quarta-feira, 20 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 1 / Ato IV

Olá, companheiros!
Que tal mais um ato da Light Novel Delirium aqui no blog, hein? Trago-vos hoje o quarto ato do primeiro caso, e espero sinceramente que estejam gostando das coisas até aqui. Realmente, agora as coisas começam a apertar para o nosso pobre 'psiquiatra', mas enfim, vamos ver como ele se sairá dessa vez, hehe.
Até a próxima!


IV

O ar era outro, denso e pesado. As cores eram outras, pois o céu era cinzento, a terra era pálida. A vida era outra, pois não eram homens, não eram animais, apenas coisas que viviam.
O mundo era outro.
(Onde eu estou?)
Adiel se levantou. Estava caído num deserto de devaneios, perdido numa planície vasta e descrente, onde apenas ele parecia existir. Ele e aquelas coisas vivas, com formas que desafiavam a lógica e capacidades que ousavam não se submeter à mísera credulidade dos homens.
“Que lugar é este?”
Eram apenas coisas, com pernas e braços e tentáculos, algumas garras e presas, outras com escamas e guelras. Coisas.
Entre as coisas, Adiel viu sua esposa.
Não era bem sua esposa. Tinha seu rosto, seus olhos, sua alma, mas era uma das coisas também. Aproximou-se, rebolando o corpanzil gelatinoso, arrastando estacas de metal fincadas à sua coluna invertebrada, o que produzia um cântico torturante.
“Pare!”
Mas a coisa-esposa não parou. Movia-se revoltosa, sacudindo os braços gosmentos acima da cabeça disforme.
Parecia prestes a atacá-lo, mas não o fez.
Fez pior.
“Eu te amo, Adiel. Temos dois filhos lindos, uma vida perfeita! O que fez para si mesmo?”
“Eu não fiz nada.”
“Ainda se acha capaz de me enganar, Adiel? Convivi ao seu lado durante todos estes anos! Conheço suas expressões, a mudança de seus olhos, de seus cílios! Acredita mesma que pode mentir para mim?”
Sabia que não podia, e era o que menos desejava fazer.
“Me desculpe.”
“Desculpar?”
“Por nossos filhos, Annabeth.”
Annabeth. Por pouco não esquecera o nome da própria esposa. Não o mencionara a Trevor, pois não o lembrava. Ali, surgiu entre suas palavras com naturalidade, sem aviso. Por sorte, ou talvez destino. Apenas surgiu.
Annabeth fora uma mulher linda, de pele bronzeada e cabelos curtos. Tinha olhos sinceros, curvas medianas, atitudes de uma verdadeira mãe.
E Adiel a traiu.
“Por nossos filhos?”
“Sim. Me perdoe, para que possamos continuar juntos. Dar a eles uma vida boa e...”
“Você quer que eu faça esse sacrifício por nossos filhos?”
“Sim.”
“E por que você não pensou neles antes de se enfiar naquela vagabunda de vinte anos?!”
A dor era a mesma de uma espada em seu peito, mas eram apenas palavras. Sentia o suor deslizar pelo rosto, as mãos estalavam os dedos compulsivamente.
“Eu sinto muito.”
“Sente muito? Por que não explica isso a eles, então? Por que não diz aos seus filhos que sente muito? Que traiu a mãe deles, a mulher que sempre disse amar, para se aventurar com uma garotinha!”
“Pare, Annabeth.”
“Por que não conta a eles que abandonou sua família por um caso, Adiel?”
“Eu não fiz isso!”
“Ah, não fez, é claro! Você não nos abandonou! Esperava sinceramente que eu aceitasse sua traição como um erro qualquer, como perder o troco na padaria, como beber além da conta numa mesa de amigos. Pobre Adiel, sempre tão ingênuo!”
“Pare com isso, Annabeth, eu já disse que sinto muito!”
“Então diga a eles.”
A coisa rodopiou furiosa, despejou parte de si para os lados, entre as outras coisas sem importância. As peças gelatinosas se deformaram até ganharem rostos, olhos, bocas, e então uma série de atrocidades à natureza. Não deveriam ser, mas aqueles dois eram seus filhos.
Esperou que seus nomes voltassem à sua mente de imediato, não aconteceu. Enganou-se, dizendo que se livrara daquelas lembranças para evitar uma dor maior. Mentia, mesmo para si.
Era um idiota.
“Meus filhos.”
“Você não é nosso pai.”
O garoto se chamava Brian, a voz trouxe a memória de seu nome. Saudável, valente, dotado de uma energia que poucos seriam capazes de possuir. Cresceria como um atleta, possivelmente um dos melhores.
“Nunca mais será.”
A menina era Angelina, levemente morena, de cachos esplendorosos. Era inteligente, tinha facilidade nos estudos. Mais velha que Brian, seria o exemplo para o irmão, mostrando-se apta a uma faculdade na primeira tentativa.
Ou talvez aqueles destinos já estivessem destruídos pelo martírio causado por Adiel.
Ambos os nomes herdados da mãe, carregados pela essência americana da estrangeira. Adiel apenas concordou na escolha, pois não era bom com nomes.
Talvez não se importasse.
“Você é uma desgraça.”
“Estragou nossas vidas!”
“Estragou a vida da mamãe!”
“Você não presta, papai!”
“O senhor não é um homem!”
“Traidor!”
“Mentiroso!”
“Não consigo mais acreditar em você, nunca mais!”
Doía, mas o que poderia fazer? A culpa era dele. Então, como uma vez fizera em sua vida, abandonou-os. Cansado de escutar seus filhos e sua esposa, cansado de escutar o mundo, Adiel se reclusou.
Mas ela estava lá. Sempre esteve, nas horas boas e ruins, ainda que aquela fosse uma péssima hora.
Atrás de si, a amante.
Uma coisa com seu rosto, nada além disso, mas era ela. Para sua surpresa, lembrava-se de seu nome: Mariza. Lembrava-se do nome da amante ocidental, mas não o de sua família.
A coisa-amante se movimentava com lerdeza, arrastava um estômago inchado com pesar. Os olhos lacrimejavam.
Adiel assistira àquela cena uma vez.
“Adiel.”
Ela chorava.
“O que aconteceu?”
“Eu estou grávida, Adiel. Vamos ter um bebê.”
Atrás de Adiel, sua família desmoronava. As coisas dissolviam-se em dor, guinchavam de maneira ensurdecedora. Aquele estrondo infame e estridente atordoou seus sentidos, impedindo-o de escutar a voz de Mariza quando seus lábios asquerosos se moveram.
“O que disse?”
Ela repetiu, sem se importar.
“É um menino, tenho certeza.”
“Não! Pare, Mariza, isso está errado!”
“O que está errado, Adiel?”
“Esse filho! Esse caso! Está tudo errado, Mariza!”
“Não entendo, Adiel. Caso? Está se referindo...”
“Sim, Mariza, estou me referindo a nós. Foi apenas um caso, um erro. Tenho uma família para cuidar, tenho meus filhos!”
“Você não tem mais uma família, Adiel, e nunca mais terá uma se recusar minhas palavras. Há um herdeiro de seu sangue em meu corpo, seu cretino, como consegue pensar na bastarda de sua esposa agora?”
“Como ela descobriu?”
Ele sabia a resposta.
“Eu contei a ela! Ela precisava saber! Eu estou grávida, Adiel! Grávida de um filho seu!”
“Você não terá esse filho!”
“Está sugerindo um aborto?! Jamais faria algo do tipo! Não sou uma assassina, idiota! Não tive apenas um caso com você, insolente! Pense nas pessoas, pense um pouco mais naqueles que o circundam, egoísta!”
Mas era tarde demais para pensar nos outros. Adiel já assistira àquela cena, vira as consequências, mas tinha de ser feito. Ali, naquele mundo, apenas reproduzia os diálogos reais, as atitudes e ações, assistindo as verdades oriundas de suas próprias palavras.
Entendia sua própria ignorância, desprezando a si mesmo por agir como um covarde.
Ainda assim, repetiu seu ato banal: saltou por sobre Mariza, buscando na força sua forma de convencê-la a escutar suas vontades.
“Eu te amo, Mariza, assim como amo Annabeth e meus filhos!”
Lutavam.
“Você disse que amava apenas a mim!”
“Eu errei, me perdoe!”
“Nunca! Teremos um filho, Adiel!”
“Você não vai ter esse filho!”
“Eu não farei um aborto!”
“Então eu farei para você!”
Estava fora de si, agia como um louco. Algo inundou seu corpo, um desejo sanguinolento que não fazia parte de sua consciência. As mãos encontraram uma faca afiada, usada para cortar as peças mais largas de carne, estocou sem piedade no estômago de Mariza.
“Você não pode fazer isso!”
“E você não pode ter esse filho.”
Rasgou, de cima para baixo, abriu a barriga inchada sem perder tempo com remorsos. O sangue jorrou da coisa, como jorrara antes da própria Mariza. Destruiu o que havia dentro de si, o que acreditou ser o feto.
A coisa vomitava sangue, como antes vomitou sua amante. Gritava ameaças, prometia contar a verdade aos policiais, denunciá-lo.
“Cale a boca!”
E, para que se calasse, Adiel cortou sua língua.
Na verdade, não era Adiel. Havia outra coisa dentro de seu corpo, aproveitando de suas vontades para abusar de sua força, se divertir com aquela brutalidade desumana. Assassinou, em seu nome, escondeu o corpo da coisa no subterrâneo.
Não havia amante, não havia filho.
Mas o aborto lhe custou a sanidade, apresentando um castigo diferente: um assombro.
Surgiram outras coisas, muitas delas, nenhuma tinha rosto. Entre elas surgiram crianças, demônios como os que via em seus pesadelos, entoando cantigas antepassadas com vozes macabras. Era uma multidão, um exército de guinchos e ameaças e dor.
“Eu perguntei se você tinha algo para me contar, senhor Adiel.”
A voz vinha do meio da turba. Um homem de trajes elegantes, presente em seu devaneio com uma naturalidade fora do comum. Assistia àquelas cenas há tempos, sabia toda a verdade. Ainda assim, mantinha-se impassível, frio, sólido como uma rocha congelada.
Nas mãos, uma foice colossal, preparada para curar qualquer paciente que necessitasse de sua ajuda.
Trevor.
“Não se deve esconder nada de um psiquiatra, meu caro.”

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