domingo, 18 de dezembro de 2011

[A Balada do Caçador] - 2. Um Vulto no Crepúsculo

Olá, companheiros!
Sem mais delongas, venho trazer mais uma parte da light novel do projeto 'A Balada do Caçador'.
Os links anteriores podem ser encontrados aqui:
O QUE É LIGHT NOVEL?
PERSONAGENS
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1

II

Um Vulto no Crepúsculo

Eloy enterrou Aurora.

Cada pedaço da terra que jogava para cima doía em seu corpo, em sua alma. Era uma pontada em seu peito, furava a si mesmo conforme esburacava o solo. Acariciou os cabelos de Aurora uma última vez, beijou-lhe a testa. Não chorou mais.

Jogou-a no subterrâneo, cobriu seu corpo com terra, então tentou esquecê-la, mas jamais conseguiria.

Não entendia.

Ela morrera em seus braços, estava sozinha. Por um momento, pensou se ele não era o responsável por aquilo. Sacudiu o rosto, esvaziou a mente. Que tolice pensar isso de si mesmo.

Ele a amava. Não seria capaz de matar a mulher pela qual se apaixonou. Não seria capaz sequer de levantar a mão para sua esposa.

Ou seria?

Alguns dias, Eloy não sabia do que era capaz.

Não sabia sequer quem era.

Evitou aqueles pensamentos, encheu-se de calmantes, de bebidas. Adormeceu, forçando um sono indesejado, não teve tempo de sonhar.

Alucinou. Algo estava errado.

O vento o acolheu.

A cidade estava movimentada.

Era sempre assim, o natural para uma grande metrópole, mas aquele dia havia algo de diferente. A polícia estava lá, tomando as ruas. Isolaram um edifício, espalharam suas fitas zebradas, chamaram detetives e investigadores. A perícia trabalhava de maneira árdua, inspecionava cada canto da calçada e do interior da construção.

Eloy estranhou, se aproximou por curiosidade. Não era o único, havia uma turba de curiosos, cochichavam suas porcarias enquanto tentavam deduzir o que acontecia. Eloy apurou os ouvidos.

“Assassinato?”

“Sim, é o que parece”.

“Mas quem morreu?”

“Uma das funcionárias da empresa”.

“Uma atendente de telemarketing?”

“Era uma cobradora!”

“Pelo menos assim ela para de azucrinar as pessoas!”

“Não diga isso!”

“Como foi?”

“Feio, pelo jeito. Para isolarem a área dessa maneira, alguma coisa horrenda deve ter acontecido”.

Apenas escutava, observando os tiras falarem em seus rádios.

“Stephanie Mayer é o nome da vítima”, disse um policial, falava em seu rádio. “O corpo foi encontrado há poucos minutos, sem vida. O assassinato provavelmente foi na madrugada”.

Um detetive se aproximou.

Eloy agradeceu seus sentidos apurados.

“Lacramos o corpo, vamos levá-la para análises”, disse o senhor, coçava o cavanhaque. “Estava horrível”.

“O que fizeram a essa moça?”

“Acho que ela falava demais” disse o velho com frieza. “Costuraram sua boca com agulha e barbante. E comprovamos que isso foi antes dela ser morta. Aquela mulher sofreu horrores”.

“Vocês viram as paredes?”, perguntou o policial. Abriu a janela de uma das viaturas, pegou uma rosquinha, mordiscou sem oferecer ao detetive.

“É um maníaco insano”, praguejou, suspirando. “Ele escreveu em todos os cantos com o sangue de sua vítima. Cale a boca, Sua voz não é necessária!, Vai aprender a nunca mais falar o que não deve! Pelo jeito, ela sofria ameaças há algum tempo”.

“Seria um assassino em série?”

“Não arrisco um palpite”.

Era um caso estranho. Aquela cidade era grande, mas as mortes eram sempre as mesmas. Roubos malsucedidos, vingança, estupros ou dívidas de traficantes. Havia casos atípicos, um ou outro, mas nada daquele nível. Por isso o alarde.

Eloy, entretanto, estava impassível. Por dois motivos.

Primeiro: na noite anterior, sua esposa morrera. A morte, para ele, não parecia mais tão assustadora. Não havia nada mais que pudesse ser tirado de suas mãos. Estava sozinho, perdera tudo.

Segundo: todos os acontecimentos estranhos eram atribuídos a criaturas sobrenaturais. Os homens os desconheciam, a polícia nunca seria capaz de resolver um caso do tipo. Eloy, entretanto, sabia da verdade. Havia os loucos, os homens capazes de horrores sem igual. Mas, em suma, essas coisas eram obras de diabos do além.

Sempre esses filhos da mãe.

“Você enxerga a verdade”.

Não era uma pessoa. Era uma voz. A Voz vinha de dentro, da mente, do coração, do espírito. Vinha de Eloy, vinha para Eloy. Ninguém mais escutou, mas talvez todos ali presentes escutassem apenas aquilo que lhes fosse conveniente.

“Sabe que eles não serão capazes de resolver esse caso” a Voz continuou. Não era feminina, não era masculina. Era apenas a Voz, e mudava, mas era sempre a mesma. “Sabe que apenas você pode resolver”.

“Quem é você?!”

Eloy se exaltou, se alterou, todos o observaram. A sua voz era elevada, todos escutavam, estranhando a agitação repentina. A Voz era apenas para ele, não incomodava a ninguém.

A polícia o observou. Eloy achou melhor se afastar, para não chamar atenção. A Voz não o impediu.

Eloy não praticou piano aquela tarde. Estava de luto, e mesmo seu luto era só. Não poderia contar a ninguém sobre a morte de Aurora, seria suspeito. Agora ainda mais, por tê-la enterrado, por tê-la nos braços em seus últimos momentos. Era suspeito, mesmo para si próprio.

Sentou-se ao lado da gárgula, sua única companheira, assistiu ao crepúsculo. A noite chegou, trazia consigo uma brisa manhosa, uma carícia delicada acompanhava o vento. Por duas vezes, quase abraçou a criatura de concreto ao seu lado, sentindo-se sozinho.

Mas não estava.

“Você é estranho”, alguém falou, não era a Voz.

Era um vulto. Passou por ele uma vez, então outra, desapareceu. Correu, rindo da brincadeira, Eloy não conseguia vê-la. Passou por ele outra vez, tocou seu cabelo, sumiu. Então parou. Eloy sentiu-a atrás de si.

Virou-se: era uma menina.

Uma criança de cabelo enorme, carregava um urso nos braços. Seus olhos eram assustadores, de um lilás melancólico. Eloy não a conhecia.

“Quem é você?”

“Nerea é meu nome”, contou ela. “E o seu é Eloy. É um prazer te conhecer”.

“Como sabe quem eu sou?”

“Sei bastante de seu mundo, Eloy”.

“Do meu mundo?”

“Exato. Do seu mundo”.

“E qual seria o seu mundo?”

“Todos eles”, respondeu com um sorriso. “Sou de vários, de todos, e de nenhum”.

Louca.

Eloy sorriu.

“Você é uma criança”, mas sabia que falava aquilo apenas para se confortar. Nenhuma criança poderia chegar onde ele estava. Mesmo os mais talentosos corredores do le parkour teriam dificuldades.

“Eu sou o que tenho de ser”, disse ela. Sentou-se ao seu lado. “Você gosta de alturas, Eloy?”

“Gosto de me sentar aqui. Posso enxergar a cidade, ver o que está acontecendo. Posso esquecer minha vida, meus problemas”.

“Consegue esquecer sua esposa, Eloy?”

Baque. Como aquela garota sabia sobre Aurora?

Quem era ela?

Eloy a fitou, ela sorria.

“Eu sei de muita coisa do seu mundo”, repetiu com confiança, gabava-se. Apontou os olhos anilares. “Vejo mais do que deveria ver. Vejo mais do que gostaria de ver. Mas vejo, e faço proveito disto”.

“Quem é você, garota?”

“Nerea”, sorridente.

“E o que você é, Nerea?”

O sorriso desapareceu.

“O que tiver de ser. Agora, sou uma amiga, se assim preferir”.

Eloy deu de ombros, observou a cidade.

“Você ouviu, não ouviu?”, perguntou ela.

“O quê?”

“A Voz”.

“O que foi aquilo?”

“Não sei. Também ouvi. Seu amigo também. Ele se chama Abel, não é?”

Eloy bufou.

“Ele não é meu amigo”.

“Deveria ser. Ele também deve ter escutado”.

“Que merda de Voz era aquela?”

Nerea riu como criança, brincando com sua pelúcia.

“Acho que era um aviso”.

“Um aviso?”

“Dos maus. Um péssimo aviso. Um presságio, talvez”.

“Você é louca”.

Nerea se levantou, saltitou na amurada, quase caiu por três vezes. Se equilibrava como numa corda bamba, esticava os braços, deixava o urso sacudir em sua mão.

“Eu sou uma criança, lembra?”

Ganiu, então deixou-se cair, sem gritos. Eloy se espantou, desequilibrou, caiu junto dela, mas algo segurou seu braço. Puxou-o para cima outra vez, Eloy arfou, em pânico.

Era Nerea. Ela sorria.

“O que é você?!”, perguntou Eloy, ofegante.

Nerea riu, zombando do pavor estampado no caçador.

“Eu sou uma mensageira, Eloy”. Jogou o urso para o ar, esperou que caísse novamente em seus braços. “Vim trazer um conselho”.

“Que conselho?”

“Preste atenção na Voz. Preste atenção no mundo. Algo está errado. As coisas vão piorar se não atentar àquilo que acontece ao seu redor. Preste atenção, Eloy. Você tem um quebra-cabeça nas mãos. As peças vão estar soltas, voejando em cada canto desta grandiosa cidade, escondidas nos mais úmidos cantos. Separadas, pouco dizem, mas há algo a ser dito. Unidas, podem trazer uma mensagem”.

“Do que você está falando?”

Eloy não entendia. Sentia-se tolo por escutar o conselho de uma criança, mas Nerea era diferente. Não era uma criança comum.

“Escute o aviso das peças soltas, Eloy”, disse ela, observando a cidade abaixo de si. “Deve entender o que lhe acontece, antes que seja tarde”.

E deixou-se cair, outra vez. Eloy não se importou. Não precisou olhar para saber que ela não mais estaria presente.

Naquela noite, a Voz falou com Eloy nos sonhos.

Ela dizia:

“O irmão de sangue distinto. O Valete deste baralho. O Bispo deste tabuleiro. O irmão de sangue distinto”.

Eloy despertou, suava frio.

“O que você quer?”, gritou, ninguém o escutava.

A Voz não se alterou.

“O irmão de sangue distinto”, repetiu, atordoando a mente confusa de Eloy até que seu cansaço o vencesse.


Sintam-se à vontade para comentar. Vamos desbravar juntos este mundo de fantasia urbana que ainda tem muito o que contar.
Até a próxima!

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