Vamos a mais um ato de Delirium?
XI
Miley
estava adormecida.
“Aceita
mais uma xícara de chá?”
Enquanto
aguardavam que a garota despertasse, Trevor servia uma refeição simplória para
seu cliente, que não parecia acomodado. Trocara suas roupas, o pijama dando
lugar aos trajes de atendimento, ainda que mal passados. Sentado de um lado da
mesa, Trevor observava a inquietação de Joe, que sequer conseguia bebericar o
chá quente que tinha nas mãos.
“Agradeço,
doutor, mas não me sinto bem o suficiente para ficar tomando chá. Tem certeza
de que não podemos acordá-la?”
“Seria
pior para seu tratamento. Por que não me conta o que aconteceu, senhor Joe?”
“Como
assim? Eu não sei o que aconteceu! Ela estava normal e, de repente, começou a
endoidecer e gritar coisas sem sentido.”
“Aconteceu
alguma coisa antes disso? Mesmo que seja algo que não acredite ser importante,
peço que me conte, senhor Joe. Todos os detalhes da vida da paciente são
importantes durante o tratamento.”
O
pai pareceu refletir durante um instante.
“Não
me lembro de nada ter acontecido no momento em que essa loucura se manifestou
pela primeira vez, doutor, mas... Bom, talvez isso tudo seja minha culpa.”
“Por
que diz isso?”
“Estou
me divorciando.”
(Bingo.)
Descobrira
o trauma.
“Divorciando?”
“Sim.
Eu não sou daqui. Vim para a Alemanha a negócios, mas talvez tenha de ficar
mais tempo. Trouxe minha família para morar comigo, minha filha e minha esposa,
mas Karina nunca aprovou essa ideia.”
“Karina
é sua esposa?”
“Exato.
Ela não queria se afastar de nossa terra natal, muito menos abandonar seus
pais. Minha família já está morta, doutor Trevor, portanto não pensei duas
vezes ao sair de Nova Iorque.”
“Mas
os pais de Karina estão vivos, e ela não desejava se afastar deles, estou
certo?”
“Sim.
Brigas e mais brigas, percebemos que nosso casamento não estava mais dando
certo, então resolvemos nos separar.”
“Entendo.
Ela ainda está aqui, na cidade?”
“Sim.
Temos de resolver alguns acordos para que ela possa retornar aos Estados
Unidos.”
“E
Miley? Vai ficar aqui ou vai embora com a mãe?”
Joe
não respondeu, mas seu silêncio foi uma explicação melhor do que qualquer
palavra poderia ser.
“São
americanos. É fácil perceber. Com o que trabalhar, senhor Joe?”
“Acompanho
o patrocínio das competições esportivas de minha firma.”
“Entendo
agora seu estilo diferente.”
Riram,
mas ambos pareciam forçar as risadas.
“Pois
é.”
Trevor
se levantou, impaciente. Acabou com sua xícara de chá, deixando-a sobre a mesa.
“Vou
lhe adiantar a situação, senhor Joe: sua filha possivelmente está passando por
um trauma ocasionado pela separação. Nenhuma criança consegue suportar o
rompimento do casamento dos pais sem carregar pelo restante de sua vida uma
sequela, mesmo que mínima. São coisas que nós, seres humanos, nunca estaremos
acostumados a vivenciar.”
“Eu
imaginei que fosse dizer isso. Mas doutor, meu casamento chegou ao fim. O que
poderia fazer por minha filha?”
“O
senhor poderia oferecer as melhores oportunidades para seu desenvolvimento
pessoal, senhor Joe. Ajude Karina a sustentar os estudos de Miley da maneira
que lhe for possível, pois apenas isso a ajudará a superar tamanho trauma.
Esteja sempre presente, sempre ao seu lado. Seja um bom pai, ainda que esteja
distante de ser um marido.”
“E
quanto a este problema, doutor? O que eu devo fazer?”
“Vou
conversar com ela. Tentarei alcançar o ponto crucial de seu trauma, assim
poderei lhe aconselhar de maneira mais efetiva. A princípio, mantenho meus
dizeres: seja um bom pai, senhor Joe. Qualquer que seja o problema, seja um bom
pai.”
Joe
Hill agradeceu a Trevor, aceitando uma nova xícara de chá. Trevor estava
inexpressivo. Era o melhor em disfarçar seus pensamentos e suas emoções, mas
naquele momento, suas capacidades fraquejavam. Vira, nos olhos daquela garota,
as lembranças mais dolorosas que carregava em sua mente. Estava abalado com
tais assuntos, desde os acontecimentos do caso de Adiel. Lidar com um problema
como aquele não seria o ideal, mas seu orgulho o obrigava a continuar.
“Você
parece falar por experiências próprias, doutor Kraepelin. Já teve filhos?”
Engoliu
em seco.
Aquela
era a pior pergunta que um paciente poderia lhe fazer.
“Sim,
senhor Joe, também já fui pai. Meus erros me custaram a família e a felicidade.
Pouco restou de minha antiga vida. Entendo muito sobre as pessoas pela
necessidade de me entender, de sobreviver aos problemas pelos quais eu mesmo
passei.”
“Também
é divorciado, doutor?”
“Não
acredito que este seja o caso, ainda que minha situação seja semelhante.”
“O
que aconteceu?”
“Prefiro
deixar este assunto de lado, senhor Joe. Por ora, pretendo cuidar de sua filha,
escutá-la, entender o que vem lhe aturdindo.”
Joe
Hill se levantou.
“Então
vamos! Miley precisa de nós!”
“Gostaria
de falar com ela a sós. Talvez seja melhor para sua adaptação se ela ainda não
encontrá-lo, senhor Joe. Se estou certo, o trauma de sua filha é originário de
sua separação com Karina, por isso acredita que uma conversa sem a sua
intervenção seria mais proveitosa.”
“Entendo.
Posso continuar aqui?”
“Sinta-se
à vontade, meu amigo. Logo o chamarei até lá.”
“Muito
obrigado, doutor Trevor. Não sei mais o que fazer.”
“Apenas
se acalme.”
“Doutor...
Um último aviso: tome cuidado com ela. Se possível, não a solte. Ela pode
machucá-lo, ou coisa pior. Às vezes, parece que ela tem um demônio no corpo.”
“Se
for este o caso, não farei melhores serviços do que um exorcista, meu caro.
Prometo tentar, ainda assim.”
Um
vidro se partiu ao longe.
“O
que foi isso?”
“Veio
do consultório.”
“Espere
aqui. Não se aproxime até que eu o chame, por pior que seja a situação. A porta
estará aberta, se desconfiar de minhas atitudes. Peço que acredite em minhas
palavras. Farei o meu melhor por sua filha.”
Joe
fez que sim com a cabeça.
Outra
coisa se partiu no chão, e o estrondo foi seguido por um grito agudo e choroso.
“Fique
aqui, senhor Joe.”
“Ficarei.”
Então Trevor se dirigiu até
a pequena garota que o esperava.
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