terça-feira, 26 de junho de 2012

Conto - Na Sombra da Cerejeira

Olá, companheiros!
Trago hoje um novo conto para o blog. Se trata de 'Na Sombra da Cerejeira', um conto de escola de magia preparado para a antologia Imaginários 5, da Editora Draco, mas que acabou ficando de fora dos selecionados. De qualquer forma, ele estará presente na quinta antologia de publicação independente que logo disponibilizarei, a Dizeres de um Fantasista (nome provisório), mas deixo-o aqui para que possam ler e comentar.
Até a próxima.




Eu me lembro como se fosse ontem.
Estava lá, em seus braços, esperando pela carícia delicada de suas mãos, pelo toque suavizado de sua pele macia. A tez pálida me alisava o rosto, topando contra o abismo de meus lábios, desbravando a impureza de minha barba por fazer. Eu estava em seus braços, como sempre sonhei, como sempre desejei para minha vida, no melhor dos sonhos que poderia sonhar.
Então, o caos, o distúrbio, as sombras, as trevas.
Nada me restou, ou talvez restasse tudo. Não ela.
Sem ela, tudo não me seria o suficiente. Sentei-me nas sombras carinhosas de uma árvore que antes inexistia. O solo era um gramado gracioso, manchado pelo adubo artificial, despejado na manhã que há muito se perdera pelo pesado sol que se exibia no azulão do céu. As raízes sobrepujavam as plantas, surgiam revoltosas acima de frestas rebeldes, rompiam o chão com a força descomunal da natureza em ação.
Dentro daquela paz falsa, o sangue ribombava numa melodia dolorosa, coberto por lembranças de tempos felizes, acolhidas numa paixão próxima, no amor ideal e visível, palpável, mas que nada poderia fazer para salvá-la.
Lá estava eu, tal amor, abraçado à enorme cerejeira que um dia fora minha vida. Debruçado sobre o caule deformado daquela árvore, enxergava entre as madeixas floridas o sol puritano, forçando-se entre os cabelos folheados de minha amada. Fazia doer os olhos, mas nada me doía mais do que o peito, o inchaço do coração como um incômodo que jamais me abandonaria.
Aquele homem pagaria por tal ato.
Se o sangue de minha amada tinha de fecundar junto do solo, seu corpo seria enterrado ali, ao lado da pureza da minha dama, servindo-lhe como o adubo que a manteria viva pela eternidade.

***

Antes disso, eu sabia o que era felicidade.
—Como foi o seu dia, meu anjo?
A pergunta era a mesma de sempre, aquela que eu aguardava ansioso após abrir a porta de minha moradia. Naquele dia, entretanto, ela não veio como de costume, mas surgiu em minha imaginação. Peguei-me respondendo à alucinação que me surpreendera, obrigado a sacudir a mente para forçar a compreensão daquele momento. Ela não estava lá, como sempre estivera. Não perguntara como fora meu dia, pois não estava em meu lar.
Algo estava errado.
—Alina?
Esperei por qualquer resposta, desde uma lamúria de agonia ao gemido de últimos instantes, ou mesmo um abraço coberto de ternura e aconchego. Contrariando minhas expectativas, fui recebido pelo silêncio, que me acolheu como um abraço materno e caloroso, mas seu calor era o inferno. Percebi-me marejar os olhos, engoli o choro como o faz uma criança temerosa. Por um único momento, senti saudades das lágrimas. Aos meus trinta e poucos anos, sequer me lembrava qual era a última vez em que havia chorado. Nunca me preocupei com tal sentimentalismo barato, não havia choro ou tristeza. Havia maus momentos, obviamente, a vida é sujeita a coisas similares, de perversão duvidosa. Tristeza, no entanto, era pouco mais do que um conto de fadas. Ao lado de Alina, encontrei uma felicidade que não era passageira, uma emoção que me fortalecia, como homem, como pessoa, como feiticeiro.
Ah sim, talvez tenha esquecido de dizer: eu, Edgar Monstaville, era um bruxo do contemporâneo.
—Alina, você está aí?
Parte de mim esperava que ela não estivesse. Esta seria uma boa opção, afinal, nada impediria Alina de ter saído para um passeio vespertino, uma viagem rápida até a padaria ou mesmo um dia de compras, certo? A outra parte de mim, entretanto, conhecia uma verdade diferente. Alina era paraplégica, ainda que mais sorridente do que muitas pessoas normais. Não que ela fosse anormal, muito pelo contrário. O acidente despertara naquela mulher um conhecimento do mundo, o coma a levara para um tempo e espaço avariado, e isso a fez forte. Forte na emoção, nos sentimentos, na sabedoria, mas fraca como pessoa. Incapaz de deixar minha residência sem meu auxílio, incapaz de viver parte de sua vida sem que meus membros empurrassem o invento que a permitia caminhar sobre rodas de alumínio. Pior do que isso; forte no pensamento, mas ingênua como mulher. Fácil de se ludibriar, delicada a ponto de acreditar naquele que acabou de traí-la, se necessário fosse. Alina era assim, perfeita e imperfeita ao mesmo tempo.
Eu, entretanto, era apenas o caos com braços e pernas e olhos confusos e lacrimejados.
—Alina...
Eu falava sozinho, no fim das contas. Alina não estava ali, não mais estaria. Não saíra por si própria, muito menos carregada por meus braços. Fora levada de mim, tirada de meu amor, de meu aconchego. Cheguei a ter dúvidas, oscilar nas escolhas que faria dali para frente. Dentro de meu cérebro, ainda que perguntas e mais perguntas explodissem num falso céu de ideias como fogos de artifício de um espetáculo de fim de ano, ribombava apenas um nome, e não era o de minha amada. Era o nome que eu odiava, o nome que me odiava ainda mais. O nome que trouxera à minha vida algum sofrimento, mesmo após a felicidade em forma física que era Alina surgir em meus dias, incapacitando qualquer dor de me abalar. O nome de meu inimigo, de meu rival, daquele que jamais me perdoaria por erros que até mesmo eu já esquecera.
Gwendal.

Eu era um bom feiticeiro.
Costumava ser naqueles dias, assim recebi uma oferta irrecusável: lecionar uma classe de aprendizes, numa escola de magia disponibilizada na Irlanda, uma das últimas de nossos dias. Raros eram aqueles nascidos com o dom da feitiçaria, ainda mais raros eram os que, entre estes, conseguiam despertar a centelha do saber, do produzir, do criar e modificar. Tornavam-se cada vez mais escassos, pois a tecnologia afastara a mágica de nosso povo, as facilidades desenvolvidas pelo homem libertavam os humanos do pensamento, da vontade e da sabedoria, tornando-os escravos de mordomias, servos de um sedentarismo incomum. Assim, lecionar numa escola de magia era uma oportunidade única e incrível, a chance de conhecer e lidar com pessoas de dons raros, de talentos que deixariam o mais cético dos homens boquiaberto. Ensinar aos mais jovens a magia que tanto admirava era uma coisa que não deixaria passar por meus olhos de maneira alguma.
Aceitei de imediato, obviamente.
Alina me deu todo o apoio, como sempre fizera. Aplaudiu a oportunidade, tão felicitada quanto eu mesmo, talvez mais. Naqueles dias, já tinha as pernas incapazes sobre uma cadeira de rodas, mas o sorriso não lhe abandonava o rosto por momento algum.
—Você vai, não é?
Certamente eu iria, e logo parti no primeiro trem, deixando para trás memórias de um bom lar, mas levando comigo todo o necessário para reconstruir uma nova vida: Alina. Além dela, nada mais era preciso. Teríamos um novo lar, uma nova casa para mobiliar, uma nova cidade para conhecer. Novos lugares, novas pessoas, novos ares para aproveitar nossos dias.
Apenas o amor era o antigo, mas não velho. Renovávamos a cada instante, a cada abraço, a cada olhar.
Ajeitamos nossas coisas com certa facilidade, sem frescuras costumeiras de pessoas após uma mudança inesperada. Aproveitamos de uma boa noite de sono, sonhando com os momentos que se seguiriam após aquele recomeço. Despertei horas mais cedo, ansioso pela função que me seria apresentada naquele dia. Alina me acompanhou, preparou um café delicioso, me deu boa sorte antes que saísse.
Agradecendo às divindades do plano superior pela alegria que me possibilitavam, parti, direcionando-me para a escola de magia, onde começaria uma nova vida.
Aquele era o meu sonho, logo descobri. Recebi os cumprimentos de cada instrutor, eram feiticeiros de renome, muito mais famosos do que eu seria em toda minha vida. Um deles era Gwendal, um jovem talentoso que saíra das classes para a profissão que ocupava há alguns anos. Como todos os outros, Gwendal me saudou.
—Será feliz entre estes muros, senhor Edgar —disse ele, garboso pela boa educação de seu povo escocês.
—Certamente o serei, meu amigo.
Não sabia o que Gwendal faria naquele instante, mas quem era eu para dizer? Não sabia nem mesmo o que eu faria.
Ainda hoje, não sei dizer o que fora pior. Talvez matar Gwendal naquele instante resolvesse as coisas. Ou apenas faria tudo pior. É bom viver como um feiticeiro na maioria das vezes. Difícil é viver como humano, aceitando todos os erros.

Decidiram que eu lecionaria sobre as propriedades dos elementos para uma turma de adolescentes. Eram nove alunos de partes distintas do mundo, reunidos para que aprendessem sobre as artes que despertaram durante suas vidas. A grande maioria deles tinha uma história triste para contar, geralmente é o trauma que nos torna capaz de utilizar a magia. Morte de parentes, amigos próximos ou parceiros de relacionamentos malformados eram coisas mundanas, presentes em quase todos os feiticeiros da atualidade, mas havia gêneros ainda piores como estupros, moléstia e demais tipos de abusos. O clima daquela sala era sombrio e silencioso, diferente da minha época, onde todos eram ensinados com risos e zombarias. Decidi que tinha de fazer algo por aqueles jovens, ou cresceriam como pessoas reprimidas pela sociedade não-mágica.
—Bom dia, jovens aprendizes —comecei com um sorriso que não foi retribuído. —Meu nome é Edgar, e serei o novo professor de elementalismo. Não conheço nenhum de vocês, meus amigos. Que tal começarmos com uma apresentação?
Ouvi o nome e a história de cada um daqueles rostos deprimidos. Três garotas, seis garotos, todos conturbados por vidas e pessoas doentias, familiares jogados na sarjeta dos não-mágicos ou mesmo feiticeiros dispersos em magia negra e necromancia, vendidos para as artes da escuridão. Uma garota chamada Nicole demonstrou um potencial incomum para a mágica, pude dizer apenas por ouvi-la se apresentar. Era filha de búlgaros, mas falava um inglês fluente, possivelmente melhor do que muitos americanos ou ingleses. Percebi que teríamos um bom ano de ensino.
Estava enganado, é claro. Seria um péssimo ano.
Na primeira das aulas práticas, Nicole se mostrou mais talentosa do que eu poderia esperar. Enquanto alunos se esforçavam para controlar a chama fora dos candelabros que disponibilizei, ela facilmente desenhou as suas próprias, dominando o elemento com maestria. Ao fim, despejou sobre o fogo bruxuleante o extermínio aquoso de sua feitiçaria, deixando fumegar o dom de seus poderes. Achei aquilo incrível para uma garota de quatorze anos, logo ela conquistou minha atenção. Tinha quinze anos quando consegui controlar um pouco dos elementos, e ela o fazia com primor ainda mais jovem.
Decidi dedicar mais tempo às suas aulas particulares, e assim o fiz. Uma parte de meus ensinamentos dirigia-se aos oito feiticeiros aprendizes, e assim eles se tornavam especialista, cada qual em sua arte específica. Uma das garotas demonstrou uma aptidão ao vento, enquanto um garoto admirou o uso das rochas em sua mágica. Discutia com eles os frutos resultantes das demais aulas, inclusive aquelas oferecidas por Gwendal, o instrutor das artes teóricas e dos rituais.
Do outro lado, demonstrava artes avançadas para Nicole, que tentava imitá-las e, para minha surpresa, conseguia na maioria das vezes, ainda que demonstrasse certa dificuldade em controlar seus instintos. Seus poderes eram grandiosos, mas não era capaz de dizer o mesmo de sua responsabilidade. O fogo a queimou por vezes, assim como a água encharcou suas roupas e seus cabelos, mas ela estava lá, sempre almejando mais, sempre evoluindo.
—Eu quero ser uma grande feiticeira, professor —ela me disse num dia qualquer.
—Você já o é, Nicole —disse com prazer.
—Quero ainda mais, senhor Edgar. Mais do que nenhum outro já foi.
Era uma ambição muito diferente do que uma garota de quatorze anos deveria ter. Naquela idade, em geral, ainda somos crianças irresponsáveis, pensando em conjurar doces e fazer travessuras com nossos companheiros. Ela parecia confiante, determinada. De certo modo, senti que havia alguém interessado em seu talento, alguém que a motivava, forçando-a a continuar aquela trilha de melhorias.
Enquanto refletia nos corredores da escola, ao término de mais uma tarde de trabalho singular, Gwendal me abordou.
—Sinto que também se interessa por aquela garota, meu caro companheiro —foram suas palavras. Estranhei num primeiro momento, mas não fiz mesura.
—Não demonstro interesse por uma criança de quatorze anos, jovem Gwendal. Sou casado, tenho uma esposa linda e amável e uma família para preservar.
—Não falo sobre este interesse. Sabe bem sobre o talento incomum que encontramos naquela garota.
—E o que pretende fazer, transformá-la numa heroína? Quer que ela seja disputada por feiticeiros obscuros?
Gwendal riu com gosto, como se zombasse de minha expressão abismada.
—Quero o mesmo que você, elementalista. Ensiná-la. Heroína ou vilã, pouco me importa. Que ela seja a protagonista de uma obra de arte, ou a antagonista de um conto de fadas. Não faz diferença. Quero apenas participar de sua vida, marcá-la como um mestre marca a seu pupilo, como um fazendeiro marca cada um de seus gados.
—Assim são os seus pensamentos, Gwendal?
—Há algo errado nesta forma de pensar?
Dei de ombros.
—Quem sou eu para dizer?

Eu não percebi, mas as coisas mudavam ao meu redor.
Nicole aprendia rápido demais, tornando cada vez mais difícil controlar sua mágica. Em pouco tempo, ela era um apetrecho bastante útil nas demonstrações que tinha de fazer diante dos demais alunos, exibindo um controle elemental que eu jamais sonharia obter, nem mesmo após a maioridade. Disputava em confrontos encantados contra sua feitiçaria, demonstrando os variados efeitos carregados pelo choque de energias distintas, mas por vezes me sentia oprimido por seu poder. Tinha de me esforçar para derrotá-la, o que era incomum, improvável. Eu não era o melhor, certamente, mas era muito mais velho, possivelmente mais sábio e, definitivamente, mais poderoso em termos de magia. Mas, a cada confronto, sentia-me ofegar, enquanto assistia aquela garota exibir meigos sorrisos num rosto vitorioso.
Certas noites, quando precisava me ausentar da escola em horários mais tardios, via Gwendal preparar alguns ensinamentos ousados nos campos da escola. Sua aula não tinha partes práticas, o que tornava tais hábitos estranhos. Por vezes o via carregar algo bizarro para as áreas externas, sempre com olhares preocupados, o que tornava suas atitudes cada vez mais suspeitas.
—Talvez você esteja possessivo demais —Alina falou com tranquilidade. Ela era uma adulta de opiniões formadas, confiava em mim como jamais o faria por outra pessoa. Sentia-me orgulhoso pelo fato de não existir ciúme algum naquele relacionamento. No entanto, ela sempre estava preocupada com meus pensamentos, agindo como conselheira nos momentos em que amigo algum manter-se-ia ao meu lado. —Por que não a trata como uma aluna qualquer? Talvez essa indiferença faça dela menos egocêntrica, ou piore as coisas. Acredito que valha a tentativa.
O que Alina não entendia era que meu erro já estava feito.
Nicole já me vencia nos embates mágicos, o que era surpreendente. Deixei de lado a sugestão de Alina, inspecionando a vida de minha aluna mais chamativa durante seu tempo fora de classe. Sempre estudando nos alojamentos femininos, preparando novos tipos de poções, trabalhando em feitiçaria muito avançada para sua idade, Nicole era o exemplo de esforço e dedicação, o que, por vezes, parecia mais ambição do que força de vontade. Seguindo-a nos corredores, percebi que ela demarcava os territórios escolares num mapa de origem indizível, como se planejasse algo muito maior.
A situação se tornou pior quando, em uma de minhas investigações, assisti a um encontro peculiar entre Nicole e Gwendal.
—Você está se tornando uma feiticeira impressionante, Nicole —disse o professor de rituais. Debruçado numa das estátuas dos campos da escola, escutava a conversa que se seguia entre os dois, abusando de uma mágica para aguçar meus sentidos. —Cada vez mais me orgulho de instrui-la.
—Sinto-me honrada com suas palavras, professor Gwendal —sorriu a garota. —Acha mesmo que é seguro prosseguir com essa ideia?
—É preciso. —Gwendal parecia apreensivo em suas palavras, como se estivesse inseguro perante a decisão que tomara. Olhava de um lado para o outro, constatando a falta de observadores. Mantive-me invisível aos seus olhos. —Você tem que dar continuidade a nosso avanço, Nicole. Esta é a melhor oportunidade de se destacar diante seus companheiros. Mostre sua capacidade, imponha o respeito que seu talento lhe permite. Abuse do talento que lhe foi atribuído.
Nicole estava um pouco hesitante, mas assentiu, ruborizada pela situação. Esperei até que Gwendal a acompanhasse, assistindo de longe enquanto ambos desapareciam na penumbra.
Alguma coisa estava muito errada naquela situação.

Semanas mais tarde, tínhamos uma atividade prática em conjunto. Todos os instrutores estavam envolvidos, apresentando cada avanço nas matérias específicas de maneira cordial, seguindo um script preparado por nossa diretora, a senhora Cassandra. Vestidos como cavaleiros medievais ou magos de batalha, nossos alunos demonstraram seus maiores talentos interpretativos, seguindo diálogos combinados em uma cadeia de eventos, com direito a efeitos especiais oferecidos pela feitiçaria.
Nicole tinha um papel importante naquela apresentação, mas não apareceu. Outra garota de sua turma, a desfavorecida Nádia, também abandonara o teatro sem motivo aparente. Juro que gostaria muito de acompanhar o desfecho daquele evento, mas fui indicado pela diretora para encontrar as duas alunas, possivelmente perdidas pela escola que, como uma construção mágica e antepassada, tinha o péssimo hábito de alterar seu mapa teórico sem aviso prévio. Parti numa busca aparentemente tranquila, seguido pelo olhar desconfiado de Gwendal, o que, naquele momento, não me importou.
Seguindo a trilha mágica de Nicole, mais luminosa do que qualquer outra que já vira na vida, não tive dificuldades em encontrá-la. Logo constatei que Nádia estava junto dela, facilitando as coisas. A situação, no entanto, me pareceu confusa de início, e mais desesperadora conforme entendia o que se passava naquele local.
—Nicole, não!
Gritei por instinto, chamando atenção do prodígio dentre os alunos daquela academia mágica, cujos olhos faiscavam como uma criatura espectral. Tomada por uma aura corrompida, Nicole se atirava contra o esforço da pobre Nádia, incapaz de se defender, seja na magia, seja na disputa física que se passava. Nádia era filha de brasileiros, uma garota bela, de cachos escuros e pele bronzeada, mas com pouco talento para a praticidade da magia. Era inteligente, estudiosa e esforçada, mas nunca poderia se comparar com o talento demonstrado por Nicole, eu sabia. Na verdade, ela também sabia, mas o pavor a forçava a tentar revidar aquele ataque inesperado, incapaz de ser previsto.
—Professor, me ajude!
Imaginei, como qualquer pessoa o faria, que aquela voz pertencia à garota de origem latina, pois seria ela a mais prejudicada no confronto direto. Surpreendi-me ao notar que o pedido de ajuda vinha da própria Nicole, entretanto. A aura que a circundava era seu espírito, o que nós, feiticeiros, entendemos como a motivação pessoal de cada um, a alma das crenças religiosas. Enegrecia conforme seu respirar, dificultada por um feitiço poderoso, de um mago perverso, provavelmente conhecedor das artes obscuras, um dos mais perigosos caminhos da magia. Aquela mágica era superior à vontade de Nicole, que tentava de qualquer maneira superar a força avassaladora que a dominava.
—Me ajude, professor, eu imploro!
—Enfrente isso, Nicole!
Tentei ajudar com palavras, mas chegara tarde demais. Os braços de Nicole pressionavam o pescoço de Nádia, deixando-a arfando na tentativa de manter uma respiração controlada. Preparei meus encantos elementais para tentar afastá-las, mas hesitei, temendo ferir uma de minhas alunas, e a mágica enfraquecida por meu temor sequer foi capaz de trespassar os escudos sombrios que protegiam Nicole. Corri até elas, o fogo sombrio me queimava os braços e os tornozelos a cada passo. Agarrei os ombros de Nicole com minhas mãos, a ardência me torturou como magia alguma antes fizera.
—Escute a minha voz! —tentei alcançar sua perdição aos brados. —Volte para mim, Nicole! Você precisa enfrentar essa maldição que a assola!
Mas já era tarde demais. Encontrei em seus olhos brilhosos uma treva que me amedrontou, uma sombra capaz de engolir todo o mundo. Aquela garota tinha um talento sem igual; seria de extrema importância para nosso mundo, caso dedicasse seu conhecimento na criação da magnificência da cura ou coisa similar. Seria alvo de feiticeiros da malícia, obviamente, um troféu almejado por incontáveis bruxos do contemporâneo. Eu poderia tê-la ajudado, talvez. Poderia ter me esforçado mais, usado todo meu poder, sacrificado parte de mim para impedir aquela destruição que corroía o espectro daquela garota, transformando-a numa criatura poderosa, mas descontrolada.
Pensei em Alina, em tudo o que teria que deixar para trás. Valeria a pena?
O mundo ou minha família?
—Me ajude, professor! —implorava ela, com suas mil vozes agressivas e disformes.
Tive segundos para tomar uma decisão que poucos homens seriam capazes de tomar. Heróis optariam pelo sacrifício, pela morte honrosa que seria capaz de abolir tamanha atrocidade feita àquela garota, impedindo-a de se tornar o ser vil que grunhia o desconhecido sobre o corpo de uma colega de classe. Eu, no entanto, não era um herói. Jamais morreria para salvar alguém além de Alina, não poderia deixá-la sozinha naquele mundo terrível em que vivíamos. Ela precisava de mim, de meus braços para carregá-la, de minha mente para ajudá-la nos problemas, de meu coração para garantir amor àquela vida de amarguras e dores.
Hoje acredito que a situação seja inversa; na verdade, sou eu quem precisa de Alina.
De qualquer maneira, Nicole era forte demais, mas naquele momento, estava enfraquecida. Se continuasse daquela maneira, Nádia morreria, e eu seria a próxima vítima. Não poderia me defender de um ataque direto, tinha o conhecimento disso. Precisava agir rápido. Era minha única chance.
—Eu sinto muito, Nicole —e baixei os olhos.
—Professor, eu —
—Eu sinto muito
Abusando dos elementais que controlei durante tanto tempo, extingui toda a vida que habitava aquele corpo ingênuo e despreparado.
Nicole morreu em minhas mãos e, em seu lugar, nascera uma muda de cerejeira.

Afastei-me da escola, e logo decidi que não mais voltaria. Nunca mais me sentiria apto a tomar responsabilidade por outros aprendizes, ainda que o número de feiticeiros se tornasse cada vez mais escasso. Alina me apoiou, sempre com carícias destinadas ao meu auxílio, disposta a mimos que me faziam esquecer o trauma daquele ato. Era algo que nunca me abandonaria, certamente, mas teria de superá-lo de algum modo.
Esse modo era o convívio com Alina.
Durante meses, esqueci-me da magia. Vivi como um homem comum, ao lado de uma mulher fantástica. Alina tinha seus problemas, mas estava sempre risonha, o que tornava possível esquecer qualquer empecilho que me afrontasse.
—Eu te amo, Alina —repetia todos os dias, e era pouco se comparado ao merecido por aquela mulher.
—Eu te amo ainda mais, meu anjo —ela respondia, sempre sorridente, sempre carinhosa. Sempre perfeita.
Até que alguém bateu à porta.
Morávamos numa casa afastada da civilização, próximos a uma fazenda que criação alguns animais para a colheita de alimentos e distribuição nos pontos mais movimentados daquela região. Nossa residência, entretanto, era pacata, esquecida pelo povo que nos circundava. Recebíamos poucas visitas ao longo de um ano, portanto, cada batida na madeira envernizada da entrada de nossa moradia parecera surpreendentemente incomum.
—Eu atendo —avisou minha esposa, mas senti algo estranho arrepiar meu corpo todo. Um sentimento exótico, similar a uma previsão sombria e gélida. Era magia.
—Alina, deixe que eu —
Um único grito fez desaparecer minhas palavras, e a frente de minha casa explodiu pelo desejo de um único homem, ou daquilo que restara de sua consciência. Gwendal se postou em meu lar como um invasor, e cada passo forçado para o interior de minha privacidade destruía aquilo que o circundava, do solo às paredes e então o teto trabalhado com telhas simplórias.
—Gwendal! —gritei, e ele gargalhou. Abriu os braços como um lorde, espalhou os destroços de minha casa para os ares, deixando a grama servir de palco para nosso confronto.
—Ora, se não é meu caro companheiro de aulas, o nobre instrutor elementalista, senhor Edgar Monstaville! —Sua voz, assim como ele próprio, estava destruída, enlouquecida por uma mágica aterradora. —Cacei-o por muito tempo, maldito. Hoje, trago a você aquilo que me trouxe.
Pouco escutei de suas palavras. Preocupava-me o corpo de Alina, despejado de sua cadeira de rodas, inerte aos pés daquele mago em demência. Vi-a respirar uma única vez, me aliviei. Ainda vivia.
Com os braços para cima, fiz o fogo e a água e o vento ruírem na direção daquele monstro caótico, destroçado pelo turbilhão terrestre que o assolou após toda aquela mágica canalizada. Na neblina dos destroços, restara sua gargalhada.
—Esta é a minha vez de te fazer sofrer, Edgar —ouvi-o dizer. —Pela morte de Nicole, minha amada filha. Por escolher o caminho do fracassado quando teve a oportunidade de trilhar o rumo do herói. Por acabar com a vida daquela que seria a maior feiticeira de todos os tempos.
Era ele, no final das contas, o responsável pela aberração que se tornara Nicole. Ele era o feiticeiro que corrompeu o espírito daquela garota, que a tornou um ser capaz de ferir uma de suas amigas. Gwendal era o verdadeiro inimigo.
Aquele que me obrigou a matar uma inocente.
—Se é o que deseja, me enfrente!
Ele sorriu. Eu congelei.
—Não vou enfrentá-lo agora, Edgar. Pagará com a mesma moeda de meu sofrimento.
Tentei gritar, mas foi em vão. Gwendal era um feiticeiro melhor do que eu; não fui capaz de impedi-lo. Explodi em rajadas e encantos, mas ele não se importou. Juntamente da melodia de todos os meus feitiços reunidos, escutei o grito da morte de minha amada, e então tudo silenciou.
Gwendal fugira.
Restara apenas a sombra de uma enorme cerejeira.

Eu perdi tudo, pois tudo era somente Alina.
Ela foi tirada de mim, assim como Nicole fora tirada de Gwendal. Havia decidido, uma vez antes, que não mais voltaria à magia. Não seria professor, não seria feiticeiro. Viveria ao lado daquela que amava, faria de tudo por ela, como um homem comum. Este era o meu maior desejo, no final das contas.
Mas a minha oportunidade fora levada por um tirano.
Afastei-me da cerejeira sem olhar para trás. Vinte, talvez trinta anos, não sabia mais contar quanto tempo desde a última lágrima. Elas vieram de súbito, gritantes pelos túneis de meus olhos, jorrando sobre meu rosto tristonho como uma cachoeira de sentimentos perdidos. Deixei-me chorar ali, na sombra da cerejeira, até que toda a minha saudade se tornasse lágrima, até que toda a minha dor enxaguasse as raízes da árvore que representava —e para sempre representaria —Alina.
Ao fim do que me pareceram séculos, limpei o rosto com as vestes, estudei a destruição que um dia chamei de lar. Consertei os estragos com a mágica, reuni os destroços e os dispersei pelo mundo. Não mais precisava de uma casa, talvez nunca mais viveria em uma. Seria um nômade vingativo, um caçador sem lar, sem família, sem uma vida para retornar. Gwendal era meu inimigo, não havia aliados. Tinha comigo o amor de Alina, e apenas isso.
Nada mais me importava. Cerrei os punhos num frenesi momentâneo, mas logo me acalmei. Em nome de Nicole e de Alina, Gwendal pagaria por seus atos, pagaria por destruir a minha vida daquela maneira.
Deixei para trás a sombra da cerejeira, decidido a não retornar enquanto houvesse uma finalidade em minha vida.

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