terça-feira, 19 de junho de 2012

Conto - A Empreitada dos Corsários sem Rosto

Olá, companheiros.
Escrevi um conto recentemente, visando uma antologia ainda aberta, mas a ideia acabou fugindo um pouco do contexto do regulamento. Entretanto, por ter apreciado os personagens e o desenrolar da trama, concluí a história da Capitã Amélia, uma desbravadora dos ares que, ao lado de seus companheiros, que são Filch, um Chesir, híbrido de homem e felino; Barão Portello, um rico que deixou tudo para trás para se aventurar nos ares; e Turum, um autômato com pouca utilidade, passa por diversas aventuras, e uma dessas é narrada neste conto, A Empreitada dos Corsários sem Rosto. Como faz tempo que não trago um conto para o blog, resolvi postá-lo aqui, mas essa história também fará parte da 5ª antologia de publicação independente, até então com 3 contos e com o nome provisório (que pode se firmar) Dizeres de um Fantasista.
Vamos à história?
Até a próxima.




—Nessa situação, nós temos apenas duas opções —disse a capitã. Desabou o membro mecânico, implante que substituía o braço direito, amputado numa batalha de tempos antepassados, sobre a mesa do pub onde sempre reorganizavam seus planejamentos. Todos a olhavam com seriedade, esperando pelas escolhas que decidiriam o destino de toda a tripulação. —Matar ou morrer.
—Não estávamos falando em caçar tesouros um minuto atrás? —perguntou o Senhor Filch, um meio felino de bigode redondos e cara de poucos amigos, franzindo o monóculo que lhe auxiliava a visão.
Amélia refletiu por um tempo.
—E isso muda algo?
—No final, nós sempre acabamos matando alguém —comentou o Barão Portello, outro dos companheiros de Amélia, um velhaco milionário que abandonou toda sua fortuna para viajar nos ares da terra de Ellevia. —Acho que a opinião mais válida é a de Turum. O quê você acha, meu amigo?
Turum era um construto, um androide cujas propriedades permitiam caminhar e lutar, mas não responder a perguntas. Ele rangeu alguma coisa indecifrável, deixando um sorriso irônico e malicioso no rosto carrancudo de Portello.
—Viram? —disse o velho. —O silêncio é a melhor das certezas.
Amélia bateu o caneco sobre a mesa. Aquela era sua família, seus companheiros. Olhava para trás, lembrando do passado, das virtudes que abandonou em troca de uma vida nômade e incerta.
Olhar para trás lhe causava tontura.
—Sabe de uma coisa, quero que todos vocês vão à merda hoje —ela gritava mais alto do que poderia imaginar, despreocupada com a atenção de todos os presentes no pub. —Comprem suas putas e vadios, bebam até que os cães encham suas bundas fedorentas de lambidas! Mas amanhã, ah sim, amanhã, todos nós temos de estar nas melhores condições! Vamos atrás de encrenca, filhos da mãe, já que ela sempre vem atrás de nós.
Terminando suas palavras, Amélia se levantou, brindando em urros dispersos numa comemoração de companheirismo sem fim. Eram amigos, tripulantes e líder, um bando de desocupados navegadores das nuvens. Em pé, deixavam que as vestimentas chamativas fossem apontadas por outros transeuntes, eram motivo de chacota, mas nada daquilo era incômodo.
Incômodo era aquela vertigem incomum.
—A senhora está bem, capitã? —perguntou Filch. Ele ronronou, mas abafou o ruído com um gole de cerveja.
—Eu estou muito —
Estonteada pelo álcool, Amélia cambaleou para trás, esbarrou em dois elfos de trajes elegantes, derrubou um deles sobre um barril de cerveja. Um anão de armadura que os guardava postou-se à frente, levantou o martelo de combate em desaprovação, proferiu ameaças que pareceram ganidos insolentes. A capitã vomitou em sua barba.
—Como ousa?
Turum baixou a cabeça. Não podia falar, mas se pudesse, diria algo similar a merda.
Tiveram de pagar várias coisas aleatórias para o pub, mais tarde, indiferentes à situação. Filch perdeu alguns pelos, Amélia quebrou duas unhas, Portello torceu um dos pés, mas toda aquela confusão diária lembrava a eles que estavam vivo, que viviam por aquilo e que não havia nada melhor do que virar cada página do livro da vida de uma vez.

Retornavam para a nau, já era madrugada. Lá estava ela, a bela Narcisus XVI, herança da família do Barão Portello, roubada pelo próprio herdeiro quando seus familiares protestaram contra sua insolência. O navio voador era imenso, todo trabalhado em bronze e ametista, com velas de couro draconiano e mastros de madeira das árvores de Ignácia. Nenhuma outra embarcação do mundo se igualaria ao valor daquela, possivelmente, mas uma coisa era certa: nenhuma teria tantas histórias para contar.
Não se preocuparam com o barulho; não havia ninguém para ser acordado. Prepararam suas coisas e se deitaram, mas Amélia logo retornou às ruas da cidadela de Toleris. A ânsia a impedia de adormecer, criava pesadelos de olhos abertos, e assim a capitã preferiu caminhar para que pudesse respirar com maior facilidade.
Toleris era um lugarejo pacato, nada além de uma dúzia de ruas que cercavam um mercado minúsculo e reuniam pessoas aglomeradas na intenção de se distanciar das grandes metrópoles. Não havia torres, fortes, defesas ou afins, era apenas um povoado de mercantes desavisados. Eles não sobrevoavam as terras do norte, não recebiam notícias decodificadas pelos rastreadores, não eram capazes de entender as nuvens de fumaça que sopravam ao leste. A guerra estava lá, em todos os cantos, mas e daí? Para que se preocupar com um distúrbio tão sutil quanto um elefante com diarreia quando se pode deitar a cabeça num travesseiro de penas, cheirar o mofo acomodado nos lençóis e fingir viver a merda da vida de um camponês? Toleris era feita de tolos ignorantes, e esse era o motivo de Amélia e seus tripulantes adorarem aquele lugar: eram tolos, e isso fazia deles sábios, descrentes dos desejos por dinheiro, guerra e poder.
Bastante diferente dela, obviamente.
—Mas que cheiro é esse?
Não conseguiu evitar o comentário ao sentir aquela grossa camada impregnar o ar. Era quase uma neblina multicolorida de tão fétida, um odor clássico de...
—Trogloditas?
Três deles, cercando uma pequena criatura indefesa. Num primeiro momento, Amélia acreditou se tratar de uma garotinha, uma criança coberta por trapos surrados. Parou, olhou com dificuldade; não sabia se eram três criaturas ou se ela estava vendo as coisas embaçadas, ainda.
—Saia daqui, vadiazinha —gritou um dos seres. —Você não tem que atrapalhar nada!
—O que pensam em fazer? —perguntou a capitão, entre um arroto.
—Não é do seu interesse!
—Eles querem me devorar! —alertou o monstrinho capturado, que nada tinha de criança. Num lampejo do luar, Amélia pôde ver sua pele azulada e seus grandes olhos esbugalhados. Achou que realmente estava bêbada.
—Devorar, é?
—Me ajude!
Amélia deu de ombros.
—Para quê? Eu tenho mais o que fazer, pobre coitado. Boa sorte.
—Eu posso pagar!
Um dos trogloditas saltou na direção da criança. Seu peito explodiu no ar, trespassado por um disparo tão poderoso quanto um canhão seria capaz de fazer.
—Agora sim as coisas começaram a ficar interessantes.
Dois tiros e o ar se encheu da espessa e repugnante gosma existencial dos trogloditas.
—Vamos conversar sobre dinheiro, agora.
O ser se ajoelhou nos pés de Amélia, e não parecia muito menor do que seria em pé. Curvou-se duas vezes, reverenciando sua heroína.
—Você me salvou!
—Ei, vamos com calma, ok? Eu não te salvei. Eu troquei a sua vida por uma recompensa, e é isso o quê estou esperando agora.
—Eu tenho ouro, muito ouro mesmo.
—Ótimo. Ouro é sempre uma boa opção.
—Mas eu não tenho nada aqui comigo...
Amélia agarrou o pescoço da criaturinha com as duas mãos, erguendo-a na altura de seus ombros. Ali, reparou que ela tinha uma cabeça avantajada, orelhas afiadas para baixo, contrárias às dos elfos, e três olhos redondos e marejados. Media algo perto dos quarenta centímetros.
—Pressinto um problema, então. —A escopeta da capitã pirata encostou-se aos lábios azulados do pequeno monstrinho, era gelada. Amélia fez uma carícia com o metal. —Me prometeu algo que não pode cumprir, o que te torna tão indesejado para o mundo quanto esses fedorentos de agora há pouco.
—Mas eu posso cumprir! Eu posso, juro. Só preciso ir até o meu reino e —
—Quer ser escoltado, é isso?
Fez que sim.
—Por favor, eu preciso voltar para casa. As coisas estão ruins para o meu povo, eles estão no meio da guerra! Eu fugi para —
—Me poupe da sua história, tudo bem? Se quer uma escolta, vamos cobrar um pouco mais caro. Duzentas peças de ouro, combinado? E também um pouco de pó de íris, se tiver na sua região.
A criatura franziu o cenho, sem entender.
—Pois bem, eu sou Amélia, capitão de Narcisus XVI —apresentou-se ela. —Quem é você?
—Zafir. Meu nome é Zafir Lovathir, das terras de Probisca.
—É um prazer, agora vamos. Temos uma viagem para fazer ao amanhecer e não quero perder aquele tesouro. Se realmente quer nossa companhia para sua casa, é melhor que esteja com tudo arrumado e —
—Eu não tenho nada. Não há nada para ser levado.
—O que facilita bastante as coisas. Pode me seguir?
Zafir fez que sim, e então acompanhou Amélia até a nau, ancorada ao porto aéreo de Toleris (nada além de uma plataforma minúscula acorrentada às pedras da região). Parecia muito impressionado ao ver um navio daquele porte nas mãos de piratas, o que, de certa forma, fez com que Amélia se gabasse. Subiram as escadas e alcançaram os aposentos dos piratas, brevemente recepcionados pelos roncos assombrosos de Portello.
Amélia ligou a embarcação, acionando todas as turbinas e a maquinaria cobreada que girava a todo vapor no interior daquela máquina-monstro. O barulho acordou Filch e o Barão, e até mesmo Turum surgiu dos cômodos mais baixos, atento quanto a um possível furto do navio.
—Você é louca? —Filch tinha a pelugem arrepiada. —Que ideia é essa de partir na madrugada?
—Temos outro destino antes da busca pelo tesouro —disse a capitã. —Meus amigos, apresento-vos Zafir, essa coisa azul aqui do meu lado. Eu o salvei, e ele nos prometeu ouro, muito ouro mesmo. Vamos levá-lo de volta para Probisca, de onde ele veio.
—Probisca? —Portello parecia admirado. —Probisca é o reino dos Carala, se bem me lembro!
—Sim —contou Zafir. Ele se livrou do manto, revelando duas longas orelhas de coelho, com as quais flutuou até a altura do rosto de Amélia. Seu corpo era minúsculo, e muitas de suas partes estavam substituídas por placas de aço ou mecanismos de funcionamento a vapor. —Eu sou um Carala também, herdeiro do povo que já não mais existe.
—Herdeiro?
Ele hesitou.
—Posso contar tudo mais tarde. Se incomodam se partirmos agora?
Amélia estranhou, mas moveu os controles de Narcisus e lançou sua aeronave ao vento noturno, tão frio quanto um cubo de gelo dentro das calças. As nuvens acolheram o grupo com um abraço preocupante. Zafir pousou, pois a brisa dificultava seu voo desajeitado.
Toleris ficava para trás, bem como toda a dignidade de Amélia, que despencava da amurada junto de seu vómito.
—Eu pensei que ela já estaria melhor —Filch comentou com Turum, que assentiu com seus sons estrambólicos.
—Carala —disse Portello, aproximando-se de Zafir, que estava sentado numa pequena plataforma de controle. —Essa raça não deveria estar extinta?
—E estão. Eu sou o último deles, até onde se sabe.
—Por que deixou seu lar, então?
—Precisava fugir. Todos eles se concentraram demais em me proteger, e as coisas não estavam boas. Mesmo aqui, tão distante de minha casa, ainda sou caçado somente por existir. As recompensas são valiosas e —
Zafir se calou. Por um momento, esqueceu-se de que estava numa embarcação com piratas, caçadores de recompensa.
—Recompensas?
—Deixa pra lá. A questão é que eu abandonei meu lar para tentar salvar meu povo, mas as coisas não funcionaram bem como eu esperava. Muitos deles foram escravizados, outros tantos mortos, e eu aqui, fugindo. Não aguento mais, falo sério. Não quero ver meu lar ceder sem que eu possa ajudar.
—Eu entendo sua história —disse Portello, baixando os olhos para as montanhas que corriam velozes abaixo de Narcisus.
Em sua mente, recordações da era de ouro de Equidna, quando a magia era respeitada e admirada. Após tanto tempo de dependência daquela arte divina e inexplicável, os homens se rebelaram, atacaram os castelos e os fortes, assassinaram todos sem piedade alguma. Alguns guerreiros eram amigos, irmãos, filhos dos feiticeiros que habitavam aquelas paredes. Mataram, ainda assim, porque assim lhes foi ordenado, e cavaleiros são o que são, nada além de lacaios submissos aos comandos abusivos de um general dominado por poder e ganância. Portello conseguia visualizar aquele teatro de fantasmas no vento, como se as nuvens bailassem na representação da agonia que ele um dia antes presenciara. Tantos gritos, tanto sangue, tantas espadas percorrendo os corpos de seus pais e irmãos. Ainda era jovem, criança ou adolescente, não fazia questão de lembrar. Era grande o suficiente para sentir o frio do temor quando encontrou Joriel, seu amigo de infância, portando um escudo com o emblema dourado da cavalaria de Lothur e uma espada maior do que suas pernas, tão pesada que seus braços oscilavam a cada passo. Grande o suficiente para sentir o calor da fúria enquanto tentava se defender daquele que, dias atrás, se escondia na árvore numa brincadeira inocente e alegre, que agora, ofuscado pelas ordens gritadas pelos comandantes de supremacia decrépita, golpeava o melhor amigo como se não houvesse amanhã, como se sua vida dependesse daquilo.
—Entende?
A voz de Zafir fez Portello despertar de seu transe. Os fantasmas teatrais das nuvens desapareceram.
—Sim. Mais do que você imagina.
Zafir suspirou.
—É triste, sabe? Pensar que muitos morreram por minha causa.
—E muitos ainda vão morrer.
O Carala parou de respirar, espantado.
—Não seja ingênuo, Zafir. Vamos voltar para seu reino, pois você nos deve uma recompensa. Como acha que seremos recepcionados? Com flores e aplausos?
—O quê você acha que nos espera, Barão?
Portello ergueu o rosto. Deixou uma lágrima escorrer em seu rosto.
—A guerra.

A guerra estava em todo lugar, a todo momento, e Amélia bem sabia disso.
Evitava pensar, no entanto, focando-se na recompensa que a aguardava.
—Por que está ajudando essa coisinha? —perguntou Filch.
—Como assim?
—Por que está ajudando ele? Você não é assim, boazinha e tudo mais.
Amélia bufou.
—Eu quero a recompensa, ora!
—É só isso mesmo?
—E o quê mais seria?
Filch deu de ombros.
—Tenho um mau pressentimento, se quer saber.
—Não, na verdade eu não quero saber. Você sempre fala isso, e sempre acontece alguma merda. Não é um mau pressentimento, é um agouro, seu gato de merda! Vire essa sua boca amaldiçoada para lá! Lembra da floresta mecânica?
Um lugar de árvores-máquinas, onde toda a tripulação quase perdeu o Narcisus XVI após uma saraivada de virotes afiados e venenosos que danificou grande parte dos motores e quase destruiu as velas que mantinham a aeronave em seu curso, e Filch se lembrava muito bem disso.
—Eu não sou amaldiçoado!
—Que seja. Nós vamos chegar em Probisca e levar Zafir até sua casa, só. Não vai acontecer nada, não vamos ser alvejados e —
Zumbidos.
Eram hélices.
—Que merda é essa?
Turum acionou seus alarmes de aviso, mas todos já estavam preparados para enfrentar a ameaça que os rondava. Eram ladrões dos ares, bandidos distribuídos em cerca de sete ou oito naves-inseto, pequenos modelos criados para invasões velozes e reconhecimento de terreno por patrulhas de ventania. Lembravam libélulas, com a diferença de ter hélices em suas asas, produzindo assim um ruído contínuo e incômodo, capaz de assolar os mais tranquilos dos ouvidos.
—Ladrões! —gritou o Barão, retirando seu manto das costas para revelar uma mochila de propulsores. —Se esconda, Zafir! Turum, proteja-o!
O construto obedeceu.
—Não queremos derrubá-la, Narcisus —chiavam os aparelhos sonoros acoplados aos mastros, indicando o contato imediato utilizado pelos criminosos. —Queremos apenas o Calara! Entregue-nos o monstrinho e vamos permitir que fujam!
Amélia lançou um olhar estreito para Zafir, que encolheu as orelhas, preocupado. Seus olhos diziam tem coisas para você me contar depois, pequenino, e o Carala entendeu o recado de imediato. A capitã puxou o mecanismo de contato de sua embarcação e o aproximou de sua boca.
—Fugir? Acho que vocês não repararam no mastro, meus caros. —Amélia acionou um botão que fez soprar as ventosas de todos os mastros, esticando assim a maior das bandeiras, carregada pelo emblema de uma máscara metálica cercada pelas presas de um leão atroz, cujos olhos eram marcados por cicatrizes tenebrosas. —Somos os Corsários sem Rosto, pobres coitados, o que faz de vocês as presas aqui.
Pelo menos duas das naves recuaram alguns metros, apavoradas pela imensidão daquele símbolo. Qualquer desbravador dos ares conhecia uma ou duas histórias sobre os Corsários sem Rosto, e nenhumas delas acabava sem uma boa explosão.
—É sua última chance, Narcisus —chiou o contato. —Entregue-nos o príncipe!
—Príncipe? —Filch indagou, e Zafir se esgueirava cada vez mais em seu esconderijo, sob a sombra de Turum.
—Vocês querem lutar, malditos, então vamos lutar!
Amélia retirou do cinturão sua escopeta de combate, enchendo os canos com duas pólvoras especiais, anil e rubra, respectivamente. O primeiro disparo era somente simbólico, um aviso de que os Corsários não estavam de brincadeira.
O disparo simbólico partiu uma das naus ao meio, lançando seu piloto aos pedaços para uma terra a mais de um quilômetro de altura.
—Ops, me desculpem! Foi um erro de cálculo!
A explosão deformou as estrelas da madrugada, riscando uma máscara metálica como marco de conflito iniciado.
As sete naus adversárias atacaram.
Filch correu para perto de Portello, que a essa altura já disparava lâminas em chamas na direção de seus adversários, pairando ao lado das naves com os propulsores em suas costas. O felino gritou para o companheiro, que o escutou, e de suas mãos nasceu uma trilha gélida e escorregadia. Híbrido de homem e animal, Filch tinha uma agilidade sem igual, e foi ela que utilizou para se aventurar nas rampas cristalinas, saltando num último instante para quedar com certa violência sobre as hélices de um piloto desavisado.
Amélia começava, naquele momento, a preparar o segundo disparo, preenchendo os canos de sua arma com uma pólvora brilhosa e mágica.
—Vamos iniciar os ataques contra a embarcação de vocês, Corsários sem Rosto, caso não entreguem o príncipe dos Carala —avisou o contato, e seria a última vez. —Vocês têm três segundos.
—Três —gritou Portello, e duas naus explodiram ao seu lado, deixando os pilotos flutuando em máquinas similares à qual ele utilizava para se manter no céu. Cada um dos homens carregava uma arma de fogo diferente, das quais uma era capaz de realizar disparos consecutivos e incessantes. O feiticeiro precisou de auxílio dos ventos para se proteger dos ataques, mas isso não era um grande problema.
—Vocês foram avisados —chiou a voz do comandante da invasão, e então o contato cessou. Fogo cruzou as nuvens, estourando contra uma barreira criada de última hora por Portello, a única coisa a impedir as chamas de consumir toda Narcisus.
A capitã olhou incrédula para o céu escuro.
—Você não fez isso, fez? Você realmente tentou atacar Narcisus?
Ela engatilhou a arma. O sol começava a nascer.
Filch e Portello estremeceram.
—Espere um pouco, nós —
Mas já era tarde demais, e o disparo ocorreu.
A explosão era intensa demais, tão brilhosa quanto as luzes de centenas de fogos de artifício. O vento se contorceu em tortura, acalorado pelas chamas vívidas e encantadas que se originaram daquele gatilho pressionado. De cinco naus que ainda voejavam, nada restou, tampouco de seus pilotos. Faltou pouco para Filch e Portello também serem atingidos, mas nada daquilo fugia dos costumes do bando.
—Você é louca, e precisa sempre provar isso —disse o felino, livre dos braços de Portello, que o carregou de volta até Narcisus.
—Essa é a vida que escolhi, amigo.
—Estão todos bem?
Turum fez que sim com a cabeça. Zafir concordou, ainda escondido.
—Ah, mas alguém aqui logo não vai estar mais bem —disse a capitão, pisando com firmeza em seu desfile até o Carala. Ela o agarrou pelas orelhas e o trouxe para perto de seus olhos. —Que merda de história é essa? Príncipe? Era isso o que você queria dizer com herdeiro? Essa é a verdade?
Zafir baixou os olhos.
—Sim. Eu sou o príncipe dos Carala, o último que restou. O povo de Probisca acredita muito em meus esforços. Eles pensam que eu fui atrás de heróis, quando na verdade eu fugi. Eu —
—Tem recompensas pela sua cabeça, monstrinho —disse Filch. —Nós deveríamos vendê-lo agora mesmo, sabia? Você não confiou em nós, quando teve a chance. Por que deveríamos confiar em você?
—Fique calmo, Filch —disse o Barão, recolocando o manto que sempre o acompanhava. —Zafir não fez por mal. Ele teve medo, apenas.
—Tudo bem, vamos nos situar aqui —era Amélia. —Você é um príncipe, certo? E está apenas desejando o bem de seu povo, pelo que entendi.
—Eu preciso de ajuda para —
—Tá, nós vamos te ajudar.
Filch e Portello olharam sem entender para a capitã. Até mesmo Turum parecia espantado, mesmo que não possuísse expressão em seu rosto.
—Sério? Vocês são tão bondosos assim?
Amélia gargalhou.
—Claro que não! Mas somos piratas, e um príncipe tem muito mais do que duzentas peças de ouro para nos oferecer. Cancelem a busca pelos tesouros, meus amigos. Hoje vamos entrar em guerra e ficar ricos.

Portello auxiliava nos reparos mais necessários de Narcisus, enquanto Amélia examinava as coordenadas com ajuda de Turum e seu sistema preciso de localização. Filch aproveitou-se desse momento para se aproximar de Zafir, que até então estava calado, ansioso e amedrontado.
—Quem são os seus inimigos? —perguntou o felino.
—Como disse?
—Do seu povo. Que tipo de criatura pode ser maléfica o suficiente para extinguir uma raça tão inofensiva quanto os Calara?
Zafir se sentiu ofendido por aquele comentário, mas não deixou transparecer em suas palavras. Apenas disse:
—Os ogros.
Filch se assustou.
—Os ogros de Kathar-Horen? —indagou ele.
O Calara fez que sim.
—Não posso acreditar. Eles ainda existem?
—Depois de destruírem as florestas de Mirhua, os ogros avançaram para o norte, numa marcha desenfreada de caos e destruição —contou Zafir. —Eles passaram por tantos lares e cidades que deixaram para trás um caminho de ruínas e pilhas de corpos.
—Sei bem dessa história, pequenino. Chego a imaginar como você se sente sendo o último de sua raça. Posso não ser o último, mas restam poucos Chesir em Ellevia. Meu povo residia nas florestas destruídas pelos ogros. Eu devo algumas mortes a eles.
E devia.
Filch se lembrava de tempos antigos, quando o sangue de sua raça demarcou trilhas e mais trilhas nas árvores de Mirhua. Era impossível contar os corpos, nenhuma mágica os salvaria. Lutaram pela honra e pelo orgulho, mas sabiam que a derrota era iminente. Os ogros eram bárbaros, poderosos e cruéis, havia dez para cada Chesir. A morte veio de maneira avassaladora, piedade era somente uma lenda. Miados e ganidos ruíam a alma daquele povo de cultura sem igual, e os gatos abusavam de sua agilidade, da destreza sem igual, mas nada era útil. Arriscaram-se nas árvores, ousaram táticas que cavaleiros estrategistas seriam incapazes de presumir, nada foi capaz de suportar a ofensiva dos ogros. Suas maças eram pesadas, seus braços eram mais fortes, seu ódio era surreal, e assim devastaram tantos felinos quanto suas presas puderam alcançar. Filch era crescido, mas não forte. Tentou ajudar, sentiu o peso do confronto na pele, a dor era um castigo difícil de ser suportado. Lutou, mesmo ciente da fraqueza, viu todos aqueles que viveram ao seu lado durante anos perecerem no conflito. Enfrentou o que pôde, viu-se perdido nas garras atrozes de tais monstruosidades, afugentou-se. Não foi o único, mas fugiu sozinho, incapaz de defender sua raça, incapaz de lutar por sua sobrevivência. Fugiu, mais ferido pela covardia do que pela guerra, e assim cresceu se achando o mais rato dentre os gatos.
—Terá a chance de pagar, em breve —disse Zafir. —Rezo para que tudo dê certo.
—Não precisa rezar. Nós vamos vencer.
—Como pode estar seguro disso? Eles têm um exército!
—Quem precisa de um exército? Nós temos valor. Mais do que isso, temos um motivo para lutar. Com um motivo para lutar, um homem é mais do que um exército.

A ideia era se aproximar na espreita, observando do azul do céu para ter noção da extensão das forças adversas. Quando a primeira das hordas fosse avistada, o plano de contra-ataque seria traçado.
A primeira coisa que avistaram, no entanto, foi o voo incandescente de uma esfera de catapulta.
—Cuidado! —Portello tentou, mas era rápido demais, e inesperado. O rochedo atingiu em cheio o casco da nau, que resistiu somente pela magia que carregava em seus adornos. O ataque sem aviso deixou claro que os ogros não estavam para brincadeira, e a simples presença daquela embarcação, que sabiam não pertencer ao seu povo, era o suficiente para que a batalha fosse iniciada.
—São muitos —e Zafir os temia.
—Matarei todos, ou morrerei tentando —Filch.
Turum girou no lugar, resfriando seu corpo de autômato com jatos de vapor disparados pelas costas.
—Qual o plano, capitã?
Não havia um plano. Amélia estava impressionada pelo tamanho do exército. Dali de cima, viam dezenas de catapultas, acompanhadas de infindáveis ogros, cada qual portando sua clava de batalha ou um machado de guerra igualmente tosco e bruto. Muito ao longe, quase nas fronteiras de Probisca, o castelo dos Carala ainda resistia à opressão daquele exército maligno. Ali estava o povo, aprisionado nas torres, acorrentados e atirados das mais altas janelas; homens, elfos, anões e tantas outras raças, mas nenhum Carala, pois eles não mais existiam. Somente Zafir, somente o príncipe, e era ele o que faltava para que aquele reino pudesse se reerguer.
Amélia baixou os canos, encheu-os com uma pólvora especial.
—O plano é ter um exército —disse ela, e saltou da nau.
Turum agarrou as orelhas de Zafir e saltou, acompanhado de perto por Filch e o Barão Portello. Todos quedaram contra o vento, riscados pela forte pressão do ar. As orelhas do Carala sacudiam no sopro revoltoso, mas o peso do autômato o forçava a descer na queda iminente, que só cessou quando um manto de tufões acolheu todos os Corsários sem Rosto e os deixou pousar com uma comodidade sem igual.
—Lembra do que eu disse sobre motivação, Zafir? —disse Filch, com as garras leoninas a mostra. —Que todo homem com um motivo para lutar é muito mais do que um exército? Vamos reformular essa frase.
Portello disparou com seus propulsores, inalou todo aquele vento saboroso e, do alto, despencou num meteoro explosivo e poderoso, que atirou para o ar tantos ogros quanto foi capaz de alcançar. Turum esticou os braços, rodopiando num ciclone de rangidos e pancadas, impedindo quaisquer criaturas de se aproximar de seu corpo metálico. Amélia carregou a escopeta, disparou-a contra a primeira leva de ogros que encontrou, mutilou-os ao mesmo tempo em que forçou a terra a parir seus súditos, fantasmas de cavaleiros que um dia honraram Ellevia em nome de seus familiares e de seus reinos, mas agora não eram nada além de espíritos destinados ao combate, portando suas montantes e seus escudos de proteção.
—Quando há um motivo para existir, um homem é maior do que um deus —completou Filch, e então avançou, tão rápido quanto trovões e ruídos.
Zafir observou aquele bando, e acreditou. Acreditou por entender que aquele grupo, cada um dos integrantes que lutavam sob a bandeira da máscara de aço, era mais do que um exército, e horda alguma os deixaria temerosos. O Carala, no entanto, fugira quando teve a oportunidade. Abandonou os seus, que mesmo assim acreditavam em seu retorno, crentes de que ele poderia trazer a esperança mais uma vez.
Sem esperar por isso, Zafir trouxe a vitória.
Milhares de fantasmas se ergueram de tumbas inexistentes, rugiram ante o domínio de Amélia, e a capitã agora era uma general. Postou-se à frente de uma horda espectral, ergueu a escopeta para o ar, era sua espada. Todos os seres translúcidos a respeitaram, copiaram seu movimento, ergueram os olhos para um conflito impossível de se perder.
—Vamos resgatar essa fortaleza —urrava a governanta dos espectros. —Em linha! —Foi obedecida sem demora. As espadas estavam em riste, os escudos raspavam o solo. —Passo ante passo, mantenham a parede de escudos suspensa. —Amélia riu alto. —Ah, querem saber? Chega de teorias. Destruam!
Assim foi feito.
Seus fantasmas eram como uma onda gigante devastando uma praia de oponentes, e nenhuma de suas defesas era capaz de resistir à atrocidade daquela investida.
Zafir viu seu castelo ser liberto dos ogros.
Seus olhos se encheram de lágrimas.
Aquele não era seu reino, seu lar, não todo, mas era um começo. A esperança seria renovada no coração de cada residente de Probisca com o retorno do príncipe Carala, Zafir sabia disso. Seria ele o responsável pela revolução, pela força de vontade que restaurava a sanidade de cada morador daquela cidade-fortaleza. O castelo jazia imponente, demonstrando todo o louvor daquela raça extinta, toda a cultura dos monstrinhos de orelhas grandes. Os ogros eram muitos, não seriam derrotados, mas fugiam. Centenas, milhares, recuando ante o poderio de quatro heróis, quatro lendas vivas. Amélia, Turum, Filch e Portello, todos eles lutando como poucos outros poderiam, afrontando toda uma raça de vilania, forçando-os a fugir e repensar seus atos.
Sem escolhas, Zafir chorou por vencer.
O povo vibrou num brado vitorioso quando o último dos ogros abandonou as fronteiras do castelo.
—Já estão esgotados? —zombava Amélia. —Voltem, temos mais para lhes oferecer, brutamontes com pernas de mulher! Vão aprender a nunca mais subestimar os mais fracos... pois eles podem conhecer gente muito mais forte do que vocês imaginam!
Filch tinha sangue nas garras, mas ainda estava insatisfeito. O Barão Portello pairou no ar, deixando os propulsores fraquejarem sem pressa até que o vento lhe acomodasse no solo outra vez. Turum estava ao seu lado, despejando nuvens e mais nuvens de vapor fervente após atingir uma temperatura absurda para realizar seus movimentos.
—Vocês conseguiram —era Zafir. —Vocês venceram, venceram um exército!
—Nenhum grupinho de monstros pode nos derrotar, monstrinho —riu Amélia, os braços cruzados sobre os seios. —Se esse é seu castelo, poste-se em seu trono, príncipe. Seu povo está esperando por você.
—Eu... Eu não sei se devo.
—Como assim?
Zafir estava abalado.
—Eles acreditaram em mim. Muito antes, eles sempre acreditaram em mim, e continuaram acreditando quando eu fugi. Esperaram que eu trouxesse heróis para salvá-los, mas eu só pensava em escapar dessa batalha sem sentido. Como posso fingir que nada disso aconteceu?
—Mas isso não aconteceu —disse o Barão com um sorriso miúdo no rosto. —Você deixou seu castelo para encontrar ajuda, e encontrou. Não somos os melhores exemplos de heróis, tenho de admitir, mas enfim, foi o suficiente. Não há mais ogros, Zafir. Seu lar está livre.
—Ainda há muito para ser feito.
—E você vai ser capaz de realizar tudo sozinho, não vai?
Hesitou.
—Sim —respondeu ele. —Por Probisca, terei de ser um príncipe, ou mesmo um rei. Não vamos mais sofrer nas mãos dos ogros. Vamos expulsar cada um desses monstros, até que nada possa atrapalhar a vivência de nosso reino!

Não houve recompensa.
Quando Zafir tomou seu castelo de volta, o festejo foi muito grande. Os Corsários sem Rosto ficaram para a comemoração, beberam muito, acordaram três dias mais tarde com Turum sacudindo o corpo quase sem vida de Portello, que sentia-se atropelado por uma horda de dragões. Filch não se lembrava de nada, mas a enxaqueca lhe fazia pensar no que fora feito naqueles dias. Amélia despertou com uma tatuagem bizarra no rosto, mas achou legal, o que não muda o fato de que ela seria eterna de qualquer modo.
Assim, resolveram que não precisavam de uma recompensa maior do que a felicidade do povo de Probisca.
—E desde quando você é boazinha assim? —zombou Filch.
—Boazinha?
Amélia sorriu com malícia, mostrando ao seu companheiro uma grande sacola de ouro.
—Cinco mil moedas de ouro, gato do mato, nada menos, nada mais —disse ela enfim. —Quem precisa de duzentas peças do príncipe?
—Como conseguiu isso?
—Sou boa com apostas —ironizou. —Além do mais, tenho algo que vocês não possuem.
—Sorte?
—Seios.
Gargalharam, unidos como o bando que eram. Aquela era mais uma aventura, não a primeira, jamais a última. Mais uma vez, Narcisus carregou cicatrizes de suas andanças, mas tudo aquilo fazia parte da diversão. Eram piratas, os Corsários sem Rosto e, como tal, tinham de estar preparados para matar ou morrer. Matavam e morriam todos os dias de suas vidas, e assim eram heróis, talvez lendas, prontamente dispostos a ajudar qualquer pessoa que precisasse de seus serviços.
E que tivesse algo para oferecer em troca, claro.

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