segunda-feira, 25 de junho de 2012

Conto - In Memorian

Olá, companheiros.
Trazendo agora mais um conto, seguindo na mesma linha do anterior, um relato sobre uma experiência estranha num jogo eletrônico chamado Alden ONLINE. Faz parte de um projeto maior, mas deixo aqui o texto para que possam apreciar, criticar e dar suas opiniões.
Até a próxima!


In Memoriam

Eu já tinha um nível bastante avançado naquela época.
Passei por muitas coisas naquele jogo. Alden ONLINE era minha segunda casa, recepcionando minhas fantasias com um banho de criatividade e efeitos fabulosos. Eu adorava aquelas paisagens, por mais que soubesse que não passavam de polígonos trabalhados, mesmo que palpáveis, com cheiro e gosto. Era uma segunda vida, uma vida artificial onde conhecíamos novas pessoas, enfrentávamos monstros e desbravávamos um mundo muito melhor do que o nosso.
Atirei uma última vez, derrubando o último dos cães infernais. Ele agonizou, deixou quedar as peças de sua armadura de placas e, após um ganido uivante e frívolo, desapareceu em dados.
Estava cada vez mais perto de completar a quest.
Eu era uma Nature Sovereign, uma classe similar aos rangers medievais, de costumes convictos à natureza, preces tradicionais e auxílio de um companheiro animal. Escolhi um corvo para me acompanhar, e chamei-o de Saguy. Era uma criaturinha simpática, em termos. Era o que eu pensava, mas os monstros possivelmente o odiariam se pudessem odiar. Saguy tinha asas escuras e penas metálicas, algo inimaginável em minha realidade, o que tornava aquele animal ainda mais magnífico. Minha personagem, Zambria, também era um belo exemplo de originalidade. Vestia-se com um manto de folhas amareladas, como se caídas de uma gigantesca árvore no outono, com suas cores mortas em contraste ao vivo louro de meus cabelos longos. Adornos de aço protegiam os ombros e joelhos, algumas tiras circundavam minhas coxas e botas. Detalhes em couro sustentavam meu busto numa aparência sedutora, elevando o porte de Zambria para que quaisquer de seus movimentos parecessem altivos e imponentes. Nas mãos, a mais recente versão de um Shot-Bow, uma besta acoplada à mira e ao gatilho de uma escopeta cobreada, arma essa que me fora entregue por um NPC após a quest mais tenebrosa de um evento recente.
Deixei para trás aquela terra de montanhas, penetrando nos confins de uma caverna pedregosa. Apoiava as mãos nas paredes para definir o caminho a seguir, a escuridão me incomodava. Acionei uma técnica especial dos NS, uma melhoria que me garantia características animalescas. Selecionei os olhos preparados de uma coruja, e assim segui a trilha no breu, como faria um elfo.
Foi quando a caverna toda tremulou.
Eu já sabia que aquilo aconteceria. Tenho o costume de ler o histórico das missões em que participo, portanto sabia bastante sobre Ruthegar, o Colosso. De acordo com as lendas, Ruthergar fora derrotado por um grupo de caçadores de recompensa que recebeu, após a vitória sobre o gigantesco golem de rochas, o nome de Emissários do Abismo. Depois de alguns anos, os emissários desapareceram, e Ruthergar retornou. Agora, minha personagem era a responsável por adquirir informações sobre as fraquezas do colosso, prosseguindo na quest até o momento em que deveria enfrentá-lo.
Momento este que, por sorte, não era aquele, já que eu estava sozinha.
Coletei os itens necessários para dar continuidade à missão e parti, retornando à cidade principal para preencher o inventário com uma nova leva de poções de restauração.
Foi quando eu recebi uma mensagem estranha. Um convite, na realidade.
Dizia assim:
A Dama da Névoa a aguarda em sua prisão.
O mal carregado pelo vento é soturno, um sopro sussurrante e amaldiçoado que assola cada canto destes reinos. Contra tal malevolência, um espírito foi criado, na intenção de restaurar as belas flores que desenhavam a magnificência de cada campo, mas não foi bem assim que aconteceu. A Dama da Névoa desapareceu. Procurada por eras, hoje temos notícias sobre seu paradeiro.
Precisamos de heróis para encontrá-la. Será você um deles?
Alden ONLINE acabava de disponibilizar um novo evento em suas atualizações instantâneas. Era um dos fatores que me deixava cada vez mais contente em poder participar daquele universo que sempre evoluía.
Ao terminar de ler, no entanto, me surpreendi. A assinatura era familiar. O nome, o símbolo, tudo me era estranhamente comum. Ao mesmo tempo, era irreal demais, inacreditável.
Era uma mensagem de Eclesia.
—Isso não é possível —pensei em voz alta, sem perceber.
Naquele instante, fui tomada por lembranças do mundo digital. Muito antes, não era eu a solitária que tende a morrer em quests por não possuir um aliado e protetor. Eu tinha uma companheira, uma amiga para todas as horas, seguidora fiel e, até onde isso era possível, uma irmã virtual. Seu nome era Eclesia. Era algo proveniente do latim, relacionado a igrejas provavelmente, não sei. Eclesia era a virtude em pessoa. Eu me lembrava de seu cabelo curto e verdejado, um tom aquoso e belo, original e extravagante. Lembrava de suas roupas, a jaqueta alva com detalhes azulados, as botas metálicas que adornavam as pernas como um todo, a manopla de aço negro em contraste com todo o restante de suas cores claras. Ela era uma Howling Cavalier, uma classe bem compatível com a minha personagem. Ambas éramos voltadas à natureza e suas vantagens, da mágica às feras. Eclesia tinha uma serpente como companheira, uma víbora cor-de-coral denominada Krista. Juntas, formávamos uma party poderosa, enfrentando diversos chefes e quests em busca da diversão que somente Alden ONLINE poderia nos oferecer.
As lembranças eram fortes graças ao vínculo formado com Eclesia. Nós éramos amigas, por mais que cada uma estivesse em sua cidade, em cantos distintos do mundo. Nunca nos vimos, mas sabíamos mais sobre nossas vidas do que —ouso dizer —nossos próprios pais. Sentávamos nos montes das áreas mais amplas e, na tranquilidade da trilha sonora, trocávamos experiências, conselhos, relatos sobre ocorridos mirabolantes de nossas vivências escolares ou amorosas.
Um dia, Eclesia desapareceu.
Eu a esperei por alguns dias. Esperei por semanas, na verdade. Em vão. Ela não retornou. Fiquei preocupada, fui pesquisar, e isso cortou meu coração. Luana, a jogadora por trás da HC que me ajudou por tanto tempo, morrera num acidente automobilístico, bem como seus pais e seu irmão mais novo. Foi terrível. Vi fotos, imaginei os gritos e o pavor. Chorei por dias, isolada do restante do mundo.
O tempo passou, mas não a dor.
A dor nunca passa. Mas você acaba aprendendo a conviver com ela por falta de opção, e foi o que fiz. Voltei ao jogo, olhei a lista mais uma vez, para ter certeza. Eclesia não estava online. Nunca mais estaria.
Engoli em seco. Como poderia ter recebido uma mensagem de sua autoria?
Precisava me certificar de que aquilo estava realmente acontecendo.
Zambria: Eclesia? Você está mesmo aí?
Eclesia: ...
Sua resposta demorou a chegar. Eram apenas reticências.
Zambria: Eclesia?
Eclesia: Dama ... /aueba~-\ae] da -0ias Névoa[][-w111111000101100~<
O que era aquilo? Será que Luana estava bem?
Respirei fundo. Luana não estava bem, e eu sabia disso.
Luana estava morta.
Zambria: Quem está usando essa conta?
Eclesia: Lago.. ///~]] dos Cisnes.
Algo estava errado. Eu precisava ter certeza de que havia alguém utilizando a conta de Luana. Não podia ser ela, obviamente. Quem mais teria acesso à sua senha?
Foi então que percebi algumas coisas em suas mensagens de texto. Dama da Névoa, na primeira. Uma clara referência à quest que acabara de tomar conhecimento. Na seguinte, Lago dos Cisnes, uma localidade que nada tinha a ver com a missão propriamente dita. Era um campo aberto com uma paisagem belíssima, que tantas vezes paramos para observar. Parecia um convite, uma espécie de incitação. Me senti na obrigação de visitar o Lago dos Cisnes mais uma vez, e só então percebi que, desde a morte de Luana —e também de Eclesia —, nunca mais havia visitado tal área.
Zambria: Eu estou indo, Eclesia.
Eclesia: ...
Transportei-me no portal da cidade.
Meus olhos brilharam com a visão daquelas águas cristalinas.
O Lago dos Cisnes era imenso. Cercado por rochas íngremes e coralinas, banhava-se nas violentas pancadas de três cachoeiras, enchendo-se de um louvor rítmico. As quedas d’água tinham uma melodia própria, mais agradável do que uma orquestra seria capaz de compor. Era um espetáculo da natureza, por mais que a natureza fosse digital, impossível para a realidade à qual eu era aprisionada.
Não havia ninguém ali.
Zambria: Você está aqui, Eclesia?
Eclesia: ...
Por que ela não respondia as minhas perguntas?
Olhei ao redor. Algo se moveu com rapidez. Preparei o Shot-Bow, meus dedos cerrados sobre o punho da arma, um deles pronto para acionar o gatilho. A mira não estava feita; não havia nada para se mirar. Caminhava em prontidão, cercado de incertezas.
—Quem está aí?
Não houve resposta. Era algum monstro, provavelmente.
Uma recordação me disse que o Lago dos Cisnes era uma área sem monstros, mas eu não tinha outra alternativa para pensar.
—Tem alguém aqui?
Por um momento, ri de minha própria desgraça. Estava fazendo perguntas para o nada, dentro de um jogo eletrônico. Se isso não era loucura, era no mínimo um bom começo.
Vi algo se mover novamente, se escondendo atrás de uma pedra larga.
Circundei a rocha, três virotes mágicos preparados na arma de longa distância. Esperava encontrar qualquer coisa, mas sequer cogitei a possibilidade daquilo que sibilava à minha frente.
Era Krista.
A serpente-coral se ergueu, ameaçadora. Saguy, postado sobre meu ombro como um sábio conselheiro, bateu as asas num cumprimento tardio, mas a víbora pareceu desprezar tal gesto. O corvo guinchou uma vez, mas não era corajoso o suficiente para desafiar a cobra de Eclesia.
Uma coisa era certa: os companheiros não podem se afastar dos personagens que o portam. Eclesia estava ali, em algum lugar.
—Eclesia! Onde você está?
Silêncio.
Percorri um caminho de arbustos, pisei numa trilha de pedras submersas. Sentia a água molhar os pés de Zambria. Era uma sensação tão real que eu chegava a duvidar que Alden fosse apenas um jogo.
Não percebi naquele momento, mas enquanto caminhava, Krista me seguia.
Continuei minha exploração até trespassar algumas árvores altas e garbosas que exibiam seus galhos magricelas em desconfortantes posições da dança de suas vidas. Após a sombra criada pelas folhas, encontrei uma nova saída para as águas, reunida num poço profundo e artificial, como se escavado por alguém ou alguma coisa. Krista ainda me seguia, irritadiça com as provocações de Saguy. De súbito, a serpente estacou no lugar, se ergueu ereta como uma lança em riste, sacudiu os chocalhos de sua cauda num pavor melódico e inesperado. Eu estava tão surpresa quanto ela.
Fincada no solo verdejante estavam duas lâminas cruzadas, unidas por um único cabo de bronze e ouro, em ângulos distintos. Eram afiadas, mas a forma como estavam postadas fazia com que lembrassem uma tesoura avantajada, o que chegava a ser irônico. Para os meus olhos, aquela coisa nunca seria uma simples tesoura gigante. Ela tinha um nome: Jolt Scizor, pelo que me lembrava.
Era a arma de Eclesia.
—O que isso está fazendo aqui?
Me aproximei. Toquei a espada-tesoura, era real. Não havia dúvida. Ninguém mais em Alden gostaria daquele tipo de arma como Eclesia, vidrada na originalidade do objeto. Não era seu equipamento mais poderoso, mas ela o adorava, fazendo questão de mostrar a todos a conquista que tinha em mãos.
Foi então que eu a vi.
Ela estava do outro lado do Lago dos Cisnes, desfilando sobre flores charmosas num local inacessível no jogo. Eclesia estava ali, como sempre esteve. Cabelos longos e claros, roupas elegantes, porte de princesa. Ela também me viu, sorrindo amigavelmente e cumprimentando com os olhos e um aceno de mão. Eu tentei responder, mas estava paralisado pela surpresa. Como era possível? Quem poderia ser o jogador por trás daquele personagem?
Pisquei e, no segundo seguinte, Eclesia havia desaparecido.
—Acho que não estou muito bem.
Em homenagem à amiga que me acompanhou durante tanto tempo, retirei a espada do chão, disposta a guardá-la comigo para sempre.
No mesmo instante, vislumbrei algo estranho. Estava dentro de um carro, abraçada por pessoas que nunca vi na vida. Eu não me mexia, tampouco respirava. Estava ali, deitada, inerte, semimorta, mas estava. O homem que dirigia parecia abalado. O garoto ao seu lado pouco entendia do que estava acontecendo. A mulher que me envolvia em seu abraço, entretanto, estava apavorada. Seus olhos imploravam para que eu me recuperasse, que dissesse que tudo aquilo era brincadeira e eu estava bem, obrigada. Eu também queria dizer aquelas coisas, agradecer e rir. Não era possível.
Eu estava morta.
Entendi, após algum tempo, que eu não era eu. Eu via o que fora visto, um dia, por Luana. A jogadora já estava inconsciente quando dentro do carro. Os pais estavam assustados, preocupados com a segurança da filha, corram muito para que pudessem levá-la ao hospital da cidade vizinha. Eles sabiam que não havia esperança. Só precisavam de alguém para oficializar o que era um fato, e então desabariam na tristeza que todos enfrentam algum dia de sua vida.
O mundo girou, eu estava dentro do jogo. Era eu, mas era Eclesia. A espada-tesoura golpeava sem parar, afrontando uma criatura que eu jamais vi na vida. Não era o mais experiente para comentar isso, claro, mas era compenetrado em minha jogatina, estudando durante dias os monstros apresentados no site e suas características. Aquele ser —que mais parecia um cubo gelatinoso de cores oscilantes —, vibrava num ressonar grandioso. Ele recebeu os ataques de Eclesia, aceitou-os sem reclamar, pediu pelas técnicas. Ela usou tudo o que tinha. Quando exausta, tentou se esquivar do abraço do monstro, mas ele a engoliu com um só movimento, deixando a arma branca cair e fincar-se ao chão.
Pude entender que, antes mesmo do acidente, Luana já estava morta, e isso parecia estranhamente relacionado com Alden.
Senti medo.
Eclesia: ...
Zambria: Eu vi.
Eclesia: ???
Zambria: Eu vi, Luana. Vi o que aconteceu.
Eclesia: mortemortemortemortemortemortemorte
Zambria: Você está me assustando.
Eclesia: Alden. Morte. Fantasmas. Morte. Morte. Morte. Morte.
Zambria: O que quer dizer com isso?
Eclesia: Dama das Névoas.
Zambria: O que tem a Dama das Névoas?
Eclesia: mortemortemortemortemortemortemorte
A espada-tesoura rutilou em minhas mãos. Seu brilho era intenso e sinfônico, uma luz azul-esverdeada que ilustrava uma beleza irracional.
E eu pude senti-la.
Eclesia estava lá, mas havia mais.
Era Luana.
Daquele dia em diante, mantive a Jolt Scizor em meu inventário. Não existia um motivo para isso. Eu apenas quis. Achei que seria o melhor a ser feito. Com ela por perto, eu me sentia ao lado de Eclesia mais uma vez, como tantas foram as vezes em que nos aventuramos pelo mundo do jogo. Com aquela arma exótica em mãos, podia sentir a carícia de um abraço amigo, um abraço que nunca tive a oportunidade de receber. Era Eclesia. Era Luana.
Era real.
Krista me seguiu, também. Fiquei conhecida como Zambria Duas Vidas, admirada por ser a única personagem de Alden ONLINE a portar dois animais como companheiros. Krista e Saguy não se davam muito bem, mas ambos me obedeciam. Às vezes, por mais estranho que isso possa soar, eu tinha a impressão de que a serpente-coral não estava obedecendo a mim, e sim à sua verdadeira mestra.
Eu me tornei mais e mais forte conforme o tempo passou.
Quando me achei pronta, resolvi enfrentar o mistério que cercava a morte de Luana. Preparei meus equipamentos e, ao lado de Eclesia, aceitei a quest da Dama da Névoa.

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