segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Conto - Falsas Algemas


Falsas Algemas

—Bom dia, cara.
O cumprimento era para si mesmo. Para o seu rosto no espelho, na verdade. Aquele mesmo rosto de sempre, feio, sem chances, sem oportunidades.
Deixando o banheiro para trás, abraçou a rotina, comeu, saiu, trabalhou, voltou. Um dia como todos os outros. E, nos dias como todos os outros, ela estava lá. Trabalhava ao seu lado, perfumada como uma criança de oito anos que não sabe usar seu desodorante. Cabelos escovados fora da normalidade (os quais, sabia ele, só eram vistos diferente dessa imagem em períodos específicos, quando a progressiva atrasava por motivos distintos), maquiagem pesada, olhos estreitos pela descendência oriental.
—Olá, pseudo-amor da minha vida.
Aquelas palavras deixaram sua boca num tom mais baixo do que um sussurro, mas jamais deixariam a bancada utilizada para seu trabalho no escritório. E então ela passava, acenava um cumprimento apressado, sorria. Um sorriso não era uma oportunidade, era?
—Deixa de ser bobo, cara.
A solidão fez com que falar sozinho se tornasse um hábito.
Fim do dia, os cartões encontraram as máquinas de ponto, registraram minutos de hora extra que não lhe serviriam de nada, mas isso também era costumeiro. Despediu-se dela (beijando-a calorosamente em sua mente, mas pouco sorrindo na realidade), despediu-se do resto (pois o que não era ela, era resto) e foi embora.
Ele não tinha um carro. Não tinha sequer habilitação. Era um moleque, ainda. Um moleque em seus vinte e cinco anos, longe dos pais, longe da mordomia, longe das facilidades que a vida tende a oferecer.
Longe da liberdade.
As ruas estavam sempre cheias, cheirando a cigarro, bebidas e a vida complexas demais para que fossem interessantes. Ele queria conversar. Na verdade, nunca admitiria isso, mas ele precisava conversar. Sentia falta de alguém, de uma companhia. Morar sozinho tinha suas vantagens, mas viver sozinho não era agradável. Nunca fora.
—Como você está, cara?
O seu reflexo não respondia. Estava do mesmo jeito que deveria estar. O mesmo rosto há cinco anos, com pouco menos barba (aparada pela necessidade do emprego). O cabelo no mesmo tamanho, nos mesmos tons. Os olhos com as mesmas olheiras.
A vida na mesma monotonia.
—Boa noite, senhor —disse uma garçonete, escorada ao balcão que ele sempre usava para se apoiar. —Deseja fazer um jogo esta noite?
Os números não eram favoráveis a ele. De acordo com as estatísticas, a cada dez pessoas no mundo, somente uma estava destinada a apodrecer sozinha, e ele era uma delas.
Ele odiava estatísticas, também.
—Não, obrigado.
A cordialidade surgiu sem aviso, e mesmo ele estranhou.
—Tem certeza? A loteria está acumulada!
—E o meu azar também —com rispidez. —Você devia ter ficado com a minha boa educação quando teve a chance.
—Como?
—Me traz uma cerveja.
Ele tinha sorte com cervejas. Não com números, é, mas com cervejas sim. Elas estavam sempre saborosas.
—Meu amigo, o senhor poderia me ajudar? Eu precisava comer alguma coisa...
A voz dos mendigos sempre vinha acompanhada daquela baforada obscura de podridão, e ele se repugnou a ponto de sequer voltar seus olhos par a o homem que lhe pedia auxílio.
—Depende, meu amigo. Será que você poderia me ajudar? Eu precisava ganhar na loteria. Precisava ganhar o amor daquela mulher. Precisava de muitas coisas, na verdade. Mas ninguém veio me oferecer elas, e eu não vejo um motivo grandioso o bastante para me convencer de que eu deveria fazer por você.
O velho marejou os olhos e, sem dizer mais nada, se retirou.
Sua cerveja chegou. Ele abriu e encheu um copo.
O celular vibrou. Uma mensagem dela.
Talvez você devesse me convidar para sair.
Ele fechou o aparelho. Aquilo não estava acontecendo. Era a sua chance de ouro. Ela estava lhe dando uma oportunidade, não estava? Ela estava oferecendo a ele a chance que ele precisava para ganhar a vida. Não a loteria, mas ao menos o amor da mulher que atraía seus olhares há, pelo menos, dois anos.
Ele não respondeu a mensagem. Não estava confiante. Não estava com sorte nos números e, de acordo com as estatísticas, ele deveria ficar sozinho, e ele aceitava esse fato, por mais que odiasse estatísticas.
Tinha sorte na cerveja, ao menos, mas naquele dia, sua cerveja estava vencida.
Dormiu, acordou, viveu um novo dia, e mais outro.
Olhou no espelho.
—Bom dia, cara.
Os trinta anos chegaram sem que ele percebesse. Ela já estava casada, tinha uma filha linda. Ele vira a loteria virar seus números numa noite qualquer, mas os seus números não eram seus, pois ele não chegou a apostar. Alguém ganhou o prêmio milionário sozinho. Ele se contentou com balas de iogurte, vodka e dois copos de Yakult.
Estava sentado num banco da praça, jogando pedaços de pão para os pombos (e só quem faz isso sabe o quão deprimente é sentar-se sozinho para alimentar os animais que defecam na cabeça das pessoas). Ao longe, o mendigo que ele não ajudou um dia vendia quadros pintados na hora. Ele parecia feliz e rico, ao menos de espírito. Não precisava mais pedir as coisas.
—Você também gosta de alimentar os pombos.
Não era uma pergunta, mas ele respondeu.
—Sim, eu gosto. Alguém mais no mundo faz isso?
A mulher sorriu para ele. Seu sorriso era alvo, mas seus cabelos eram dourados e reluzentes, como uma máscara humana para um comercial de creme dental.
—Eu faço —disse ela. —É interessante ver como eles reagem.
Ela era amável. Por um momento, um único instante, ele esqueceu o amor da sua vida. Percebeu que poderia se apaixonar de novo. Percebeu que poderia tentar outra vez.
—Que tal uma festa para o solteirão?
Aquela frase fora dita pelo seu chefe, o mesmo chefe de dez anos atrás, antes do seu aniversário de trinta e cinco anos.
Ah, claro, vale a pena ressaltar: ele não conversou com aquela garota. Ele hesitou, teve medo, e ela foi embora, e ele não mais voltou a alimentar pombos, muito menos a ver a manequim viva.
—Não gosto de festa.
Sem emoção alguma.
—Vai dizer isso até completar seus quarenta anos?
Fechou os olhos.
—Não gosto de festa —respondeu, quando perguntado cinco anos mais tarde.
Já havia cabelos grisalhos em sua cabeça, e a barba era áspera de tanto ser feita. Os olhos estavam cansados, mas a carteira estava cheia. Ele nunca aprendeu a dirigir. Beijou algumas garotas no ensino médio, não mais. Às vezes sonhava com modelos de seios fartos e saias justas, mas tinha de trabalhar no dia seguinte, então riscava a contabilidade de seus planejamentos e dormia ao som de um jazz brega.
—O que você fez com a sua vida?
A pergunta seria dolorosa se feita por qualquer pessoa, mas doeu centenas de vezes mais quando ele percebeu que, na frente do espelho, ele mesmo se perguntava.
—O que você fez com a sua vida?
Engoliu em seco.
—O que eu fiz com a minha vida?
Nada.
Ele não fizera nada. Nunca fizera.
Ou talvez tenha feito. Levantava, escovava os dentes, respirava, trabalhava, apaixonava-se, esquecia, não falava, bebia para superar, bebia para relembrar, bebia para ser outra pessoa, bebia para não ser ninguém.
Na frente do espelho, sentiu vontade de chorar.
—Eu poderia tentar...
Cinquenta anos. Viver, agora, não adiantaria mais nada. Era tarde demais.
Não era?
—Não.
Olhou para seus pulsos e, só então, viu as algemas que lhe aprisionavam. Tarde demais? Talvez fosse. Mas e daí? Ele via as algemas, agora. Via as algemas que ele mesmo colocou. Via as algemas que ele criou, as algemas que o impediram de fazer tudo o que tinha vontade.
Tomou um gole da cerveja que tinha no congelador, pois tinha sorte com cervejas. Ela estava choca, mas ele tomou até o final mesmo assim, e depois completou com suco de uva, pulando no lugar para esquentar, fingindo tomar vinho.
Ligou para ela.
—Alô?
Ele não escutava aquela voz ao telefone há anos.
—Boa noite. Eu sempre te amei.
—Como é?
—Eu disse que sempre te amei.
—Quem tá falando? Eu tenho um marido, sabia? Tenho uma família, tenho —
Ele desligou. Já havia feito o que precisava.
Saiu de sua casa. Chovia.
O terno encharcou antes que cinco passos fossem dados. Jogou os cabelos para trás, abriu a boca e provou a água da chuva. Era ruim. Correu até a praça e, sob uma área coberta, o mendigo pintava. Ele não era mais um mendigo, na verdade. Ele ganhava o dinheiro necessário para viver nas pinturas.
—Eu queria uma imagem.
Ele explicou ao velho, e ele estranhou, mas assentiu. Rabiscou, usou suas tintas, fez sua mágica, sua arte, e lá estava ele, pintado numa moldura, mas ali, naquela prisão do quadro, ele não tinha cinquenta anos. Não tinha vinte, talvez.
Era jovem.
Mais que jovem.
Era livre.
—Obrigado —disse ele, pagando a pintura. Saiu com ela na chuva, grande parte estragou. Então jogou-a para o ar, deixou-a cair, chutou até que o quadro se partisse.
—O que está fazendo? —perguntava o artista que via sua arte ruir.
—Estou me libertando.
E foi exatamente isso o que fez.
No dia seguinte, trabalhou, mas sorriu. Dias mais tarde, foi promovido. Alguns meses depois, deixou a empresa, conquistou uma oportunidade melhor. Conheceu uma mulher, e ela gostou de seu jeito, e eles se casaram alguns anos mais tarde. Eram velhos para ter uma criança, mas adotaram uma garotinha, e ela era amável, ainda que não parecesse tanto com nenhum dos dois.
E um dia, muito tempo mais tarde, ele postou-se na frente do espelho. Tinha rugas, começava a ficar calvo. Seus olhos estavam cansados pela aposentadoria. Seu corpo já não era mais saudável, sua vida já não era mais a mesma.
Levantou os pulsos, admirou-os.
Não havia algema alguma.

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