quinta-feira, 21 de junho de 2012

Conto - Lírio do Instante

Olá, companheiros!
Trago hoje um novo conto, escrito com base num projeto recentemente iniciado, que possivelmente ainda ocupará grande parte do meu tempo, hehe. O conto se chama Lírio do Instante, e trata sobre Taros, um personagem de Alden ONLINE, um jogo eletrônico, que vai entender que, às vezes, o mundo virtual é tão importante quanto o real.
Sem mais demoras, vamos ao conto propriamente dito.
Espero que gostem.
Até a próxima!


Lírio do Instante

Eu me conectei.
Aquele jogo era a minha segunda casa. Desde os primórdios de seu lançamento, quando não passava de uma versão BETA, eu já o admirava pela precisão nos movimentos, os gráficos de última geração, a imersão da realidade num mundo imaginário. Minha realidade nunca foi das melhores: impossibilitado numa cadeira de rodas, destinava meu tempo livre a estudos que jamais me capacitariam a andar novamente, frequentemente depressivo e desolado.
Naquele mundo de cores impossíveis, eu era o melhor de mim, pois podia ser e fazer o que quisesse.
Abri os olhos, mas já não eram meus tradicionais olhos castanhos. Eram bicolores, azul e verde, o que escolhi para representar a dualidade de minha vida, dividida às sensações eletrônicas, que insistia em chamar de reais, e às verdadeiras, as quais eu costumava fingir desperceber. Levantei-me do sofá de minha residência, o gosto da adrenalina me saturava. Fiz questão de exercitar as pernas, ato desnecessário mas que, para mim, era tão empolgante quanto caçar as mais vis criaturas.
Hullia: Já está de volta?
Era uma mensagem distante, recebida na minha caixa de e-mails. Hullia era uma grande amiga do mundo virtual, a qual conhecia durante uma quest complexa, responsável por me salvar de alguns leoninos que subestimei.
Taros: Mas é claro! É sempre bom começar um domingo com uma dose de Alden ONLINE.
Hullia: rsrs, é verdade.
Hullia era uma caçadora. Ela estava online na maioria das vezes que eu me conectava. Nunca perguntei sobre sua vida pessoal, respeitando o fato dela também não indagar sobre a minha, mas acreditava que era uma adolescente, como eu, porém saudável. Tinha seus motivos para preferir o mundo virtual, os quais eu aceitaria mesmo sem saber.
Taros: Quais os planos de hoje?
Hullia: Não sei. Que tal uma quest nas cavernas?
Taros: Onde você está agora?
Hullia: Atrás de você, seu desatento. :P
Virei-me, encontrando Hullia com um grande sorriso no rosto, gesto costumeiro daquela garota agitada. Ela era uma Paladina do Amanhecer, vestida numa armadura de cores fortes, em suma rosada e alva. Carregava nas mãos dois chakrans serrilhados que, quando utilizados, produziam um estranho som de esmeril.
Ela era uma invasora em minha casa. Adicionar alguém à lista de amigos permita que tal pessoa usufruísse de todas as vantagens que você conquistasse durante o jogo. Ela era minha única adição, mas às vezes eu repensava sobre isso.
—Claro —eu disse, agora utilizando do sistema de voz virtual. —Como de costume.
Hullia fez uma continência errônea, simbolizando um às ordens bastante irônico.
—Soube que hoje vai acontecer um novo evento —ela contou. —Uma quest de proteção, se bem entendi as mensagens do fórum. O          que acha?
—É o seu dia de escolher.
—Então ajeite suas coisas, estamos de partida.
Não havia muito o quê arrumar, pois todos os pertences ficavam num simples menu digital, acessado pelo toque de minhas mãos, ou num baú reservado em minha residência. Partimos, deixando para trás o conforto e o silêncio de minha moradia para ganhar as ruas de Loren, uma das principais cidades do jogo. Ali, a trilha sonora nos presenteava com um belo blues conforme caminhávamos pelas calçadas de bronze, dedilhando os vidros dos grandes edifícios e admirando a imensa estátua trabalhada no centro da cidade, uma representação da deusa Alden, a grande sonhadora que protagonizava a história daquele RPG.
—Onde fica o seu evento?
—Não muito longe. Vamos até o Sopro de Sonhos.
Sopro de Sonhos era o nome dado às máquinas de transporte massivo, encontradas geralmente aos montes nas grandes metrópoles e responsáveis pela movimentação acelerada dos personagens. Alden tinha um mundo aberto, mas ninguém tinha paciência para revisitar diversos lugares pelos quais já passou enquanto desejava alcançar uma nova área, e para isso existiam os Sopros. Acionamos o mecanismo, mas deixei que Hullia selecionasse o destino. Ela escolheu uma área chamada de Fonte do Momento Eterno, e então fomos transportados para lá.
Era uma imensa planície de açúcar.
Sim, exatamente, um campo aberto com grama e açúcar cristalizado, uma paisagem irreal demais, que somente um jogo poderia reproduzir. Achei maravilhosa aquela visão, mas disfarcei a admiração, diferente de Hullia. Ela era sempre muito empolgada, não foi diferente daquela vez.
—Que lugar lindo! É tão real, não é?
—São gráficos de última geração.
—Não precisa me lembrar de que isso é um jogo.
Eu ri. Como aquela garota era boba.
—E agora, o que fazemos? —perguntei, mas minha resposta veio gritante.
Ao longe, uma garota corria desajeitada. Parecia uma pequena feiticeira, com um chapéu prateado e longas orelhas de coelho misturando-se aos movimentos de uma capa coberta de artesanatos. Tinha botas certamente muito maiores do que seus pés, bem como um vestido que dobrava quatro vezes para que se tornasse uma saia longa. Nas mãos, um cajado de olho de dragão, tudo do mais vívido anil.
—Me ajudem! —gritava ela. —Me ajudem, por favor!
Em Alden, o impressionante era como a inteligência artificial funcionava com perfeição. Os NPC, personagens controlados pelo sistema, eram tão reais que muitas vezes tínhamos de perguntar se eram realmente um pacote de dados, ou se havia um membro da equipe do jogo controlando-os a todo instante.
—Esse é o começo da missão —avisou Hullia, mas eu já sabia.
Tirei das costas o arco composto, atualizado com gemas para que disparasse três flechas a cada ataque.
Atrás da garota, uma horda de goblinoides investia contra ela.
—Goblins?
Fui obrigado a rir. Goblins eram criaturas tão toscas para o meu nível, até mesmo para o nível de Hullia, que ainda estava no trinta e três. Estávamos acostumados a enfrentar gigantes, serpentes marinhas, até mesmo alguns dragões mais jovens. Goblins eram adversários poderosos nas primeiras áreas, antes de atingirmos o quinto nível, então não mais apareciam. Soube que o evento seria fácil naquele momento.
—Não subestime o evento. Vamos derrotar esses monstros e ajudar a garota a fazer o que ela deseja.
E assim foi feito. Os goblins pereciam com somente uma pancada, tão fracos quanto imaginei que seriam. Tombavam e desfaziam-se em dados, desaparecendo no ar em seguida. Logo todos eles tinham sido destruídos.
—Obrigado —agradecia a garota. —Vocês são muito fortes!
—Sou trinta e sete —zombei. —Precisa de mais alguma coisa?
Ela refletiu.
—Eu estou procurando por um Lírio do Instante.
—Lírio do Instante?
—É um tipo muito raro de flor! Não conhecem? São lindas, branquíssimas e cheirosas! Vocês precisam ver! Se aceitarem, podemos procurar uma dessas flores juntos, o que acham?
Olhei para Hullia, mas ela já respondia antes de mim:
—Pode contar conosco. Vamos te proteger enquanto você procura a sua flor, garotinha.
—Muito obrigado. Podem me chamar de Lina. Vamos?
Uma mensagem surgiu no meu menu. Dizia Lina se juntou ao seu grupo.
—Onde essa flor nasce, Lina? —perguntei.
A garota pensou por um tempo, como uma pessoa de verdade faria. Então apontou o sudeste do mapa daquela área.
—No subterrâneo, provavelmente. É uma flor que cresce com a força da lua, e não do sol. Ela se esconde para não atrapalhar os aventureiros que passam por aqui. É tão bonita que poderia desconcentrá-los, acreditam?
Começamos a procura pelo Lírio do Instante, seguindo a direção apontada pela NPC.
Achei o comportamento de Hullia um pouco estranho. Ela sempre fora agitada, mas agora parecia um pouco desanimada, mantendo o silêncio durante nosso deslocamento. Isso era incomum, já que ela sempre decorava algumas piadas infames para contar enquanto lutávamos por pontos de experiência e utensílios, comentava sobre algum bug que tivesse visto ou ironizava as principais notícias transmitidas a todo instante pelos jornais. Agora, enquanto avançávamos, ela não disse nada, como se o encontro com Lina tivesse trazido pensamentos estranhos para ela.
—Você está bem? —perguntei.
Ela demorou a entender que eu falava com ela.
—Ah, sim, claro. Estou bem.
—Tem certeza?
—Tenho, claro. Não se incomode com isso, Taros. Obrigado pela preocupação.
Eu sabia que ela estava mentindo.
Chegamos à entrada de uma caverna feita de doces. Aquele era um evento bastante incomum, com um cenário infantil, de cores que se alteravam a cada minuto. A vantagem da tecnologia de Alden eram as sensações, apuradas o suficiente para que o meio virtual fosse capaz de nos fazer sentir o jogo, desde o toque dos objetos, palpáveis na fantasia, ao sabor e cheiro das coisas, uma invenção dos produtores do jogo que alavancou as vendas de maneira absurda.
Me aproximei da entrada da caverna e retirei um pedaço do arco com as mãos. Tinha gosto de sorvete e pirulito.
—Que coisa mais boba —pensei alto.
Lina começou a descer os degraus da caverna. Escutei um barulho estranho vindo de Hullia.
—Você disse alguma coisa?
—Não. Eu não disse nada, nada mesmo.
—Acho que eu estou enlouquecendo.
Taros: Tem certeza de que não aconteceu nada? Eu quero ajudar, mesmo com palavras! Sou seu amigo, não sou?
Hullia: Sim, você é meu amigo, e por isso estou aqui, me divertindo do seu lado. :) Agora vamos continuar a quest, esqueça esse assunto.
Não estava convencido, mas decidi prosseguir.
A caverna nos guiou por uma escada de gelo e neve. Lina escorregou algumas vezes, mas eu a ajudei a descer com cuidado, ela agradeceu. Ofereci os braços para ajudar Hullia também, mas ela já estava ao meu lado.
—Sei me virar sozinha, seu bobo —brincou ela.
—Ofereço por educação, sei que você é uma gorila na essência.
Ouvi sua risada no sistema de vozes. Havia um ruído diferente misturado a ela, mas não soube defini-lo de imediato.
Fomos abordados por gigantes da neve, e este sim era um desafio a nossa altura.
—Somente o fogo pode danificá-los! —avisava Lina.
—Jura? Eu nem tinha cogitado essa hipótese.
Incendiei as flechas com um encanto e disparei, incinerando adversários sem deixar que se aproximassem. Hullia brandiu os chakrans, atacou com sua velocidade incrível. Garanti a ela o bônus de fogo que meus poderes permitiam, suas armas chamejaram, o dano dos golpes aumentou. Ela se esquivava bem dos monstros, tinha uma agilidade invejável, o que não era meu caso. Quando um dos seres se aproximou, fui atingido pelas costas, bati contra uma parede e derrubei várias estalactites do teto. Levantei e bebi uma poção de vitalidade, disparando novas flechas incendiárias a seguir.
O último dos gigantes urrou antes de quedar ao chão.
—Subi de nível —comemorou Hullia.
—Parabéns! Trinta e quatro agora, não é? Ainda tenho uma vantagem, vai ser difícil me alcançar.
—Eu não vou te alcançar.
Não entendi sua desmotivação. Ela sempre discutia dizendo que me superaria em breve.
—Como assim?
—Deixa pra lá. Olhe!
Olhei a direção mostrada por ela. Lá estava Lina, as mãos acima dos olhos, apurando a visão.
Bem à frente, um grandioso jardim de Lírios do Instante se abria como um manto de pureza alva, cintilando junto das paredes cristalinas.
—Nós encontramos os Lírios! —sorriu a NPC. —Minha mãe ficará tão feliz! Vocês não sabem como ela adora essas flores! Eu deixo vocês pegarem algumas delas para vocês se —
O teto desmoronou e, da poeira que se ergueu com os tremores surgiu um imenso Cérbero Gélido. Era um cão de três cabeças feito inteiramente de rochas congeladas, salivando pelas presas de cristal como uma fera esfomeada, as garras tão afiadas quanto espadas de um exército. Ele rosnou de maneira ameaçadora, debatendo-se contra as paredes e derrubando parte do cenário contra o jardim de flores brilhosas.
—Não, pare! —exclamou Lina. —Ele vai destruir o jardim! Nós precisamos impedi-lo!
Virei-me para Hullia, empolgado.
—Está preparada para enfrentar um chefe de evento? —perguntei a ela, com certa ironia nas palavras, zombando da jogadora que mais se preparava antes de cada missão.
Ela se virou e sorriu, e pude acreditar que aquele fora o sorriso mais sincero que já vira em seu rosto digital.
—Eu demorei nove meses para nascer, Taros —disse ela em resposta. —Estou sempre pronta.
Com as armas em riste, avançamos contra a criatura colossal, protegendo Lina de seus golpes congelantes. Cada ataque retardava nossos movimentos, mas eu esperava por isso também, tinha poções de aceleração que utilizava nas caçadas do Monte Nevada e elas nos salvaram as vidas. A cura era uma artimanha utilíssima, poções e mais poções jorrando dos arquivos de itens, as barras de energia sofriam quedas cada vez mais bruscas, imploravam por restaurações dos líquidos vermelhos que tínhamos nas mochilas inexistentes. Eu me afastei, deixei o arco rugir sem controle, abusei das técnicas que meu nível permitia, do simplório Disparo Veloz às avançadas especiarias da Tempestade de Virotes. Hullia estava sempre ali, ao meu lado, e era ela a resistência em nosso grupo. Suportava a maior parte dos ataques, oferecia o corpo e a armadura na defesa das pancadas violentas desferidas pelo Cérbero. Não utilizava um escudo. Era como sempre me dizia: ela era o escudo.
O escudo que me protegeria para sempre.
Juntos, éramos um grupo em eterno equilíbrio, e nenhum chefe poderia nos derrotar. Nem mesmo um Cérbero Gélido, e assim ele quedou diante de nossas flechas e chakrans.
Lina comemorou, saltitando sorridente como uma criança. Era uma das NPC mais graciosas que eu já vira na vida.
—Nós conseguimos! —ela aplaudia. —Salvamos o jardim, salvamos os Lírios! —Lina correu até as flores alvas. Retirou apenas uma do cenário, cheirando seu perfume com um prazer incomensurável. —Venham, venham ver a beleza dos Lírios do Instante!
Uma magia lindíssima agraciou todo aquele jardim, e assim as flores sopraram fadas e luzes em todas as direções, como um espetáculo de beleza indescritível. Me senti privilegiado por participar daquele evento. Os efeitos eram realmente bem feitos, garantindo uma satisfação que a vida real não me permitia. Além de tudo, tinha a companhia de Hullia, e ela era especial, tanto quanto aqueles Lírios para a NPC que brincava entre suas pétalas.
—Vamos ver as flores de perto —eu falei, chamando Hullia para completar o evento. —Quero tirar alguns screenshots.
Ela sorriu.
—Pode vê-los, se quiser. Eu estou bem aqui.
Junto de seu riso, havia outro barulho, o mesmo que eu havia escutado por vezes anteriormente.
Hullia —ou melhor, a garota por trás de Hullia —chorava.
—Você está bem? —perguntei, me aproximando da personagem. Fixei-me em seus olhos, como se buscasse encontrar ali a realidade por trás daquela personagem.
—Sim —ela fingiu um sorriso. —Bom, em termos. Estou feliz, sim, se é essa a sua pergunta.
—Feliz?
—Eu estou aqui, não estou? Não escolhi esse evento por acaso. Os Lírios do Instante são importantes para mim.
Não estava entendendo onde ela queria chegar.
—Você conhece a história dos Lírios? —ela me perguntou, e eu fiz que não. Não tinha o costume de ler o histórico de toda missão que participava, muito menos eventos como aquele, que surgiam sem aviso. Tudo em Alden tinha uma trama por trás, os Lírios do Instante não eram diferentes. Mas como aquilo poderia ser importante para Hullia? —Eu imaginei que não. Você deveria ler mais as coisas sobre o jogo. Há uma simbologia incrível espalhada por esse mundo.
Prometi que daquele dia em diante conheceria mais sobre o jogo, dos roteiros sobre os NPC até os detalhes sobre cada quest.
Hullia continuou:
—Havia uma mulher chamada Phoebe. Ela era considerada uma santa em seu reino, adorada por tantos quantos eram os moradores de sua cidade, possivelmente mais. Phoebe estava sempre sorrindo, sempre com uma felicidade radiante que contagiava todos que se aproximavam. Assim, ninguém acreditava que ela seria capaz de sentir-se mal algum dia. Era como uma guerreira imortal, uma sacerdotisa que nascera para honrar os deuses. E ela sempre cuidava das crianças de seu povoado com uma alegria constante, ensinando-os a preservar o instante que viviam, pois todo o restante era incerto.
—É como você —eu disse. —Você também sempre me diz essas coisas, e está sempre bem. —Parei para refletir um pouco. —Exceto hoje. O que aconteceu?
—Ainda não terminei a história, Taros. Um dia, Phoebe morreu. Descobriram muito tempo depois que ela carregava uma maldição, uma magia obscura que extraía suas forças conforme ela ajudava os outros.
—Que terrível.
—Certamente. —Hullia deu as costas para o meu personagem. Vez ou outra, soluçava um choro disfarçado. —Em sua homenagem, plantaram um lírio que representaria toda a paz de espírito que ela carregou durante a vida. Esse foi o primeiro Lírio do Instante, que recebeu esse nome graças ao lema que aquela mulher espalhou durante toda sua vida.
—É uma bela história —completei, mas ainda não entendia. —Onde quer chegar?
Hullia se sentou ali mesmo, observando o jardim de lírios cintilantes.
—Qual é o seu nome?
—Você sabe —respondi. —Taros.
—Não, Taros. O seu nome.
Estranhei sua curiosidade. Ela nunca me perguntara nada sobre a vida real.
—Meu nome é Marco —disse com incerteza.
Hullia sorriu.
—Eu me chamo Sofia —contou.
—É um nome bonito.
—Obrigada. Tenho dezesseis anos, Marco. Faço dezessete em agosto. Faria.
Por que ela estava me contando aquelas coisas?
Espere um pouco.
Faria?
—Essa é a última vez que você me encontrará online, Marco —ela continuou, antes que eu pudesse pensar em algo para dizer. —A partir dessa noite, serei internada para alguns procedimentos emergenciais. Eu tenho uma doença incurável, e ela é minha ruína há anos. Agora, no entanto, alcancei o meu limite.
Limite?
—O que está dizendo?
Seu sorriso desapareceu.
—Eu vou morrer, Marco.
Não. Aquilo não podia ser verdade.
Meu peito doía, dentro e fora do jogo.
—Você está brincando, não é? —arrisquei. Era isso. Uma brincadeira de mau gosto, nada mais.
—Não. Eu vou morrer.
Eu não conhecia Sofia. Conhecia Hullia, somente ela. Sofia era a jogadora, nada mais, uma garota que eu nunca vira na vida, que nunca veria dia algum. Hullia era importante, uma companheira de tantas aventuras, de tantas missões. Sofia era uma desconhecida, uma estranha.
Por que machucava tanto, então?
—Eu o trouxe para cá por considerá-lo meu amigo, Marco —ela falou, e eu chorei. —Ou Taros. Ambos, real e fictício. Você é meu amigo. Meu único amigo verdadeiro em tempos, e eu não poderia partir sem me despedir.
—Isso não é uma despedida —disse, sem forças. As lágrimas deturpavam a imagem de meu personagem.
—Não é um adeus —ela disse sorridente. —Entenda como um até logo. Só quero que o logo demore bastante, no fim.
—Por isso você —
—Sim. —Por isso escolhi o evento do Lírio do Instante. Para poder guardar esse instante comigo para sempre, e você também.
—Você disse que seria meu escudo. Eu também queria poder ser o seu.
—As coisas não são tão fáceis assim —ela murmurou. —Ninguém pode se defender da vida.
Me sentei ao seu lado. Queria dizer mais, queria falar muito, mas nada me vinha à mente, e assim o silêncio reinou. Minutos, cerca de uma hora, e então Hullia se levantou. Seu tempo chegara.
—Preciso me preparar —ela disse. Colheu um Lírio do Instante e me ofereceu. —Tome. Essa flor é o que resta de mim. Enquanto você carregá-la, carregará parte de minha existência consigo.
Quando ela deixou o jogo, eu me desconectei. Abandonei a máquina e a vida e, naquele domingo, me isolei do mundo, deitando abaixo do travesseiro e chorando como uma criança cujo doce fora roubado.
Muito tempo se passou desde aquele dia. Eu aprendi a dar valor a muitas coisas. As pernas que eu não possuía não eram tão importantes. Eu estava vivo, afinal, e sabia que isso era o que realmente valia a pena. Me conectei vários dias sem jogar, apenas esperando que, dentre a minha lista de amigos, a qual só continha um nome, alguém aparecesse. Aguardei semanas, meses, o nome Hullia selecionado, esperando que minha companheira se conectasse, mas ela nunca mais veio.
Quantos anos se passaram?
Eu não soube contar.
Hoje, sei apenas que há um personagem de arco que é considerado lendário, de nível elevado e história marcante, sempre portando um Lírio do Instante em sua armadura, uma memória que ele nunca vai deixar para trás.

Nenhum comentário:

Postar um comentário