, era difícil ouvir aquela palavra sem deixar que um sorriso irônico escapasse.

“Onde foi isso?”, perguntou uma das velhas.

“Num dos prédios do centro. Disseram que estava parado, como uma estátua, abrindo as asas enquanto observava as ruas”.

“Talvez seja um guardião”, sugeriu a terceira velha. “Um anjo da guarda, não sei”.

“Um guardião seria uma boa opção. Estamos precisando de proteção, sabem? Nossa cidade está muito violenta nesses últimos dias”.

“Realmente, as coisas estão fugindo de controle. Todos esses assassinatos, esse assassino em série, é uma loucura!”

“Não sabemos se é realmente um assassino em série, os crimes sequer têm relação entre si!”

“Ora, é difícil acreditar que tantas pessoas resolveram matar de maneira brutal e bizarra ao mesmo tempo. Lira, minha neta, você não pode comer o papel!”

A velha tirou o pedaço de jornal das mãos de sua neta, que o mordiscava. Naquele trecho, havia uma reportagem sobre a última das mortes: um filho de ricos chamado Rafael Laurence, assassinado numa rua, aparentemente enquanto fugia.

Eloy vira os noticiários, soubera da morte de Rafael, mesmo antes de acontecer. Acordar com o sangue dele em suas unhas, em seu rosto. Tudo estava muito estranho. Poderia ele estar relacionado com aquelas mortes?

Seria ele o responsável?

Eloy não era um louco bipolar, nunca tivera transtornos, sonambulismo ou algo do tipo. Se fizesse algo à noite, saberia ao amanhecer, não tinha problemas quanto a isso. Naquele dia, não saiu de sua casa, ao menos não que se lembrasse. Ainda assim, acordara tomado por sangue, enlouquecido pela Voz. Nada fazia sentido.

Assim como a morte de Aurora.

“Ainda está com medo”.

Nerea apareceu sem aviso, sua voz assustou Eloy, mas ele disfarçou. Não parou de caminhar. Ela o acompanhou, sem relutar, apressava os passos para andar ao lado do caçador-pianista.

“E você ainda me irrita”.

“Você tem uma apresentação em dois dias, correto?”

“Tenho”.

“Pretende ir?”

“Se estiver vivo. Não sei o que anda acontecendo. As coisas podem mudar sem aviso”.

“Não é tão repentino assim. Você sabe o que está acontecendo, Eloy, só não está com cabeça para entender”.

“Claro. Ouvir isso de uma criança faz da minha vida extremamente perfeita. Você tem cabeça para entender tudo, não é? Você e o seu ursinho descerebrado”.

“Não perca a paciência comigo, estou tentando te ajudar! Eu posso parecer, mas não sou uma criança!”

“Ultimamente, não me importo com o que você é ou deixa de ser. Minha vida está rumando para a ruína, perdi tudo em apenas um dia. Não sei o que está acontecendo, e não sei se quero descobrir”.

“Não me diga que pretende desistir de tudo?”

Eloy parou de caminhar. Virou-se para Nerea, riu sozinho.

“Desistir de quê?”

Ela se fez de desentendida.

“Como assim de quê? Você tem uma luta para continuar! As coisas estão acontecendo ao seu redor, você tem que proteger a sua cidade, o seu mundo!”

“E desde quando eu me tornei um herói?”

Nerea franziu o cenho, indignada. Abriu a boca duas vezes, pensando no que deveria falar, optou por emudecer. Eloy agradeceu com os olhos, voltou a caminhar, ela o seguiu.

“E sobre Aurora?”

“Ela se foi. Não vai voltar”.

“Vai aceitar dessa maneira?”

Eloy socou um poste na proximidade, enraivecido, a mão ferida voltou a sangrar. Algumas pessoas estranharam, apontaram com comentários, o pianista não se importou.

“Que outra opção eu tenho, Nerea? Ficar calado enquanto escuto suas baboseiras? Enlouquecer enquanto uma Voz inexistente enche a minha cabeça de merda? Estou cansado, Nerea, não aguento mais essas coisas! Quero sossegar, esquecer um pouco esse mundo sobrenatural. Milhões de pessoas vivem sem sequer saber que essas coisas existem, será que eu não posso fingir um dia apenas?”

“Você é idiota?”, a garota perguntou, sem se importar com a boa educação. “Muita gente está morrendo por causa desses monstros. Existem pouquíssimas pessoas para caçá-los, imagine se todos desistissem, como você está cogitando?”

“Mas nem todos vão desistir. Só eu”.

“Eu apostei em você!”

“Sinto muito, pequena, mas você vai perder. Eu sou um fraco, lembra? Essa luta não é minha. Quero que se dane todas essas criaturas”.

Afastou-se, Nerea não o seguiu.

“O que vai ser da sua cidade?!”, perguntou ela, levantando a voz.

Eloy acenou, sem se virar.

“Abel é um bom caçador, vai dar conta do recado”.

“Abel não está caçando”.

Estava errada.

“Quem disse isso?”

A voz de Abel surgiu num mau momento. Eloy parou de caminhar, virou-se apenas para ver seu rival se aproximar em suas roupas claras, um sorriso de deboche estampado no rosto.

Nerea se espantou, emudeceu pela simples presença do caçador.

“Abel”, disse ela, surpresa.

“Quantas saudades, Nerea”, zombou o caçador. “Receio que não acreditou que me reencontraria por aqui”.

“Tenho que admitir que não”.

“Sou surpreendente, tenho de concordar”, sorrindo com ironia. “Às vezes, mesmo eu me assusto com minhas capacidades. A maioria dos caçadores é assim. Não ele”.

“Você não queria as ruas para si, Abel?”, Eloy se aproximou, irritado. “Não queria poder caçar à vontade, sem um rival para lhe atrapalhar? Pois bem, estou te dando a chance. Sabe que jamais poderia me derrotar, não é? Não é mais preciso. Não vou mais lutar. Não vou roubar sua diversão. Pode caçar à vontade, proteger essa cidade, brincar como quiser. Estou fora”.

Abel gargalhou.

“O que aconteceu aqui? Fiquei fora por alguns dias e a princesa voltou a ser abóbora?”

“Está de volta, não é? Então faça sua parte, mate os monstros poderosos que tanto gosta de matar. Satisfaça sua sanguinolência. Não me incomoda mais seus hábitos”.

“Espere um pouco, Eloy, você está se enganando. Não é assim que se diz”.

“E como é?”

“Se diz eu desisto, Abel, você é o melhor caçador”, disse Abel, forçando a voz para parecer uma garotinha. “Ou então eu não aguento sem você, sou fraco e incapaz, tenho medo! O que prefere?”

“Que tal vai se danar, seu merda?”

“Esse sim é o Eloy que conheço”.

Eloy deu de ombros, se virou para partir.

“Vai desistir assim?”, Nerea tentou mais uma vez. “Tem certeza que essa é a sua escolha?”

Não respondeu.

“Deixe essa gazela fugir”, provocou Abel. “Ele sabe que não pode me enfrentar, sabe que nunca poderia. Deixe-o ir embora. Assim, talvez não atrapalhe as coisas”.

Eloy fingiu não se incomodar, mas incendiava por dentro. Era fácil abandonar tudo, jogar toda sua vida para o ar, fingir que nada daquilo era real.

Difícil era ignorar as provocações de Abel.

A noite chegou, Eloy não foi caçar. Deixou a televisão desligada, não queria escutar as notícias. Fechou as cortinas, não desejava ver a movimentação na cidade. Abel estava lá, o povo estaria a salvo, ou quase. De qualquer modo, não era mais um assunto dele.

Deitou-se, cobriu-se com um lençol, ligou o rádio.

“Vai deixar que pessoas morram enquanto você escuta blues?”

Nerea estava lá, como sempre estava em qualquer lugar. Sentada sobre a cômoda de Eloy, brincava com seu urso com ambas as mãos, sacudia-o no ar.

“Vou”.

Não era importante.

“Não é egoísmo de sua parte pensar assim? Tentou proteger Aurora e, agora que ela se foi, não pretende proteger mais ninguém?”

Pensou por um tempo, de olhos fechados.

“Não. Eu falhei com ela, não pretendo tentar outra vez. Sinto muito, mas não sou um super-herói”.

“Então é isso? Vai desistir assim, por causa do seu medo, da sua fraqueza? É assim que vai acabar a sua gloriosa vida de caçador sobrenatural?”

Eloy se enfureceu. Saltou de sua cama, jogou os cobertores e travesseiros para os lados, esbarrou no abajur, que se quebrou. Estrondou os pés no chão, marchando com ira descontrolada na direção de Nerea, esticou os braços para agarrar suas roupas.

“Escute aqui, garota, você...”

Tentou tocá-la, não pôde. Suas mãos atravessaram Nerea, encontraram a cômoda, o móvel estavam empoeirado. Nerea sorriu, deixou-se cair, trespassou o corpo de Eloy, a sensação era nauseante. Então existiu outra vez, fisicamente, virou-se para ele, desequilibrou-o com um empurrão.

“Você não pode me ferir sem que eu permita. Ninguém pode”.

“Eu não sei o que você é, e não quero saber, mas não venha me falar que a vida de caçador é gloriosa! Passei muitos anos da minha vida mentindo para a minha esposa, enquanto corria nas madrugadas atrás desses imundos que todos pensam que são lendas! Usei a mesma desculpa tantas vezes para que pudesse viajar para outros lugares, caçar algum monstro filho da mãe que estava incomodando alguma propriedade! Acha isso glorioso, Nerea? Acha que a vida de um caçador é agradável? Acha que eu gosto de enxergar essas coisas, que me fascino pela existência mística de tais atrocidades?”

“Devia se sentir importante, Eloy!”

“Eu não sou um herói!”, bramiu. “Não visto uma fantasia ridícula para proteger desconhecidos, não tenho senso de dever! A mulher que eu amei está morta por causa dessa maldita vida gloriosa, ainda acha que eu pretendo continuar nela?! Acha que eu quero ver mais gente morrer?”

“Parando de caçar, muita gente vai morrer, Eloy”.

“Não estarei perto para ver”.

“É o suficiente?”

Hesitou.

Nerea sacudiu a cabeça, inconformada.

“Eu acreditei em você, sabia? Achei que as coisas poderiam ser diferentes. Talvez tenha me enganado”.

Deu as costas para Eloy.

“Não faz diferença”.

“Faz sim. Para mim, faz toda diferença. Não importa mais, Eloy. Você fez a sua escolha, eu não posso interferir. Se essa vida medíocre é o que você quer, se vai se contentar em não vingar a morte de Aurorar, tudo bem. Façamos do seu jeito. Você já caiu uma vez, talvez não haja uma solução para isso”.

Não entendeu o que ela quis dizer, mas não se importou.

A janela estourou, atravessada pelo corpo bruto de um lobisomem, estripado pelas armas de Abel. O caçador estava lá, sorria em provocação. Acenou para Eloy e Nerea, apontou a lua cheia.

“O céu está muito bonito hoje”, disse ele. “Trouxe uma lembrança para vocês. Formam um belo casal: uma garotinha e um covarde. Comam carne de demônio hoje, amigos, é um presente. Tenho muito para matar ainda”.

E se foi, gargalhando com sua malícia.

Sempre amável.

Nerea fitou Eloy, não disse nada. Esquivou-se do corpo do lobisomem, aproximou-se da janela. Acenou uma última vez e saltou, para desaparecer na noite.

Eloy respirou fundo. Não queria aquela vida para si. Não queria caçar, não queria saber que aquelas coisas existiam. Queria esquecer, tocar piano como um homem normal, fazer valer seu talento, seu dom musical. Queria viver uma vida comum, sem sobrenatural, sem monstros, sem caça. Queria ter filhos com Aurora, levá-los para uma de suas apresentações, ensiná-los o gosto pelas partituras.

Olhou o corpo sem vida do lobisomem em sua casa, o sangue ferveu.

Odiava Abel.

Odiava a Voz, mas ela estava lá ainda assim.

“Você conhece o inferno?”

Não tinha uma resposta.

Vestiu-se, pegou suas armas, municiou-as. Preparou sua espada e sua vontade.

“Não”, respondeu, achando-se um pouco tolo. “Não conheço o inferno, seja lá quem você for. Mas Abel vai conhecê-lo, ainda hoje”.



Até a próxima!

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