quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Conto - Paradoxo



A água do chuveiro quedou gelada, similar a uma cachoeira. Ela levou consigo suor, lágrimas e problemas, mas ele via apenas a sujeira partir.
Não soube por quanto tempo ficou ali, cabisbaixo, com os olhos fixos nos azulejos brancos de texturas elegantes, sob as águas da cachoeira artificial que improvisara para lavar a alma. Soube apenas que, qualquer que fosse o tempo, não se sentia de alma lavada. Sentia-se com frio, sim, e limpo, cheirando ao sabonete que ele sequer se lembrara de ter usado. Um banho demorado que o fez rejuvenescer, mas não esquecer o que aturdia seus pensamentos.
Enquanto se enxugava, seus olhos brilhavam, marejados. Brilhava, também, a prata circular em seu anelar direito, simplória e barata, mas de simbologia extremista, uma importância que o ouro de um colar não teria. Ele a admirava vez ou outra, quando sozinho. Quase sempre estava sozinho, pensou. Quase sempre a admirava.
Ali havia um nome de poucas letras, e uma data de poucos números. Coisas com poucas coisas, mas de muito significado.
E, vez ou outra, era aquela circunferência de joalheira que o fazia se recordar de que havia uma companheira do outro lado da linha telefônica. Ele não estava solteiro. Não sentia falta da vida de solteiro, muito pelo contrário. Odiava aquela vida. Recordar-se dos dias em que se sentiu sozinho, em que se viu no berço das aventuras e assistiu a perdições, era um terror como poucos filmes seriam.
Por isso, lembrar-se de que havia alguém do outro lado da linha lhe dava uma segurança sem tamanho. E também medo.
Medo de que aqueles dias voltassem.
Livrou-se das gotículas d’água para vestir o pijama. Não se arrumava para o mundo; banhara-se por ansiar pela água que, promessas diziam, limparia sua alma. Ainda que estivesse limpo e perfumado, não se sentia limpo como desejava. Ainda pensava aquelas coisas. Ainda tinha os mesmos medos.
Deixou as roupas sujas para lavar, pendurou sua toalha onde ela poderia secar e ser reutilizada no dia seguinte. Antes de deitar-se em sua cama, bateu os dedos contra as teclas do celular.
Nada.
Sentiu vontade digitar algo. Ele sempre digitava alguma coisa. Sempre escrevia linhas e mais linhas do que ela já sabia, do que ela talvez se cansasse de ler e escutar. Mas ele sempre escrevia. Escrevia o que pensava, o que precisava escrever, e que fossem coisas repetitivas, mas eram sinceridades abusivas que deveriam ser ditas a todo momento. Ou não. Mas a sua mente dizia que sim, que ele deveria dizer, que deveria lembrar ao mundo todas aquelas palavras. Então ele escrevia.
Parou de pensar quando percebeu que já havia escrito as mesmas coisas.
Apagou a mensagem sem enviar. Não queria ser um incômodo. Não queria ser inconveniente.
Sentia saudades, sim.
Queria que ela também sentisse.
Sabia que ela também sentia, claro, mas as coisas não são assim tão fáceis de aceitar. Ele nunca duvidava do que ela dizia. Ele só sentia falta dela, do seu sorriso, da sua presença. Ouvia a sua voz, conversavam pelo celular, viam-se pouco. Quando se viam, às vezes, brigavam. E ele se sentia um tremendo idiota por perder o tempo que tinha ao lado dela, o pouquíssimo tempo que tinha ao lado dela, com bobagens. Mas ele era um homem, e ela, uma mulher, e humanos como tal, imperfeitos. Errôneos. Errados. Então, como tem de ser, eles brigavam. E ele sentia saudades dos beijos dela, e tinha horas do lado dela, e às vezes essas horas passavam rápido demais. Elas sempre passavam rápido demais, na verdade. Ao fim, despediam-se com um beijo apaixonado, ou rápido e necessário, alguns dias. Ele ia embora para sua casa, e ela ficava na dela, distantes. Talvez na mesma distância que tenham estado quando lado a lado, pensava ele. Por bobagens. Por asneiras.
Por culpa dele.
Por culpa dela também, claro. Mas a culpa maior era sempre dele.
Era o que ele achava, e talvez fosse verdade. Que diferença faria? A culpa não tinha de ser atribuída. Não era um troféu a ser entregue. Ela estava ali, pairando ao vento, disposta a ser abraçada por quem desejasse. A tolice dos homens é sempre abraçar a culpa, e assim se martirizar, sem deixá-la para trás.
Ele era exatamente assim.
Tolo.
Homem.
Deitou-se, fechou os olhos. Não tinha sono, e sabia que não dormiria. Tinha fome, mas não tinha vontade de comer. Às vezes era o contrário. Às vezes ele tinha vontade de comer, mas não tinha fome. Às vezes ele dormia, mas não tinha sono.
Mas ele sempre a amava.
De olhos fechados, pensou em como era bom estar apaixonado. Pensou, também, em como tudo aquilo era estranho. Era como caminhar numa corda-bamba, trilhando um caminho perigosíssimo na direção de uma recompensa inimaginável. A corda, disposta na extensão de duas montanhas, carregava-o na mais leve das brisas para os dias mais felizes que ele tinha em sua vida. A cada travessia, a cada vez que ele superava as dificuldades de rumar por aquele trajeto de perigo iminente, era recompensado por sorrisos, por alegrias infindáveis, por uma paixão envolvente e eterna, por mais que o eterno também tenha fim àqueles que não vivem para sempre. A cada travessia, no entanto, sentia-se mais desconfortável por percorrer aquele mesmo caminho, por afrontar os mesmos problemas, os mesmos temores. A queda era um pavor, e ela seria o fim. Ele não queria o fim. Ele não queria cair. Queria atravessar aquela corda, alcançar a sua amada, abraçá-la, dizer que a amava, que viveria por ela. Então fazia tudo isso. Depois voltava, e lá estava ela, do outro lado da corda. Sem pestanejar, ele atravessava novamente, e novamente e novamente.
Percebeu que seu rosto estava molhado.
Colocando as mãos sobre os olhos, viu-se chorar. Não soluçava, não engasgava aos prantos. Chorava no silêncio de seu quarto, como aprendera a chorar para que não o notassem. Sua vida toda fora daquele modo: um desafio absoluto de não ser notado, de ser esquecido. Ele gostava de ser notado, gostava de estar presente. Mas, mesmo quando tentava o oposto, não surtia efeito algum. Deixavam-no de lado. Deixavam-no para trás. E, quando ele ia à frente, ninguém o seguia. Alguns estavam lá, sim, mas todos eles também tinham seus caminhos.
Talvez ele não fosse interessante. Sim, era isso. Ele não era nada interessante. Não conversava sobre as coisas da moda, não conversava sobre o que o mundo era para a maioria das pessoas. Era simplesmente ele, como tinha de ser. Como todos tinham de ser.
Que bobagem.
Quem era ele para dizer como todos tinham de ser?
Levantou-se, ainda com os olhos fechados, abriu-os devagar. O relógio dizia que era tarde demais para um passeio de motocicleta, mas ele não. Ele não dizia nada. Vestiu uma blusa que não afastaria o vento frio, postou o capacete sobre o rosto umedecido pelas lágrimas, ligou o veículo e saiu. Dirigiu por ruas que já conhecia, a noite o acompanhava. A noite estava lá, companheira.
Mas ele estava sozinho.
Parou num lugar qualquer, tirou o celular do bolso. Mentiu para si mesmo que olharia as horas, mas não era isso o que desejava olhar.
Nenhuma mensagem, nenhuma ligação.
Nada.
As estrelas não estavam bonitas. Até estavam, na verdade, mas ele não enxergava beleza alguma naquela noite. Ele não a enxergava, e assim estava incompleto, vazio. Era só ele, como fora algum tempo atrás, mas agora isso já não era o suficiente. Nunca fora, na verdade. Nunca seria.
Ele precisava de alguém.
Precisava dela.
O semáforo tornou-se rubro, forçando-o a parar. Não estava concentrado. Não sabia para onde seus instintos o guiavam, mas deixava-se levado pela mente, sem impedi-la. Olhou a mão no acelerador, a aliança cintilava no vermelho do sinal. Foi ela quem o avisou quando a luz se tornou verde, mas ele não saiu do lugar. Alguém buzinou, e só então ele abriu os olhos para o mundo. Anda logo, diziam, sai da frente!
Ele saiu da frente de todos. Deixou que eles passassem, e ficou ali, seguindo devagar, assistindo enquanto todos passavam.
Como fizera durante toda a vida.
A viseira erguida deixava que o vento lhe acariciasse o rosto. Não era bem uma carícia, na verdade. Parecia mais uma sucessão de socos impiedosos, de tapas de realidade, graças à velocidade elevada. Não se via correr, mas corria. Era perigoso. A vida era perigosa.
Tão perigosa quanto uma corda-bamba.
Parou. Olhou ao redor para ver onde estava. Era um lugar familiar, claro.
Era a rua dela.
Ficou ali, estático. Não queria estar ali? Mentira. Claro que ele queria estar ali. Claro que ele queria estar com ela. Ele precisava. Viu sua casa, tão próxima, a campainha o chamou, mas ele ficou ali, inerte, assistindo sua incompetência. E agora? Baixaria os olhos para a rua, engoliria o medo junto da saliva seca e voltaria para sua casa para chorar sozinho? Parecia uma solução aceitável. Agradável não, obviamente, mas aceitável. Muitas coisas se tornam aceitáveis diante do medo da perda. Muitas coisas se tornam aceitáveis quando você aceita que deseja fazer de tudo por alguém.
Mas ele não foi embora.
Não saiu dali, não a chamou. Respirava fundo, engolia o choro.
Sentia saudades.
O portão se abriu, rangendo. Era ela. A mesma expressão, os mesmos olhos. Cabisbaixa, como ele, temerosa. Tristonha.
Linda.
Ele desligou a moto, desceu e tirou o capacete. Ela viu seus olhos marejados, e ele viu os dela. Choravam sozinhos, distantes. Nas mãos dele, o celular, sem mensagens, sem ligações. Nas dela, seu aparelho telefônico, igualmente vazio. Ambos tomados pelo medo de incomodar, pelo medo de atrapalhar.
O celular caiu ao chão, ele sequer percebeu. Caminhou até ela como uma criança segue até os doces ou os brinquedos, abraçou-a como se não houvesse um dia depois daquele. Abraçou forte, mais forte do que deveria, mas ela não reclamou. Ficou ali, em seu abraço, confortando-o com seus braços delicados, com sua pele macia e perfumada. Ele deixou-se maravilhar naquele perfume, apaixonou-se outra vez, como fazia todos os dias que a via. Fechou os olhos, viajou por infinitos países das maravilhas, conheceu o infinito e viu seu fim, então voltou ao mundo real, mas a realidade era boa demais para que ele acreditasse.
Sob a lua e as lâmpadas dos postes, duas alianças brilhavam, unidas. As mãos também se uniram, os dedos se entrelaçaram. Um estalo repentino fez de um instante um beijo, e de um beijo um instante. Um instante duradouro, de minutos ou de horas. Um instante que ele queria que durasse para sempre.
Mais tarde, já em sua casa, ele sorriu sozinho. Deitou-se em sua cama, abriu os braços, cheirou suas roupas. Era o cheiro dela. Ele amava aquele cheiro. Ele a amava.
Abriu as mãos sobre seus olhos, admirou a aliança em seu dedo anelar. Ela estava arranhada demais, machucada demais. Como ele. Como os dois, na verdade. Estava marcada por grandes feridas, por lembranças boas e ruins, cicatrizes que não partiriam jamais. Ele desanimou ao vê-la daquele modo, serena e frágil, gratificada por acertos e danificada por erros.
Como eles.
E assim ele chegou à conclusão de que as coisas estavam todas erradas. Não podemos abrir mão do que amamos, mas também não devemos nos deixar machucados para sempre. É um erro, e ele estava cansado de errar. Ela também, pensava ele. Ninguém gosta de errar. Ninguém gosta de insistir no erro.
Pensando daquele modo, decidiu que, para os dois, para que o eu e o ela fosse apenas nós, algo tinha de mudar. As cicatrizes tinham de ser deixadas para trás, as marcas e feridas tinham de ser superadas. Não esquecidas, não abandonadas. Superadas, sim. Como um degrau de uma imensa escadaria que nos leva à vitória, ao sucesso. Ao amor.
Ele fechou os olhos, mas não dormiu. Não queria dormir, não ainda.
Queria ter certeza de que sonharia com ela.
Sabia, no fundo de seus pensamentos, que a única maneira de se livrar de cicatrizes era aceitando-as, passando por cima de todas as feridas e, acima de tudo, amando. Decidiu que seria mais, que seria melhor. Decidiu que daria motivos para que ela pensasse o mesmo. Percebeu que eram dois, mas que tinham de ser apenas um.
Percebeu também, vendo tantos arranhados em sua aliança, que ela era um erro. Estava errada ali, ao menos.
Na cor errada e no dedo errado.
E as coisas erradas têm de ser ajeitadas, pouco a pouco, para que as cicatrizes desapareçam e restem apenas os sorrisos.
Com os olhos fechados, ele adormeceu.
Adormeceu feliz, e sonhou com a mulher que amava, e assim notou que sua vida era perfeita.

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