sexta-feira, 22 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 1 / Ato VII

Olá, companheiros.
Vamos a mais um ato da nova Light Novel do blog?
Não deixem de comentar, é um grande incentivo para a continuação do projeto.
Até a próxima!


VII

Adiel viu a si mesmo no reflexo do céu.
Desejou a morte, mas talvez nem mesmo ela seria capaz de fazê-lo esquecer a visão perturbadora que encontrou naquela devaneio.
Estava lá, ao mesmo tempo em que estava distante da existência. Dentro do espelho, dentro de si, dentro de uma verdade capaz de cegar o mais cético dos homens.
“O que é você, Adiel?”
Falava consigo mesmo, mas era outro. À frente de si, ele próprio o provocava com gestos e acenos, expressando sua ironia nos olhos e lábios.
“Eu sou um homem de valores.”
A gargalhada ecoou num mundo de quatro paredes.
“De valores, mas é claro! E quais são seus valores, Adiel? Trair sua esposa, esquecer-se dos filhos, desprezar a família, encontrar uma amante. Assassiná-la por carregar um filho seu, fruto de um erro que você mesmo causou. São grandes valores para um grande homem, meu caro.”
“E você, quem é?”
“Ora, que pergunta sem sentido. Eu sou você, tolo.”
“E por que zomba de meus valores, se faz parte de minha existência?”
A risada foi diminuta, mas dispersou-se na imensidão de uma planície sombria.
“Não me envergonho de ser o que sou, Adiel. Sou você, e você sou eu. A diferença entre nós é que sei aceitar sua podridão.”
“Acha que eu não posso aceitar estas palavras perversas?”
Procurou um nome para chamar aquele homem, não encontrou. Era ele, um reflexo, um sósia. Ele mesmo.
“É simples aceitar as palavras de alguém, amigo. Difícil é aceitar o que aquela pessoa é ou representa.”
“Se você sou eu, afirmo que te conheço. Não há nada que não saiba sobre mim mesmo.”
Desta vez, a gargalhada avançou até uma tosse súbita e incontrolável. Recobrado de seu surto, o sósia continuou.
“Quanto tempo foi casado, Adiel?”
Foi difícil se lembrar.
“Onze anos.”
“Onze anos. É a vida de uma criança, concorda? Bastante tempo. Conheceu sua esposa?”
“Como ninguém.”
“As mesmas palavras que ela lhe dizia.”
Antes de se perguntar como aquele estranho sabia daquilo, engoliu a verdade de que falava consigo mesmo. Estava louco, sem volta.
“Tanto faz.”
“Mas ela estava errada, Adiel. Ela acreditou em você por te conhecer, por confiar em sua palavra. O que recebeu em troca? Amor? Um casal de filhos adoráveis? Uma traição desmedida, capaz de destruir toda a vida de uma mulher de valores?”
Engoliu a saliva com gosto de ácido, deixando o pânico da realidade assombrar seu olhar. Buscou argumentos, inexistiam. Calado, apenas escutou:
“O que lhe assegura a sua confiança, Adiel? Você mesmo provou-se errado, traiu a confiança da mulher que jurou amar! Como pode acreditar que a conhecia? Pior ainda, como pode acreditar que se conhecia?!”
Cerrava os punhos, pressionando sua angústia nas mãos suarentas. Os olhos se perdiam na confusão daquele momento, a situação fugia de controle.
“Eu estou ficando louco.”
“Não está, Adiel. Só está próximo da verdade. Está próximo de si mesmo.”
Adiel riu sozinho, mas não havia graça.
“Próximo de mim mesmo?”
Parecia ironia.
“O que a bíblia diz sobre nós, Adiel? Sei que conhece a religião, que buscou nela o apoio quando julgou necessário, assim como todos os porcos da sua raça o fazem. O que ela fala sobre as crias de Deus?”
Deu de ombros. A bíblia contava diversas histórias, mencionava incontáveis vezes os homens e sua procriação. Estranhamente, nada lhe veio à mente naquele momento.
“Não sei lhe responder.”
“Quanto orgulho! A bíblia diz que Deus criou os homens à sua semelhança. Algumas religiões citam que nossas vidas são celestiais, similares aos lacaios angelicais que serviam ao Senhor. Tenho certeza que já escutou essa história.”
Fez que sim com a cabeça.
“Pois bem, elas não estão totalmente corretas. Talvez, num momento ancestral, tivéssemos a semelhança dos anjos. Criados para a perfeição até o pecado original, e então servindo de abrigo para todas as desgraças que se seguiram. Nunca seríamos perfeitos, nunca semelhantes a Deus. No entanto, somos idênticos aos anjos. Isso lhe deixa feliz, Adiel?”
“Não faz diferença. Saber se somos ou não iguais aos anjos não altera a minha vida.”
“Então vamos tratar de um novo assunto. Lúcifer, o grande traidor de Deus, o único antagonista do teatro bíblico capaz de confrontar o Criador, era originalmente um anjo, estou certo? Caído pela tentação, tomado pela ganância, ordenhado pela ambição que assolou os homens logo após sua criação.”
“Está me rezando uma missa?”
“Estou te levando à realidade, Adiel. Se Lúcifer, um anjo, cometeu tamanho desaforo para com Deus, e somos todos nós semelhantes aos anjos, somos capazes de alcançar alguma conclusão feliz, amigo?”
“Não entendo onde quer chegar.”
“Palavras talvez sejam vagas. Partiremos para as imagens, então.”
E assim foi feito. Adiel, ou aquele que se fazia passar por seu reflexo, destrinchou-se numa massa sanguinolenta e fétida, que logo começou a se misturar. Movia-se com lentidão, exalando o odor de pecados, de vontades pervertidas, de homicídios, estupros e furtos. Cresceu descontrolada, tornou-se um monstro de asas raquíticas, de carne rubra, de olhos foscos.
Tornou-se um demônio.
Adiel tremeu.
“Os anjos eram perfeitos, Adiel. Mesmo eles foram destruídos pela ganância, pelo mal. Pelo Diabo. Tornaram-se maus, caídos, anjos negros. Demônios. Eles e sua perfeição. E os homens e todos os seus pecados? O que se tornariam?”
Tentou fugir, não havia um caminho.
O monstro se aproximou, ameaçando-o com garras afiadas, mas muito mais ameaçador era seu sorriso malicioso.
“Saia de perto de mim!”
“Não posso me afastar de você, Adiel, sabe disso. Estarei sempre presente, sempre ao seu lado. Sempre dentro de você.”
“Não! Saia de perto de mim! Eu estou endoidecendo, estou vendo demônios, monstros das histórias que tanto escutei em minha vida! Tudo é falso, são apenas alucinações! Isso não está acontecendo, não está!”
“Você não está alucinando, traidor medíocre. Está aqui, à minha frente, rebolando sua nádega fedorenta que adorava utilizar enquanto fodia a vagabunda da sua amante. Está aqui, dentro de si mesmo, enxergando a realidade dos homens, a sua realidade, enquanto hesita com os mesmos lábios que tocavam a vagina da sua esposa nos momentos em que sua mente pensava na mulher que o satisfazia, não naquela vadia que carregava seu nome numa aliança!”
“Cale a boca! Saia de perto de mim, você não é real!”
“Posso me calar, Adiel, mas pense em tudo o que eu disse. Sou horrendo, grotesco, tenho de admitir. Você tem cabelos, uma pele agradável, um rosto bem cuidado. Mas olhe o que você fez! Pense em suas atitudes, em suas ações! Quem é o verdadeiro demônio, Adiel?”
Era ele. Ambos eram ele, mas Adiel era um demônio pior do que qualquer outro.
Todos os humanos eram.
Ali, dentro do espelho capaz de revelar a verdade, Adiel entendeu que os homens, nascidos para a perfeição, para a similaridade com os anjos, eram demônios piores do que aqueles conviventes do inferno.
“Cale a boca!”
O demônio gargalhou.
“Adoro quando você me insulta, Adiel, pois isto revela apenas a sua própria fraqueza! Aceite-me, homem! Aceite a si mesmo!”
“Saia de perto de mim! Nunca vou me aproximar da atrocidade de sua imagem! Você blasfema contra Deus! Sua existência é uma blasfêmia!”
“Tornou-se um pastor, Adiel? É isso o que quer? Tornar-se o filho da puta de um pastor, rezar para os pobres coitados enquanto fode suas esposas, come com seus salários e sustenta uma família secreta de diabinhos sem futuro?”
Adiel jogou-se ao chão, rolando e soluçando como uma criança desesperada. Cobria os ouvidos, os olhos, a boca. Queria gritar, mas não queria ouvir. Não queria escutar sua voz, a do reflexo, ou voz nenhuma. Rezou para ser surdo, cego e mudo, mas parou de rezar. Sentiu-se indigno para com Deus, se realmente existisse algo como uma divindade.
“Cale a boca, por favor, cale a boca!”
“Então olhe para mim.”
O ser agarrou as pálpebras de Adiel, abrindo seus olhos com seus dedos malcheirosos. Aproximou-se, tocou seu rosto com sua nojeira, lambeu as bochechas daquele homem insano, a pele ruborizada pelo nervosismo.
Adiel tentou fechar os olhos, falhou.
“Não pode me obrigar!”
“Veja a verdade, maldito, veja o que é!”
Choramingava.
“Quem é você?”
O demônio sorriu.
“Não negue sua essência, filhote de rapariga. Eu não sou nada nem ninguém. Nós somos Adiel.”

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