sábado, 15 de dezembro de 2012

Conto - Tarag Barba Púrpura


Na casa de um Rei Anão, poucas coisas andam em ordem.
Aquele era um dia atípico para Bethorn Coroa-de-Espinhos. Sentado sobre o Trono Celeste de Algazhor, o mais duradouro dos Reis Anões aguardava o resultado do conflito subterrâneo que decidiria aquele dentre seus três filhos que o sucederia no trono. Parte do nervosismo de Bethorn, no entanto, não se devia aos perigos afrontados pelas proles. Ele sabia que qualquer um dentre os três guerreiros nascidos do ventre de Gaphin Trança-Rubra era suficientemente capaz de superar quaisquer desafios.
O problema era outro.
Bethorn não esperava por um campeão entre seus filhos.
Esperava por Tarag, o mais velho deles, com a coroa em mãos. Ele tinha de vencer. Ele tinha de governar Algazhor.
O maior problema naquela situação, porém, era o próprio Tarag.
Carregando uma arma maior do que seus braços, Tarag era imponente. O subterrâneo faiscava junto das lâminas afiadas daquela machado de combate, e as cores do estandarte de Tarag ofuscavam mesmo no escuro. O violeta, marco do corvo estampado em sua bandeira, riscava sua armadura de placas e todo o metal que adornava suas proteções, bem como as pregas que moldavam os laços de sua barba, o que lhe rendera, anos antes, o título de Barba Púrpura. Com a arma em mãos, Tarag bufava, oscilante para com aquela ideia fantasiosa de seu pai.
Governar um reino de anões, que bobagem! Tarag queria liberdade, queria conhecer o mundo de fora, viajar pelo céu e pelo mar. Gostava das pedras e das runas, mas não as amava como tinha de amar por ser um anão.
—Você me lembraria de um elfo caso tivesse orelhas pontudas e um metro a mais de altura —dizia Udun, seu irmão caçula, outro dos participantes daquela competição pelo trono de Algazhor.
—Não me compare a raça alguma, Udun —defendia-se Tarag. —Não quero alcançar povo algum. Quero ser livre, e somente a liberdade pode saciar a sede que tenho pelo saber.
Ouvindo aquelas palavras, Bagoth gargalhava, chegando bem próximo da ânsia pelo riso em frenesi.
—Sede pelo saber! —zombava o outro irmão, o do meio. —Você não sabe nada, Tarag! Mal sabe que as rochas são o nosso lar, a nossa herança e o nosso destino. Não há liberdade para quem é livre na prisão que lhe acolhe.
—Então que eu me prenda em nuvens e ondas, Bagoth. Pouco me importa.
Naquele instante, entretanto, Bagoth sangrava, Udun arfava na exaustão de diversos combates consecutivos e, na medida do possível, Tarag lutava.
A Barba Púrpura ainda estava de pé, potencializada pelos gritos e cânticos de guerra dos xamãs dentre os anões, o que realisticamente falando não alterava em nada as capacidades de combate do trio de irmãos. Com a arma branca revoltosa em mãos, Tarag afrontava na solidão do fracasso fraterno a criatura vil e hedionda que seu pai escolhera para o teste final do trono de Algazhor: um dragão.
Catoblepas era seu nome, ou assim cantavam os bardos, e também o Rei Anão. Aprisionada pelo próprio Rei Bethorn no auge de seu domínio militar das tropas de Algazhor, Catoblepas manteve-se inquieto e teimoso durante todo o tempo de recolhimento, e agora deleitava-se na oportunidade de incinerar os filhos do herói que lhe privou da liberdade. O couro rubro cintilava junto de infindáveis peças de ouro e bronze, riquezas armazenadas pela criatura durante escavações precipitadas, ou adquiridas como espólios encontrados nos corpos dos valentes guerreiros que ousaram afrontar tamanha atrocidade. Soprando uma baforada de inércia duvidosa, Catoblepas rabiscava o ar com suas chamas escarlates, deixando-as afrouxarem a existência de três Príncipes Anões, os quais enxergavam, muito além dos perigos oferecidos pela monstruosidade daquele dragão, a coroa de rosas que somente um dos três filhos ostentaria quando Catoblepas quedasse por definitivo.
Mas Tarag não desejava coroa alguma.
—Este maldito é resistente demais! —urrava Bagoth, postando-se outra vez sobre as pernas curtas, a alabarda lhe escorando o corpo.
—Então temos de ser mais fortes ainda —gritou Udun, e as espadas de lâminas curvas faiscaram em suas mãos. —Não vou deixar de ser Rei por desistir de lutar contra um único ser! Se esta é a determinação que tal monstro nos mostra, serei eu a lhe mostrar algo ainda mais poderoso!
E, sem que ninguém perguntasse o que era tal façanha, Udun deixou as palavras escaparem de seus lábios inchados:
—Vou mostrar a ele como luta um novo Rei.
A lança e as espadas deixaram para trás a precaução do machado de Tarag, e o irmão mais velho apenas observou quando o sangue de seu sangue tentava, na medida do possível, defender-se do inferno que jorrava no sopro de Catoblepas, sentindo a pele dos braços queimar por sob os escudos e armaduras.
Ele tinha de fazer alguma coisa.
—Recuem!
Aquela era a ordem de um comandante.
—Quem é você para nos dar ordens, Tarag?! —Bagoth não recuava. —Eu serei o novo Rei!
—Você pode ser o Rei se quiser, irmão, eu não me importo com o trono ou a coroa. Mas nada haverá para governar caso tombe no combate com este monstro, e como irmão mais velho que sou, cabe a mim a responsabilidade de —
—Cabe a você calar a boca enquanto lutamos, seu idiota!
As armas encontraram o couro do dragão, arranhando-o sem que causassem grandes feridas. Catoblepas girou no lugar, e sua cauda de espinhos rasgou a carne de Udun e Bagoth, arremessando-os para trás.
—Maldito seja! —urrava Udun, entre dor e ódio.
—Ele não vai cair assim —Tarag pensava alto, examinando o dragão como um todo. —Deve haver um ponto crucial onde ele possa ser atingido e... Já sei!
Ali, no calor da batalha, o Barba Púrpura encontrou uma falha no couro daquele imenso dragão: sobre o pescoço avantajado, pouco antes do elmo de couro e escamas, uma única brecha deixava a carne rosada à mostra, a pele desprotegida e intacta de um dragão ancestral.
Aquela era a melhor oportunidade de Tarag, ainda que, para um anão, onze metros de altura não fosse uma escalada admirável.
O machado afastou as chamas, Tarag corria. Avançava entre os tesouros de Catoblepas conforme acelerava na direção do dragão, e a lâmina lhe impulsionou para cima ao evitar a pancada desferida com as garras da criatura. Ele subiu, num salto improvável para os irmãos desleixados, grudou a manopla pontiaguda na carne e nas escamas, escalou na agilidade de um elfo.
Aquela era a vida escolhida por Tarag, a vida de liberdade, a vida de ser o que anão algum ousaria ser.
Escalou, e dez metros mais tarde encontrava o pescoço de Catoblepas, apresentando certa dificuldade em se manter agarrado ao dragão que se debatia como uma criança em choro birrento. O fogo escapava por todos os poros, subia e descia no subterrâneo de Algazhor, mas Tarag não o soltou. Encontrou a falha que buscava, deixou que uma das mãos suportasse todo o peso de seu corpo e, com a outra, sustentou o machado de guerra que lhe fizera companhia por tantas outras batalhas.
Um golpe, um único corte carregado por um desejo antigo e poderoso, e a lâmina fez com que a vida de um monstro colossal findasse num piscar de olhos.
Catoblepas caíra. Tarag também quedara.
Mas somente um Rei vivia.
—Está decidido —disse Bethorn, sorrindo por dentro e por fora pelo resultado daquele embate, quando todos os filhos retornaram.
—Sim, pai —Tarag manifestou-se. —Está decidido. Udun deverá governar Algazhor.
Udun deixou a boca ferida se abrir, surpreso.
—Do que está falando, irmão? Você foi o vencedor naquele conflito!
—Não venci para me tornar Rei. Venci para me tornar livre. Se tiver de caçar a cabeça de cem dragões para que possa deixar o subterrâneo para trás, eu o farei. Se tiver de arrancar o coração de inúmeras ameaças para que desbrave os ares e os mares de nosso mundo, eu o farei. Vocês não podem me obrigar a apodrecer aqui, como farão. Não podem me obrigar a viver uma vida que eu não desejo.
Bethorn suspirou, decepcionado, e se virou, dando as costas a seus filhos.
—Que seja —disse ele. —Udun será o novo Rei Anão, em breve. Bagoth o auxiliária como General de Guerra. E Tarag... Adeus.
Seco, frio, sem um sorriso ou um cumprimento. Aquele não era um simples adeus. Aquele era o fim de uma linhagem.
Tarag não se importou.
—Governem com justiça e honra, meus irmãos —disse o Barba Púrpura. —E nunca se esqueçam de que, um dia, houve um terceiro anão aqui, ao lado de vocês. Bethorn vai esquecer. Eu não sou mais um filho para ele.
—Mas, para nós, será sempre um irmão —disse Bagoth, e o trio se despediu num sorriso.
Tarag partiu no mesmo dia. Deixou para trás a vida de mordomias para ganhar um novo mundo, e o mundo o acolheu como acolheria qualquer pessoa: sem piedade alguma. No exterior, Tarag ganhou cicatrizes, lutou bravamente, conheceu o mar e o vento, voejou e velejou. Viveu o que gostaria de viver.
E, abaixo da vida de Tarag, Udun e Bagoth governaram, e Algazhor cresceu na medida do possível. Bethorn era um Conselheiro, um antigo Rei que sabia das decisões. Ele nunca mais falou o nome de Tarag, e seus filhos, seus dois únicos filhos, também nunca citaram mais o nome do irmão. Sentiam sua falta, sim, mas não traziam tais lembranças para o pai que tanto sofria.
No fundo, Bethorn preocupava-se com as histórias de fora, com as lendas que se espalhavam de uma maneira tão intensa que ousavam afrontar as barreiras do reino subterrâneo dos anões. As lendas diziam sobre um guerreiro de pernas curtas e vontade interminável, de um fabuloso guerreiro capaz de derrotar quaisquer ameaças.
As lendas contavam sobre Barba Púrpura e, ouvindo-as dos bardos e dos contadores de histórias, Bethorn não podia deixar de sorrir, admirado e esperançoso, tomado por um orgulho gigantesco do filho que recusou a realeza para se aventurar pelo mundo.

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