terça-feira, 26 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 2 / Ato XI

Olá, companheiros!
Vamos a mais um ato de Delirium?


XI

Miley estava adormecida.
“Aceita mais uma xícara de chá?”
Enquanto aguardavam que a garota despertasse, Trevor servia uma refeição simplória para seu cliente, que não parecia acomodado. Trocara suas roupas, o pijama dando lugar aos trajes de atendimento, ainda que mal passados. Sentado de um lado da mesa, Trevor observava a inquietação de Joe, que sequer conseguia bebericar o chá quente que tinha nas mãos.
“Agradeço, doutor, mas não me sinto bem o suficiente para ficar tomando chá. Tem certeza de que não podemos acordá-la?”
“Seria pior para seu tratamento. Por que não me conta o que aconteceu, senhor Joe?”
“Como assim? Eu não sei o que aconteceu! Ela estava normal e, de repente, começou a endoidecer e gritar coisas sem sentido.”
“Aconteceu alguma coisa antes disso? Mesmo que seja algo que não acredite ser importante, peço que me conte, senhor Joe. Todos os detalhes da vida da paciente são importantes durante o tratamento.”
O pai pareceu refletir durante um instante.
“Não me lembro de nada ter acontecido no momento em que essa loucura se manifestou pela primeira vez, doutor, mas... Bom, talvez isso tudo seja minha culpa.”
“Por que diz isso?”
“Estou me divorciando.”
(Bingo.)
Descobrira o trauma.
“Divorciando?”
“Sim. Eu não sou daqui. Vim para a Alemanha a negócios, mas talvez tenha de ficar mais tempo. Trouxe minha família para morar comigo, minha filha e minha esposa, mas Karina nunca aprovou essa ideia.”
“Karina é sua esposa?”
“Exato. Ela não queria se afastar de nossa terra natal, muito menos abandonar seus pais. Minha família já está morta, doutor Trevor, portanto não pensei duas vezes ao sair de Nova Iorque.”
“Mas os pais de Karina estão vivos, e ela não desejava se afastar deles, estou certo?”
“Sim. Brigas e mais brigas, percebemos que nosso casamento não estava mais dando certo, então resolvemos nos separar.”
“Entendo. Ela ainda está aqui, na cidade?”
“Sim. Temos de resolver alguns acordos para que ela possa retornar aos Estados Unidos.”
“E Miley? Vai ficar aqui ou vai embora com a mãe?”
Joe não respondeu, mas seu silêncio foi uma explicação melhor do que qualquer palavra poderia ser.
“São americanos. É fácil perceber. Com o que trabalhar, senhor Joe?”
“Acompanho o patrocínio das competições esportivas de minha firma.”
“Entendo agora seu estilo diferente.”
Riram, mas ambos pareciam forçar as risadas.
“Pois é.”
Trevor se levantou, impaciente. Acabou com sua xícara de chá, deixando-a sobre a mesa.
“Vou lhe adiantar a situação, senhor Joe: sua filha possivelmente está passando por um trauma ocasionado pela separação. Nenhuma criança consegue suportar o rompimento do casamento dos pais sem carregar pelo restante de sua vida uma sequela, mesmo que mínima. São coisas que nós, seres humanos, nunca estaremos acostumados a vivenciar.”
“Eu imaginei que fosse dizer isso. Mas doutor, meu casamento chegou ao fim. O que poderia fazer por minha filha?”
“O senhor poderia oferecer as melhores oportunidades para seu desenvolvimento pessoal, senhor Joe. Ajude Karina a sustentar os estudos de Miley da maneira que lhe for possível, pois apenas isso a ajudará a superar tamanho trauma. Esteja sempre presente, sempre ao seu lado. Seja um bom pai, ainda que esteja distante de ser um marido.”
“E quanto a este problema, doutor? O que eu devo fazer?”
“Vou conversar com ela. Tentarei alcançar o ponto crucial de seu trauma, assim poderei lhe aconselhar de maneira mais efetiva. A princípio, mantenho meus dizeres: seja um bom pai, senhor Joe. Qualquer que seja o problema, seja um bom pai.”
Joe Hill agradeceu a Trevor, aceitando uma nova xícara de chá. Trevor estava inexpressivo. Era o melhor em disfarçar seus pensamentos e suas emoções, mas naquele momento, suas capacidades fraquejavam. Vira, nos olhos daquela garota, as lembranças mais dolorosas que carregava em sua mente. Estava abalado com tais assuntos, desde os acontecimentos do caso de Adiel. Lidar com um problema como aquele não seria o ideal, mas seu orgulho o obrigava a continuar.
“Você parece falar por experiências próprias, doutor Kraepelin. Já teve filhos?”
Engoliu em seco.
Aquela era a pior pergunta que um paciente poderia lhe fazer.
“Sim, senhor Joe, também já fui pai. Meus erros me custaram a família e a felicidade. Pouco restou de minha antiga vida. Entendo muito sobre as pessoas pela necessidade de me entender, de sobreviver aos problemas pelos quais eu mesmo passei.”
“Também é divorciado, doutor?”
“Não acredito que este seja o caso, ainda que minha situação seja semelhante.”
“O que aconteceu?”
“Prefiro deixar este assunto de lado, senhor Joe. Por ora, pretendo cuidar de sua filha, escutá-la, entender o que vem lhe aturdindo.”
Joe Hill se levantou.
“Então vamos! Miley precisa de nós!”
“Gostaria de falar com ela a sós. Talvez seja melhor para sua adaptação se ela ainda não encontrá-lo, senhor Joe. Se estou certo, o trauma de sua filha é originário de sua separação com Karina, por isso acredita que uma conversa sem a sua intervenção seria mais proveitosa.”
“Entendo. Posso continuar aqui?”
“Sinta-se à vontade, meu amigo. Logo o chamarei até lá.”
“Muito obrigado, doutor Trevor. Não sei mais o que fazer.”
“Apenas se acalme.”
“Doutor... Um último aviso: tome cuidado com ela. Se possível, não a solte. Ela pode machucá-lo, ou coisa pior. Às vezes, parece que ela tem um demônio no corpo.”
“Se for este o caso, não farei melhores serviços do que um exorcista, meu caro. Prometo tentar, ainda assim.”
Um vidro se partiu ao longe.
“O que foi isso?”
“Veio do consultório.”
“Espere aqui. Não se aproxime até que eu o chame, por pior que seja a situação. A porta estará aberta, se desconfiar de minhas atitudes. Peço que acredite em minhas palavras. Farei o meu melhor por sua filha.”
Joe fez que sim com a cabeça.
Outra coisa se partiu no chão, e o estrondo foi seguido por um grito agudo e choroso.
“Fique aqui, senhor Joe.”
“Ficarei.”
Então Trevor se dirigiu até a pequena garota que o esperava.

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