domingo, 3 de junho de 2012

Lendas Urbanas II a V


II

Cada um daqueles cômodos me trazia recordações que eu preferiria nunca mais ter de lembrar.
As torturas na sala de indagações, toneladas de perguntas e lamúrias e agulhas em minha pele. A psicologia reversa, trabalhada na ponta de uma lâmina, o parafuso que açoitava meu cérebro como uma lobotomia irregular e incompleta, não me endoidecia, mas enlouqueceria aqueles que já fossem normais. Os diálogos irracionais, a violação por animais, o ato forçado de um estupro infindável, médicos e mais médicos, doutores, encarregados, auxiliares, pessoas que eu nunca vi.
Arrastada em minha cadeira de rodas, eu me lembrava de tudo aquilo. Ouvia os gritos dos outros, dos próximos, sujeitados às mesmas horas incontáveis pelas quais passei. Junto deles, era capaz de ouvir meus próprios gritos, tão tenebrosos que jamais deixariam aqueles quartos, ainda que agudos o suficiente para ousar perfurar as paredes que não permitiriam a fuga de quaisquer pacientes.
Eu era apenas mais uma, e logo não seria mais nada. Retirada do conforto de minha cama, da cadeira em frente ao computador, de meu lar e de meus pais. Privada da vida que tantos outros tiveram, da vida que eu pensei que teria, da monotonia, da rotina, do dia-a-dia. Não veria mais o dia; não o vi durante meses. Esquecia-me de como era o sol, o céu, as nuvens.
Esqueceria meu próprio rosto, se pudesse, mas este eles faziam questão de me recordar. No espelho de uma bacia d’água rústica, ali estava eu, destruída. Meus olhos, minhas olheiras, meu rosto magro e decrépito. Um rascunho de uma linda garota, ou talvez eu fosse feia desde o início. Que diferença faria?
Agora, nada mais restava além do adubo que movia tais experimentos.
Eu não tinha certeza, mas suspeitava que aquela trilha que fazia nas mãos de um doutor truculento me levaria à morte final. Digo final por já ter morrido há dias, meses na realidade; morrera ao deixar minha moradia. Ali, ninguém vive, poucos morrem por completo.
Ali, todos sofrem.
Escutei os planos, boatos, rumores. Escutei vozes e mais vozes, confusas, desajeitadas, incômodas. Depois, não escutei nada.
Como última lembrança, a zona de conforto. Via meus dias infelizes, minhas reclamações. Via a família que tanto me oferecia, via-me destratá-los, como todos um dia o fizeram ou farão. Engoli meu arrependimento e ele tinha gosto de sangue, cheirava a carniça e medo. Vomitei-o, expelindo meu pavor, mas ele ainda jazia em meu corpo, morreria comigo.
Se eu pudesse fazer diferente, mudaria tudo, ou mudaria nada.
Quando tive a oportunidade, não dei valor. Quando dei valor, não tinha nada.
Ali, amarrada na cadeira que me tiraria a existência, pois vida eu já não mais possuía, rezava para que os outros não fossem como eu. Rezei por ele, por ela, por você, para que você dê valor ao que tem, ao que não tem, ao que terá e ao que teve.
Assim, quando eles forem te buscar, você talvez não sofra tanto quanto eu.


III

Ouvi histórias sobre o fantasma de um garoto que morreu torturado pela própria família.
Diziam que ele era filho de uma cigana de hábitos estranhos, e que ela se casara com um feiticeiro.
Bobagens.
Ninguém na atualidade acredita nessas coisas, logo pensei, mas eles mantinham os boatos. A mágica tinha de ser feita, o sacrifício do sangue de seu sangue. Agarraram o garoto, riscaram pentagramas em seu corpo, arrancaram-lhe toda a pele do rosto.
Era estranho ter de ouvir aqueles rumores e nada dizer, mas foi o que fiz. Talvez lhes desse um sorriso, mas não podia. Abaixo de minha máscara, nada havia além de um rosto desfigurado e memórias partidas.
Talvez meus pais tenham sido cigana e feiticeiro, talvez não. Não tinha pentagramas pelo corpo, mas o rosto era uma verdade digna, e eu me perguntava como aqueles meros mortais descobriam tantas coisas que jamais seriam capazes de compreender.


IV

Quando VOCÊ lê, o que procura?
Inspiração, determinação, motiVAção, Indagações? Há os que procuraM verdades, OutRos que buscam mentiRas; fugas da rEalidade, pavoRes, cantigas; poemas de amizade E aMor, palavras mágicas para afagar a dor; aBRaços Encantados, saídos da página de um liVro, dE um folheto, de um jornal, nascidos de lugar nenhum.
Todos procuram, alguns encontram, outros se perdem ainda mais.
Os que não encontram, praguejam.
Os que encontram, às vezes, se arrependem.


V

Uma garota de minha escola morreu.
Logo surgiram os primeiros boatos. Disseram que ela encontrou um bilhete no banheiro, e que nele havia uma mensagem de outro mundo. Sabe como é, lendas urbanas, fantasmas, mortos que voltam para falar com os outros, aquelas bobagens todas. Achei hilária a força oferecida àquela história infantil, que se espalhou como praga pelos corredores. Alguns passavam o dia todo sem usar o banheiro.
Então, outro bilhete.
Era obviamente uma brincadeira de mau-gosto, mas o garoto que o encontrou entrou em desespero. Faltou durante dias, frequentou psicólogos, adoecia pouco a pouco. Passaram-se duas semanas, ele voltou. Estava bem vivo por sinal. Usei-o de exemplo para aqueles que acreditavam naquela história tosca. Viram, ele está vivo, não está?
Dois dias depois, o garoto foi encontrado morto no banheiro.
Enforcado, decrépito. Suicídio, acredito eu, mas serviu de impulso para que a lenda se espalhasse com ainda mais força. Não consigo acreditar em como as pessoas têm mente fraca, em como são tolas e idiotas. Pode ser um assassino, um aproveitador, um maníaco.
Agora, um fantasma? Faça-me o favor...
Escrevo isso sem motivo aparente, mas eu tenho uma razão especial. Escrevo isso para que, caso alguém encontre quando eu o jogar fora, saiba que tudo isso foi uma tremenda tolice. Escrevo para que, caso mais alguém enlouqueça por causa desse provável fantasma, possam se lembrar de que eu os avisei de que tudo não passava de uma tremenda mentira.
Talvez mentira seja o que eu estou fazendo, no entanto.
A verdadeira razão de estar escrevendo isso, é outra.
Estou com medo.
Ontem, antes da última aula, encontrei um bilhete.
Ele tinha dizeres estranhos, num garrancho deplorável.
Céticos morrem sem acreditar.

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