segunda-feira, 25 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 1 / Ato IX

E para completar a passagem da meia-noite desse mês de junho que já caminha apressado para o fim, trago mais um ato da Light Novel Delirium, encerrando assim o Caso 1 de nossa história. Espero que estejam gostando da leitura, e peço para que não deixem de comentar!
Até a próxima!


IX

Deitado sobre um carpete de estacas, Trevor se sentia perfurado pelas verdades. Ao redor de si, silhuetas infernais, grotescas e peculiares, movendo os membros elásticos e tentaculares para todas as direções.
Acima de Trevor, o paraíso, o Éden. Tinha suas árvores belas, seus frutos suculentos, suas flores perfumadas e garbosas.
Abaixo, o inferno, queimando em chamas violentas, onde tudo era o mais puro breu. Mesmo as chamas eram negras, crepitando como o magma fervoroso a jorrar de um vulcão ativo, num frenesi incontestável de malícia e perversidades.
O ceifador estava no meio de tudo, no encontro dos mundos, nas torturas sem fim. Ali, como muitos chamavam, era o purgatório, o local das escolhas, dos julgamentos. Naquele jardim de espinhos e lâminas, Trevor era julgado, apontado por incontáveis sombras de existências, relembrando seus pecados e suas virtudes.
“Fora um bom homem.”
“Errara demais.”
“Está banhado em sangue!”
“Defendeu sua própria raça quando poucos ousariam defender!”
“É apenas um tolo com poderes demais.”
“Um vagabundo que se aventurava nos sonhos dos outros!”
“Ele não merece o paraíso!”
As vozes não paravam. Trevor não queria, mas escutava seu próprio julgamento, a opinião de inúmeros seres sobre sua alma impura. Faziam-no lembrar de cada dia, de cada acerto e cada erro, de cada criatura que tombara em suas mãos.
“Ele é um Sangue Azul!”
Muitas das vozes se calaram. Predominou aquela aura feminina, exalando uma fragrância incomensurável, capaz de amaldiçoar padres e seus votos de castidades. Mesmo sem forma, sem corpo, sua presença era linda e apaixonante.
Naquele momento, entretanto, ninguém se importou com ela. As palavras eram surpreendentes demais.
“Sangue Azul?”
“O que é um Sangue Azul?”
“Como ele pôde!”
“Maldito!”
“Esse homem tem de morrer!”
“Pensei que não mais existissem tais monstros!”
“Que absurdo!”
“Tão belo, mas tão tolo.”
Trevor girava no lugar.
Falavam dele. Apontavam-no como um monstro, como um ser pior do que aqueles que caçava. Era aquilo que diziam, um Sangue Azul, ainda que escondesse a verdade de todos ao seu redor, de si mesmo, quando possível. Um crime que homem algum seria capaz de esquecer, de se livrar.
O maior dos pecados.
“Sangue Azul.”
Era aquela voz encantadora e, de repente, só restava ela. Todas as vozes e presenças e formas assombrosas desapareceram ante aquela criatura, deixaram-na a sós com Trevor.
O ceifador gritou.
Como criança, como menina, gritou pelo desespero de sua vida. Sabia quem era aquela mulher, sabia que sequer era uma mulher. Sabia que aquele era seu erro, que ela era a culpada, que ele era apenas um boneco.
Gritou, apavorado por seus próprios pecados.
“Saia daqui!”
“Está me expulsando, garotinho? Logo eu, que tanto fiz por você?”
“Saia! Desapareça!”
Os gritos ecoavam no nada, destruíam o universo ao seu redor. Logo restou apenas a voz, o corpo de Trevor e seu sangue, escorrendo por cada agulha que lhe trespassava.
“Não posso sair. Não posso desaparecer.”
“O que você quer?”
“O que eu quero? Não é simples? Você demorou pouco para descobrir, da primeira vez.”
“Não posso te ajudar. Não vou te ajudar! Não cairei em seus truques outra vez, demônio!”
“Vamos, Trevor, toda sua pele está suja de sangue! Está sentindo dor? Está prestes a morrer? Deixe de atuação barata, ceifador, este sangue sequer é seu!”
Não era. As agulhas eram falsas, um teatro surreal, a dor era apenas fingimento. Mas o sangue estava lá, cobrindo todo seu corpo, agraciando sua língua com um sulco esponjoso e quente, o gosto de metal inundando sua garganta seca.
O sangue era de outro. Mas parte era seu.
“Por que? Por que isso está acontecendo? Por que?!”
“Porque você se entregou, Trevor. Porque foi fraco quando mais precisava ser forte. Porque se rendeu a mim.”
“Eu não vou me entregar outra vez.”
“Pare com essa mania de medievalismo, ceifador. Não há heróis em seu mundo. Não mais restaram os cavaleiros para enfrentar dragões e demônios. São todos homens, todos tolos, todos fracos.”
“Vá embora!”
“Aceite sua verdade, Trevor. Aceite que é um Sangue Azul, aceite sua nova faceta. Entregue-se ao seu objetivo.”
A voz então se materializou, era realmente linda. Uma mulher de cabelos negros, de tez pálida, de olhos bicolores. As tatuagens riscavam seus braços, um mutirão de cores e formas desenhavam sua pele macia.
Trevor se apaixonou outra vez.
Choramingou.
“Não vou... Não quero, não posso... Não vou!”
“É tarde demais, Trevor. Tudo já está perdido.”
Talvez estivesse, mas Trevor nunca aceitaria aquilo. Ergueu as mãos, havia entranhas e vísceras em seus dedos, carne apodrecida abaixo das unhas. Sangue, muito sangue, escorria por sua pele, manchava as vestes e o solo inexistente, gotejava com uma melodia horrenda.
“Não vou permitir que isso aconteça!”
O mundo ao redor de si se rompeu, despedaçou como uma frágil camada de vidro. A mulher sorriu com malícia, desapareceu nas sombras. Trevor praguejou.
Acordou de súbito, suava frio.
Tudo fora apenas um pesadelo, no fim.
Levantou-se, caminhou até o banheiro, gritou pelo choque da situação.
Em seu espelho, escrito com um líquido espesso e asqueroso, encontrou os seguintes dizeres:
Sangue Azul é aquele que se relaciona com demônios, que perde sua humanidade, que se entrega aos prazeres de tais seres. Nunca vou lhe deixar esquecer.
Não deixaria.

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