quinta-feira, 21 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 1 / Ato VI

Olá, companheiros.
Trazendo mais um ato de Delirium para vocês, espero que gostem.
Até a próxima.


VI

Havia uma criança do inferno.
Era um garoto, mas era um aborto, e como tal estava deformado. Como um feto incompleto e incapaz, avançado por aquele mundo surreal, dotado de membros, de pelos, de uma pele ressecada e frígida.
(Parece que não há outra opção.)
O ceifador matou, matou sem parar, sem nausear pelo sabor do sangue que lhe impregnava o rosto, que lhe escorria aos olhos e lábios, que inundava suas vestes em vermelhidão.
A criança avançou com braços miúdos e flácidos, a carne suspensa por gorduras grotescas, distante dos ossos, sacolejando junto da pele amolecida pela nojeira. A foice tocava seu corpo como fogo, desintegrava tudo aquilo que encontrava pelo caminho. Na lâmina curva de Trevor, o monstro encontrava seu fim.
Mas não temia.
Golpeou sem aviso, deixando desabar as mãos disformes contra seu oponente, atordoando por alguns instantes o ceifador que o enfrentava.
(Há muita raiva suprimida nesta maldição.)
E havia. Não apenas do bebê, havia Mariza. Sentia-se traída, ainda que fosse apenas uma amante, sentia-se deixada de lado. Confiara em Trevor por tanto tempo, satisfazendo suas vontades com louvor, para só então perceber que não era nada além de um brinquedo, assim como aquilo que carregava no ventre.
A voz da amante ecoava, distorcida pelo ódio da abominação.
“Eu estou grávida! Eu te amo, Adiel! Seremos um lindo casal para todo o sempre!”
Acompanhada do pranto da criança que nunca chegou a conhecer o mundo, criava uma melodia sinistra, e esta tornava a situação um tormento para as mentes envolvidas.
Adiel, ajoelhado, via dentro de si. Gritava e chorava como uma criança com medo de escuro, dizia coisas sem sentido.
Trevor, um dia, passara por aquilo. Sabia o que havia dentro de si, era um dos únicos.
Ao entender o que há dentro de seu espírito, os homens morrem. Por fora, alcançando o final de suas vidas, ou mesmo por dentro, apodrecendo com mentes inutilizadas pela loucura.
Apenas os sobreviventes se tornam ceifadores.
Enquanto Adiel enfrentava a si mesmo, Trevor enfrentava o mal que o assombrava.
“Adiel, abandone sua família! Sua esposa, seus filhos, eles não importam!”
“Papai! Papai!”
“Seremos felizes! Annabeth não pode te fazer feliz!”
“Vamos viajar essa semana, papai?”
E o grunhido monstruoso do feto. Tudo era caos.
Coisas e demônios se dispersavam naquele mundo absurdo, a foice urrava em seu domínio. Aquela não era uma arma comum, não era uma lâmina qualquer. Era a essência de um ceifador, o espírito de Trevor. Cortava e estocava, fazia o sangue jorrar sem piedade, manchava o solo e o céu quando ambos inexistiam.
“Papai!”
Os gritos eram exterminados com golpes precisos.
“Adiel!”
Três coisas foram pulverizadas por um único corte; demônios guinchavam.
“Estou grávida, Adiel!”
O bebê-monstro estrondou em frenesi.
“Venha cá, amigo. Tenho uma brincadeira nova para lhe ensinar.”
O chamado vinha de Trevor, ainda que parte viesse de sua arma, sempre sedenta pelas almas emporcalhadas daquelas torturas que a psiquiatria convencional jamais seria capaz de solucionar.
Submetendo-se à provocação de seu adversário, o monstro saltou sobre Trevor com garras e dentes, o pênis infantil se movia como um tumor.
“Papai, papai! Por que não me deixou nascer, papai?!”
O sofrimento do aborto forçado por Adiel lhe marcava o corpo, carregado de cicatrizes e doenças e sangue gangrenado. Aquilo que um dia fora seu cordão umbilical se mostrava como uma víbora, serpenteando e sibilando uma ira desumana.
As garras enfrentaram a foice, as unhas afrontavam o ceifador.
“Eu não sou seu pai, criatura. Mesmo Adiel não o é!”
O bebê largou-se num sorriso quase banguela, seus poucos dentes similares a presas caninas, a boca apodrecida por vermes e traças.
Sua voz mudara.
“Talvez ele não seja meu pai, ceifador.”
“Resolveu se revelar?”
“Mas nem sempre os pais admiram suas crias, não concorda?”
Trevor se abalou. Forçou a foice contra as garras do demônio, afastou-o com sua força incomum.
“Quem é você, ser?”
Outro sorriso de poucos dentes surgiu, tomado por uma malícia irracional.
“Alguém que sabe demais.”
“E o quê você acha que sabe, cretino?!”
Aquele imenso bebê movia-se como um leopardo, ainda que seu tamanho fosse capaz de enganar qualquer um quanto a sua agilidade. Saltou com um rodopio, caindo sobre Trevor com seis braços, quando quatro destes rasgaram sua carne decrépita num instante imperceptível.
“Sei que você é um tremendo filho da puta, Kraepelin. Ou deveria chamá-lo de Sangue Azul?”
Trevor engoliu em seco.
(Quem é este monstro? Como ele pode saber essas coisas?!)
Não fazia diferença. Não fosse sua profissão, o simples fato do conhecimento carregado por aquela criatura a tornaria um alvo primordial para o ceifador.
“Está confuso, doutor? Precisa da ajuda de um psiquiatra? Não consegue mais se lembrar da voz dele? Ou pior... nunca conseguiu esquecer?”
A foice avassalou, destruidora.
“QUEM É VOCÊ, MONSTRO?!”
O brado descontrolado fez com que a criança tombasse, parte de sua pele desfazendo-se no bramido inesperado que partira do ceifador.
Mas o medo era um sorriso irônico e horrendo.
“Meu nome não é importante, Sangue Azul.”
“Não me chame disso!”
“Seria capaz de negar suas essências? Às vezes, me esqueço de como são os humanos. Mentem para si mesmos quando precisam manter o conforto de suas vidas imundas.”
Trevor ergueu a foice. Aquilo estava fora de controle.
O monstro zombou.
“Ora, como sou descuidado. Peço desculpas, ceifador, por compará-lo a seres tão inferiores. Afinal de contas, você não é mais um humano, não é mesmo?”

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