A água do chuveiro quedou gelada, similar
a uma cachoeira. Ela levou consigo suor, lágrimas e problemas, mas ele via
apenas a sujeira partir.
Não soube por quanto tempo ficou ali,
cabisbaixo, com os olhos fixos nos azulejos brancos de texturas elegantes, sob
as águas da cachoeira artificial que improvisara para lavar a alma. Soube
apenas que, qualquer que fosse o tempo, não se sentia de alma lavada. Sentia-se
com frio, sim, e limpo, cheirando ao sabonete que ele sequer se lembrara de ter
usado. Um banho demorado que o fez rejuvenescer, mas não esquecer o que aturdia
seus pensamentos.
Enquanto se enxugava, seus olhos
brilhavam, marejados. Brilhava, também, a prata circular em seu anelar direito,
simplória e barata, mas de simbologia extremista, uma importância que o ouro de
um colar não teria. Ele a admirava vez ou outra, quando sozinho. Quase sempre
estava sozinho, pensou. Quase sempre a admirava.
Ali havia um nome de poucas letras, e uma
data de poucos números. Coisas com poucas
coisas, mas de muito significado.
E, vez ou outra, era aquela
circunferência de joalheira que o fazia se recordar de que havia uma
companheira do outro lado da linha telefônica. Ele não estava solteiro. Não
sentia falta da vida de solteiro, muito pelo contrário. Odiava aquela vida.
Recordar-se dos dias em que se sentiu sozinho, em que se viu no berço das
aventuras e assistiu a perdições, era um terror como poucos filmes seriam.
Por isso, lembrar-se de que havia alguém
do outro lado da linha lhe dava uma segurança sem tamanho. E também medo.
Medo de que aqueles dias voltassem.
Livrou-se das gotículas d’água para
vestir o pijama. Não se arrumava para o mundo; banhara-se por ansiar pela água
que, promessas diziam, limparia sua alma. Ainda que estivesse limpo e
perfumado, não se sentia limpo como
desejava. Ainda pensava aquelas coisas. Ainda tinha os mesmos medos.
Deixou as roupas sujas para lavar,
pendurou sua toalha onde ela poderia secar e ser reutilizada no dia seguinte.
Antes de deitar-se em sua cama, bateu os dedos contra as teclas do celular.
Nada.
Sentiu vontade digitar algo. Ele sempre
digitava alguma coisa. Sempre escrevia linhas e mais linhas do que ela já
sabia, do que ela talvez se cansasse de ler e escutar. Mas ele sempre escrevia.
Escrevia o que pensava, o que precisava escrever, e que fossem coisas
repetitivas, mas eram sinceridades abusivas que deveriam ser ditas a todo
momento. Ou não. Mas a sua mente dizia que sim, que ele deveria dizer, que
deveria lembrar ao mundo todas aquelas palavras. Então ele escrevia.
Parou de pensar quando percebeu que já
havia escrito as mesmas coisas.
Apagou a mensagem sem enviar. Não queria
ser um incômodo. Não queria ser inconveniente.
Sentia saudades, sim.
Queria que ela também sentisse.
Sabia que ela também sentia, claro, mas as
coisas não são assim tão fáceis de aceitar. Ele nunca duvidava do que ela
dizia. Ele só sentia falta dela, do seu sorriso, da sua presença. Ouvia a sua
voz, conversavam pelo celular, viam-se pouco. Quando se viam, às vezes,
brigavam. E ele se sentia um tremendo idiota por perder o tempo que tinha ao
lado dela, o pouquíssimo tempo que tinha ao lado dela, com bobagens. Mas ele
era um homem, e ela, uma mulher, e humanos como tal, imperfeitos. Errôneos.
Errados. Então, como tem de ser, eles brigavam. E ele sentia saudades dos
beijos dela, e tinha horas do lado dela, e às vezes essas horas passavam rápido
demais. Elas sempre passavam rápido demais, na verdade. Ao fim, despediam-se
com um beijo apaixonado, ou rápido e necessário, alguns dias. Ele ia embora para
sua casa, e ela ficava na dela, distantes. Talvez na mesma distância que tenham
estado quando lado a lado, pensava ele. Por bobagens. Por asneiras.
Por culpa dele.
Por culpa dela também, claro. Mas a culpa
maior era sempre dele.
Era o que ele achava, e talvez fosse
verdade. Que diferença faria? A culpa não tinha de ser atribuída. Não era um
troféu a ser entregue. Ela estava ali, pairando ao vento, disposta a ser
abraçada por quem desejasse. A tolice dos homens é sempre abraçar a culpa, e
assim se martirizar, sem deixá-la para trás.
Ele era exatamente assim.
Tolo.
Homem.
Deitou-se, fechou os olhos. Não tinha
sono, e sabia que não dormiria. Tinha fome, mas não tinha vontade de comer. Às
vezes era o contrário. Às vezes ele tinha vontade de comer, mas não tinha fome.
Às vezes ele dormia, mas não tinha sono.
Mas ele sempre a amava.
De olhos fechados, pensou em como era bom
estar apaixonado. Pensou, também, em como tudo aquilo era estranho. Era como
caminhar numa corda-bamba, trilhando um caminho perigosíssimo na direção de uma
recompensa inimaginável. A corda, disposta na extensão de duas montanhas,
carregava-o na mais leve das brisas para os dias mais felizes que ele tinha em
sua vida. A cada travessia, a cada vez que ele superava as dificuldades de
rumar por aquele trajeto de perigo iminente, era recompensado por sorrisos, por
alegrias infindáveis, por uma paixão envolvente e eterna, por mais que o eterno
também tenha fim àqueles que não vivem para sempre. A cada travessia, no
entanto, sentia-se mais desconfortável por percorrer aquele mesmo caminho, por
afrontar os mesmos problemas, os mesmos temores. A queda era um pavor, e ela
seria o fim. Ele não queria o fim. Ele não queria cair. Queria atravessar
aquela corda, alcançar a sua amada, abraçá-la, dizer que a amava, que viveria
por ela. Então fazia tudo isso. Depois voltava, e lá estava ela, do outro lado
da corda. Sem pestanejar, ele atravessava novamente, e novamente e novamente.
Percebeu que seu rosto estava molhado.
Colocando as mãos sobre os olhos, viu-se
chorar. Não soluçava, não engasgava aos prantos. Chorava no silêncio de seu
quarto, como aprendera a chorar para que não o notassem. Sua vida toda fora
daquele modo: um desafio absoluto de não ser notado, de ser esquecido. Ele
gostava de ser notado, gostava de estar presente. Mas, mesmo quando tentava o
oposto, não surtia efeito algum. Deixavam-no de lado. Deixavam-no para trás. E,
quando ele ia à frente, ninguém o seguia. Alguns estavam lá, sim, mas todos
eles também tinham seus caminhos.
Talvez ele não fosse interessante. Sim,
era isso. Ele não era nada interessante. Não conversava sobre as coisas da
moda, não conversava sobre o que o mundo era para a maioria das pessoas. Era
simplesmente ele, como tinha de ser. Como todos tinham de ser.
Que bobagem.
Quem era ele para dizer como todos tinham
de ser?
Levantou-se, ainda com os olhos fechados,
abriu-os devagar. O relógio dizia que era tarde demais para um passeio de
motocicleta, mas ele não. Ele não dizia nada. Vestiu uma blusa que não
afastaria o vento frio, postou o capacete sobre o rosto umedecido pelas
lágrimas, ligou o veículo e saiu. Dirigiu por ruas que já conhecia, a noite o
acompanhava. A noite estava lá, companheira.
Mas ele estava sozinho.
Parou num lugar qualquer, tirou o celular
do bolso. Mentiu para si mesmo que olharia as horas, mas não era isso o que
desejava olhar.
Nenhuma mensagem, nenhuma ligação.
Nada.
As estrelas não estavam bonitas. Até
estavam, na verdade, mas ele não enxergava beleza alguma naquela noite. Ele não
a enxergava, e assim estava incompleto, vazio. Era só ele, como fora algum
tempo atrás, mas agora isso já não era o suficiente. Nunca fora, na verdade.
Nunca seria.
Ele precisava de alguém.
Precisava dela.
O semáforo tornou-se rubro, forçando-o a
parar. Não estava concentrado. Não sabia para onde seus instintos o guiavam,
mas deixava-se levado pela mente, sem impedi-la. Olhou a mão no acelerador, a
aliança cintilava no vermelho do sinal. Foi ela quem o avisou quando a luz se
tornou verde, mas ele não saiu do lugar. Alguém buzinou, e só então ele abriu
os olhos para o mundo. Anda logo, diziam, sai da frente!
Ele saiu da frente de todos. Deixou que
eles passassem, e ficou ali, seguindo devagar, assistindo enquanto todos
passavam.
Como fizera durante toda a vida.
A viseira erguida deixava que o vento lhe
acariciasse o rosto. Não era bem uma carícia, na verdade. Parecia mais uma
sucessão de socos impiedosos, de tapas de realidade, graças à velocidade
elevada. Não se via correr, mas corria. Era perigoso. A vida era perigosa.
Tão perigosa quanto uma corda-bamba.
Parou. Olhou ao redor para ver onde
estava. Era um lugar familiar, claro.
Era a rua dela.
Ficou ali, estático. Não queria estar
ali? Mentira. Claro que ele queria estar ali. Claro que ele queria estar com
ela. Ele precisava. Viu sua casa, tão
próxima, a campainha o chamou, mas ele ficou ali, inerte, assistindo sua
incompetência. E agora? Baixaria os olhos para a rua, engoliria o medo junto da
saliva seca e voltaria para sua casa para chorar sozinho? Parecia uma solução
aceitável. Agradável não, obviamente, mas aceitável. Muitas coisas se tornam
aceitáveis diante do medo da perda. Muitas coisas se tornam aceitáveis quando
você aceita que deseja fazer de tudo
por alguém.
Mas ele não foi embora.
Não saiu dali, não a chamou. Respirava
fundo, engolia o choro.
Sentia saudades.
O portão se abriu, rangendo. Era ela. A
mesma expressão, os mesmos olhos. Cabisbaixa, como ele, temerosa. Tristonha.
Linda.
Ele desligou a moto, desceu e tirou o
capacete. Ela viu seus olhos marejados, e ele viu os dela. Choravam sozinhos,
distantes. Nas mãos dele, o celular, sem mensagens, sem ligações. Nas dela, seu
aparelho telefônico, igualmente vazio. Ambos tomados pelo medo de incomodar,
pelo medo de atrapalhar.
O celular caiu ao chão, ele sequer
percebeu. Caminhou até ela como uma criança segue até os doces ou os
brinquedos, abraçou-a como se não houvesse um dia depois daquele. Abraçou
forte, mais forte do que deveria, mas ela não reclamou. Ficou ali, em seu
abraço, confortando-o com seus braços delicados, com sua pele macia e
perfumada. Ele deixou-se maravilhar naquele perfume, apaixonou-se outra vez,
como fazia todos os dias que a via. Fechou os olhos, viajou por infinitos
países das maravilhas, conheceu o infinito e viu seu fim, então voltou ao mundo
real, mas a realidade era boa demais para que ele acreditasse.
Sob a lua e as lâmpadas dos postes, duas
alianças brilhavam, unidas. As mãos também se uniram, os dedos se entrelaçaram.
Um estalo repentino fez de um instante um beijo, e de um beijo um instante. Um
instante duradouro, de minutos ou de horas. Um instante que ele queria que
durasse para sempre.
Mais tarde, já em sua casa, ele sorriu
sozinho. Deitou-se em sua cama, abriu os braços, cheirou suas roupas. Era o
cheiro dela. Ele amava aquele cheiro. Ele a amava.
Abriu as mãos sobre seus olhos, admirou a
aliança em seu dedo anelar. Ela estava arranhada demais, machucada demais. Como
ele. Como os dois, na verdade. Estava marcada por grandes feridas, por
lembranças boas e ruins, cicatrizes que não partiriam jamais. Ele desanimou ao
vê-la daquele modo, serena e frágil, gratificada por acertos e danificada por
erros.
Como eles.
E assim ele chegou à conclusão de que as
coisas estavam todas erradas. Não podemos abrir mão do que amamos, mas também
não devemos nos deixar machucados para sempre. É um erro, e ele estava cansado
de errar. Ela também, pensava ele. Ninguém gosta de errar. Ninguém gosta de
insistir no erro.
Pensando daquele modo, decidiu que, para
os dois, para que o eu e o ela fosse apenas nós, algo tinha de mudar. As cicatrizes tinham de ser deixadas para
trás, as marcas e feridas tinham de ser superadas. Não esquecidas, não
abandonadas. Superadas, sim. Como um degrau de uma imensa escadaria que nos
leva à vitória, ao sucesso. Ao amor.
Ele fechou os olhos, mas não dormiu. Não
queria dormir, não ainda.
Queria ter certeza de que sonharia com
ela.
Sabia, no fundo de seus pensamentos, que
a única maneira de se livrar de cicatrizes era aceitando-as, passando por cima
de todas as feridas e, acima de tudo, amando. Decidiu que seria mais, que seria
melhor. Decidiu que daria motivos para que ela pensasse o mesmo. Percebeu que
eram dois, mas que tinham de ser apenas um.
Percebeu também, vendo tantos arranhados
em sua aliança, que ela era um erro. Estava errada ali, ao menos.
Na cor errada e no dedo errado.
E as coisas erradas têm de ser ajeitadas,
pouco a pouco, para que as cicatrizes desapareçam e restem apenas os sorrisos.
Com os olhos fechados, ele adormeceu.
Adormeceu feliz, e sonhou com a mulher
que amava, e assim notou que sua vida era perfeita.
onde está o paradoxo? eu preciso para meu trabalho....
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