terça-feira, 19 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 1 / Ato II

Olá, companheiros.
Dando prosseguimento à nova Light Novel do blog Elhanor, trago-vos hoje o segundo ato do primeiro caso de Delirium. Espero que apreciem a leitura, e não deixem de comentar logo abaixo, ajuda bastante nas produções posteriores.
Até a próxima!


II

Adiel estava no escuro, sozinho. Abraçado às próprias pernas, sentia o corpo todo tremer descontroladamente, perdido nos devaneios que o assombravam.
(Onde eu estou?)
Não conseguia ver a si mesmo, e nada do que o circundava auxiliava na iluminação. Não havia sequer a penumbra; estava abandonado no mais completo breu.
Então, uma chama escarlate bruxuleava nas proximidades, irradiando a expressão pavorosa que aturdia seu rosto. Ela o fazia lembrar sua antiga vida, de quando tinha uma esposa, uma família, um lar para retornar. Agora, estava sozinho. Após o divórcio, sentia-se um completo inútil, assistia ao seu enlouquecimento sem nada poder fazer para ajudar.
Criou coragem, se levantou. Relutava com esforço para ser obedecido por suas pernas, que ousavam desafiar o comando de seu cérebro, insistindo para manterem-se imóveis. Esticando um dos braços para frente, na direção das chamas, Adiel seguiu com passos hesitantes, tentando não tropeçar em coisa alguma.
Mas tropeçou, muito antes de alcançar a chama.
(O que é isso?)
Era algo rígido, ainda que amolecido por seu pé. A sensação era peculiar, um pouco nauseante, mas ele não temia. Não olhou para baixo, entretanto. Achava melhor não saber aquilo que estava atirado no chão.
Continuando seu caminho, Adiel tropeçou mais uma vez. Escorregando por alguns passos, trombou de frente com alguém, a pessoa miúda caiu à sua frente.
“Me desculpe!”
Sua voz estava diferente, mas tudo estava. Estava ficando louco. Estava perdendo a noção.
Suas confirmações vieram quando aquela coisa o fitou.
Num primeiro momento, parecia apenas uma criança, vestida com um uniforme escolar manchado por uma lavagem malfeita. Caindo de bruços pela trombada de Adiel, a garota se levantou, ajeitou a saia de babados, pressionou a mochila em suas costas.
(Não preciso ter medo. É apenas uma garotinha.)
Então se virou, e seus olhos estavam fundos. As pupilas dilatavam cada vez mais, os cílios despencavam, e logo o mesmo ocorreu à sua pele, soltando-se do crânio delicado e infantil.
“Você está bem?”
Sabia que não, mas não conseguiu evitar a pergunta.
A criança grunhia algo sem significado, parecia pedir ajuda. Esticou os braços na direção de Adiel, que recuou temeroso. Os dedos tombaram, um a um se desprenderam de suas mãos fragilizadas, caíram no chão com suavidade. Debatiam-se como pequenas minhocas, erguendo-se numa fileira de membros humanos que tentava desesperadamente escavar o chão inexistente.
A garota vomitou sangue.
“Oh merda, o que é você?”
Adiel queria ajudá-la, mas não podia. Não era um médico, não era nem mesmo um homem. Não tinha coragem, não tinha vontade.
Correu para longe, sempre na direção das chamas.
Em seu caminho, tropeçou em incontáveis outras coisas, não olhava para trás. Virava a cabeça inconscientemente, via olhos vermelhos, vultos e lampejos. Chorando, fugia de um mundo de assombrações, todas dispostas a devorá-lo.
O fogo longínquo era sua única salvação, portanto acelerou com todo seu vigor para alcançá-lo.
Quando o fez, descobriu que estava errado.
O fogo era uma armadilha.
“Merda!”
Lá estava a garota que se recusou a ajudar. Sem mochila, sem pele, sem humanidade alguma. A cor cinzenta de seu corpo depredava a visão cética de Adiel, parecendo um pequeno demônio das histórias, mas aquilo não deveria existir.
Se fosse apenas ela, Adiel poderia acreditar em efeitos tardios de remédios antidepressivos, em boas doses de álcool, mas havia mais. Outros, como ela, infindáveis pequeninos de chifres e cauda, de pele enrugada e mórbida, de olhos foscos saídos de pesadelos.
Adiel contou dez, vinte, sua percepção lhe mostrou mais de cem. Jogou-se ao chão, debatendo-se como criança, implorou por sua vida.
“Não me matem, por favor! Eu não fiz nada, eu juro, não fiz nada!”
As criaturinhas se agrupavam ao seu redor, cochichavam algo numa língua incomum. Algumas carregavam pedaços de galhos disformes, outras tinham metal retorcido nas mãos.
Apenas um deles tinha olhos vermelhos.
“Veja o que fez a sua própria vida.”
Sua voz era como um guincho, mas suas palavras eram entendíveis. Adiel se ajoelhou à frente daquele ser, reverenciou de maneira humilhante, sem se importar.
“Eu não fiz nada, eu juro, não fiz nada!”
“Desistiu de sua vida, assim como desistiu da vida de um dos nossos.”
A criatura apontou para o que antes fora uma garota, a mesma que Adiel temeu ao ver se despedaçar na sua frente. Ela se aproximou, jogou-se no solo, ferida e encharcada por um sangue azulado e asqueroso.
“Não demonstrou compaixão ao vê-la morrer, mesmo que tivesse a aparência de uma de suas crias. O que resta para você?”
“Me perdoe, eu tive medo! Eu não sabia o que fazer, não sabia como agir! Não sou um médico, não sou nada!”
“É um covarde, Adiel. Homens são feitos de carne e espírito. Seu espírito não nos serve para coisa alguma, nem mesmo serve para você. Resta apenas a carne. Sabe o que é feito com a carne, Adiel?”
Tinha uma ideia, mas rezou para estar errado.
“A carne sem espírito é apenas comida.”
As criaturas pareciam esperar por aquelas palavras, pois saltaram de imediato ante a voz de seu líder, salivando pela fome, pela vontade de mordiscar aquele homem desmerecedor da vida.
Adiel tentou fugir, tentou correr, mas não podia. A chama que tanto seguiu estava lá, nos olhos daquele monstro terrível, o mesmo monstro que ordenava que suas proles devorassem Adiel. Agora, queria correr, se afastar, mas era tarde. Caíra na armadilha, provara ser indigno da vida que lhe fora oferecida.
Caído, sem forças para se debater e tentar evitar, Adiel sentia o corpo ser mastigado por incontáveis bocas esfomeadas. As presas penetravam em sua pele, trituravam os ossos como um pedaço de papel inutilizado, cuspiam o que não lhes serviria e retornavam para um novo pedaço. Disputavam um espaço no burburinho que o circundava, devoravam inexpressivos, banhados pelo sangue vermelho e ardente que jorrava do que restou de Adiel.
“Parem, parem! Parem pelo amor de Deus!”
“Você não era o mais cético, Adiel? Não desacreditou em nossa existência? O que é Deus afinal, se não um apoio sem forma, lembrado apenas nos momentos mais desesperadores?”
Enquanto Adiel pensava em uma resposta, sentiu os lábios arrancados por uma garra afiada, e logo a língua o acompanhou. Incapaz de gritar ou de morrer, sentia toda aquela dor, aquela ardência assombrosa e inacreditável.
(Parem...)
Mas não parariam até que nada restasse. Os olhos foscos não lhes permitiam mentir: eram demônios. Demônios famintos.
E Adiel era o alimento.

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