segunda-feira, 18 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 1 / Ato I

Olá, companheiros.
Mais um ato de Delirium para vocês. Espero que curtam.
Até a próxima!


I

A manhã estava mais nebulosa do que de costume. O clima instável, costumeiro daquela cidade miúda dos confins da Alemanha, castigava seus moradores, alternando entre ápices distintos sem aviso algum. Desde que o Aquecimento Global ultrapassara os níveis aceitáveis pela ciência, todo lugar era assim. Ora quente e fervoroso, ora gélido e nevado.
No entanto, homem algum ousava reclamar daquela tortura. A culpa, afinal, era deles próprios, de sua poluição, de seu maltrato para com a natureza.
Entre alguns flocos de neve que deslizavam na brisa, uma porta envernizada se mostrava atrativa, abaixo de uma gloriosa placada de Bem-Vindo! Um tapete com orações em latim agraciou os pés de mais um dos convidados, antes que este batesse à porta com as costas da mão.
Era um senhor ajeitado, vestindo-se num terno garboso, com sapatos engraxados e cabelos bem cortados, algo entre o castanho e o loiro. Os olhos pareciam procurar alguma coisa atrás de si, abaixo ou acima, em todos os lados, sempre inseguros.
Conforme a paranoia da perseguição aumentava gradativamente, o senhor Adiel Marcuse aumentou a velocidade das batidas, assim como a força empregada em cada toque.
“Doutor Trevor? O senhor está aí?”
Sentia algo atrás de si. Virava-se, o sol delicado iluminando as ruas e calçadas, as crianças brincando com seus pais e irmãos, montando bonecos de neve.
Adiel, perseguido.
“Doutor Trevor!”
Gritava, espancando a porta. Alguma coisa estava perto, estava chegando. Sentia, dentro do peito, algo comprimir seu coração, espremê-lo até que o sangue começasse a fraquejar.
“Doutor, por favor!”
O rosto suava, ainda que o clima friorento raramente permitisse tal situação. As mãos estavam trêmulas, forçavam a maçaneta adornada por esqueletos, usou dos pés para auxiliar as batidas na porta.
Trevor Kraepelin não estava zombando de Adiel. Terminava seu banho quando escutou as primeiras batidas, agilizou a troca de roupas para que pudesse correr até aquele que o chamava. Consultou sua agenda mental, mas ela era falha e impossível de se confiar. Não conseguiu se recordar do nome.
Vestiu-se rapidamente, sem se preocupar com pormenores. Calça antiga, camisa clara e estampada, sapatos surrados pelo dia-a-dia, e estava preparado para atender.
Por sorte, pois seu paciente começava a gritar por seu nome, enquanto esmurrava a porta de seu consultório-moradia.
“Já estou indo!”
“Doutor Trevor, por favor, eles estão aqui!”
Eles sempre estavam ali. Trevor se acostumava com aquelas palavras, pois sua profissão o guiava pelo submundo da loucura. A psiquiatria era uma área atrativa para certas pessoas, pois mostrava a realidade do subconsciente das pessoas. Trevor a amava, mas a odiava também. Tinha seus altos e baixos.
“Eu também estou aqui.”
“Eles estão chegando, estão chegando!”
“Acalme-se!”
Desceu a escadaria espiralada de seus cômodos superiores, apoiando-se no corrimão irregular e gasto, saltou os últimos três degraus para alcançar o piso frio. A casa não estava ajeitada, mas que diferença faria? Tirou as roupas de cima dos estofados, limpou a mesa da cozinha com os braços, acendeu a lareira.
“Doutor Trevor, pelo amor de Deus, abra essa porta!”
As coisas começavam a complicar para Adiel. As crianças ganhavam um aspecto tenebroso, curvando seus olhos espelhados em ângulos impossíveis, dobrando-se ao meio enquanto sacudiam seus braços e pernas desossados.
Atrás delas, um batalhão de bonecos de neve se erguia do solo albino, retirando os galhos retorcidos que lhes serviam de braços para usar como armas brancas. Suas expressões eram terrivelmente cruéis, assim como a neblina que se dispersava junto da respiração daqueles seres.
Adiel começava a entrar em pânico.
“São eles, doutor, são os monstros!”
Trevor Kraepelin abriu a porta de sua casa, encontrando os olhos de Adiel arregalados pelo pavor. O homem o empurrou, saltou para dentro de sua casa, estirou-se no tapete, arfando.
As crianças se aproximaram de Trevor.
“Aquele senhor está bem?”
“Está sim, ele estava apenas brincando.”
Trevor gostava de crianças. Sempre tinha um sorriso no rosto ao falar com uma delas.
“Ficamos com medo. Ele parecia estar passando mal ou coisa do tipo.”
“Fiquem calmas, crianças, o senhor Adiel está passando por alguns momentos ruins, e apenas isso. Agradeço pela preocupação de vocês.”
Com um aceno, Trevor se despediu daqueles garotos sorridentes, e então fechou a porta atrás de si.
“Bom dia, senhor Adiel.”
O homem ofegava, trêmulo. Jogado num leve tecido que pouco o distanciava do piso, Adiel tinha olhos marejados, somados a uma expressão depressiva.
“Bom dia, doutor.”
Sua voz era pouco mais do que um murmúrio.
“Os monstros ainda estão aí?”
“Não há monstros, senhor Adiel. Eram apenas crianças. E alucinações.”
“Ah, sim, claro.”
Adiel se levantou.
“Mas elas já foram embora?”
“Sim, elas já foram embora. Você está a salvo aqui dentro. Minhas paredes são protegidas de monstros e ilusões.”
O doutor cumprimentou seu paciente com um sorriso agradável, ajudando-o a se levantar. Ofereceu uma cadeira e uma xícara de café, mas Adiel se recusou.
“Tem se alimentado, senhor Adiel?”
“Como quando sinto fome.”
“E quanto tempo costuma demorar?”
“Horas. Dias. Semanas, após as cenas mais críticas.”
“Cenas mais críticas?”
Adiel parecia perturbado. A simples atitude de pensar naquelas coisas o fazia tremer, sua mente oscilando em conflito.
“Preciso de ajuda, doutor. Preciso me livrar dessas criaturas. Elas estão me perseguindo.”
“Claro, senhor Adiel. Vou te ajudar da melhor maneira possível. Se o senhor me permite, levarei um café até meu escritório. Lá poderemos conversar melhor.”
Guiando Adiel enquanto atravessava as portas, Trevor bebericava seu café fumegante, saboreando os últimos instantes de sua vida pacata. Acostumado à insanidade de seus pacientes, tinha seriedade em todas as consultas, buscando aventurar-se nos limites das lembranças de cada um deles para que pudesse encontrar o problema que causava tais distúrbios.
Por vezes, lembranças dolorosas eram esquecidas por vontade própria, e então o subconsciente fazia parecer que elas sequer existiam. O trabalho de Trevor era entender cada pessoa, seus traumas e desavenças, descobrir a verdade dentro de si.
Depois disso, entrava seu hobby, mas essa era outra história.
Alcançaram um cômodo largo, de janelas gradeadas e vidros finos, transparecendo a claridade do exterior.
“Pode se sentar ali.”
Adiel obedeceu, acomodou-se numa cadeira de apoios largos, ainda olhava de um lado para o outro como se esperasse que as crianças infernais retornassem.
“Aqui é seguro, doutor?”
Trevor fechava as cortinas finas, o que ainda permitia a entrada da luz natural.
“O lugar mais seguro do mundo, senhor Adiel. Por que não começa a me relatar seus problemas?”
Adiel esperou até que Trevor se sentasse, estendendo as mãos até um gravador de som portátil, o qual acionou e largou sobre uma mesa de madeira. Ajeitou os óculos no rosto, e só então pegou seu bloco de anotações.
“Vai gravar tudo o que eu lhe disser?”
“Certamente, senhor Adiel. Não posso perder detalhe algum de nossa conversa, se realmente desejar resolver seu caso. Nunca esteve num psiquiatra antes?”
“Passei por onze diferentes, mas nenhum deles optou por gravar as sessões.”
“Assim como nenhum deles foi capaz de lhe ajudar, não é? Não pretendo divulgar essas coisas para ninguém, senhor Adiel. As sessões são privadas. O som é apenas para futuras consultas de minha pessoa em seus distúrbios sonoros, ou caso algum detalhe importante seja perdido por minha caneta.”
Com um aceno, Trevor exibiu sua caneta personalizada.
“Entendo. Não faz diferença.”
“Realmente. Vamos começar?”

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