quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Conto - De Sorrisos Obscenos a Lamúrias Tardias


De Sorrisos Obscenos a Lamúrias Tardias

Há um assassino à solta.
É o que dizem todos os jornais que a manhã me oferece. Enquanto provo de meu café com adoçante, escuto as ladainhas da noite anterior. Mais sangue, mais morte, poucas respostas e nenhuma explicação. Nada diferente do que o Brasil sempre me mostrou, sem pudor algum. Vergonha. Nada é feito, nada é resolvido.
Como se eu realmente me importasse.
Ao caminhar pelas calçadas da metrópole carioca, sinto o calor me acolher como se o próprio inferno me abraçasse. Não é uma boa sensação, obviamente, ao menos que você goste de assistir enquanto sua pele se faz líquida e escorre, gotejando no calçamento cinzento. Tudo ali é dourado, das areias aos olhos das mulatas e também seus bronzeados espectrais, que de naturais nada possuem. Eu as enojo. Gosto de mulheres, não de produtos.
Naquele dia, minha vida pouco valia. Não era diferente nos dias anteriores. Eu era alguém sem nome, sem importância. A cada vez que saía, trabalhava em algo diferente nas mentiras, mas sempre retornava recordando que não mais trabalhava. Nunca mais trabalharia, talvez. Eu era louco, e loucos nunca são aceitos. Só se aceitam os comuns, os volúveis. Que vão à merda, todos eles. Eu passo fome sendo original.
Escorado a um banco de madeira, vejo um casal de crianças correr ao redor de uma bola plástica.
—Não vão para muito longe! —dizia o pai, cujas mãos não possuíam aliança. —Vocês podem se perder!
Pois ele, pobre coitado, já estava perdido. Um pai solteiro. Traição, possivelmente. Escória.
Levantei-me nauseado, sussurrei um foda-se e parti. Nada diferente da rotina.
—Eu nunca entendo como você pode ter dinheiro para a farra de todas as noites.
As palavras vinham de um velho que me vendia os maços de cigarro e a primeira dose de destiladas que me abria o apetite alcoólico. Seus cabelos grisalhos não tinham rumo ou penteado, deixavam-no similar a um leão de pelos cinzentos. Um avô teimoso e intrometido, pensava eu. Um cadáver dotado de fala e pensamentos inóspitos.
—Eu também não —respondi, ríspido.
—Diga a verdade, você ganhou na loteria, não é?
Segurei o riso. Se é que me lembrava de como sorrir.
Eu nunca ganharia nada. Sorte era uma lenda tão afastada quanto Odin e seus filhos deuses. Acreditar nunca fez com que o sol esquentasse mais a Terra. O que fez isso foi o aquecimento global. E minha sorte era tão gélida quanto a Antártida, mas sem sol algum para derreter suas calotas polares.
—Claro —menti. —Obrigado.
Acendi um cigarro sobre o gosto da vodca, deleitei-me na fumaça soprada entre os lábios. Fiz anéis cinzentos, joguei-os para o ar. Eles eram livres. Eu não.
A tarde correu solta, mas não ia muito longe, como as crianças de um pai solteiro que não entendia o princípio de uma boa família. E, enquanto a tarde corria solta, eu me sentava preso, inerte, usando da nicotina para que o relógio parecesse girar. Ele girava, claro. Giravam, também, minhas vontades, meus temores. Meus dias.
Eu estava ficando velho.
—Pai, hoje eu vi uma calça linda no shopping!
A adolescente de arquétipo louro e magricela entoava cada palavra. Não era um comentário. Era uma súplica enrustida na timidez de uma aproveitadora. Uma filha interesseira.
Eu também tive uma filha interesseira, um dia.
—Eu não tenho dinheiro, filha.
Aquelas eram as minhas palavras, ditas no silêncio. O velho assentiu, ofereceu à filha o presente que ela desejava, e ela sorriu o sorriso mais artificial do mundo e se felicitou. Tolo era ele por acreditar. Ela era somente humana e, como tal, via na tolice sua vantagem, os degraus de sua escada.
—Eu te amo, papai.
Claro. Como o Papa ama os famintos enquanto ostenta riqueza em seu trono e nada faz para ajudá-los. Faz todo sentido.
A noite chegou, e eu escolhi a primeira boate que avistei para assentar minha tristeza. A música era boa, mas boa no limite da repetição. Nada de inovar, nada de agradar a todos. Uma música de jovens num ambiente de jovens. Jovens e eu, velho. Velho demais para me divertir, mas não para sentar e deixar que se divertissem comigo. Alguns apontavam, debochavam. Eu sorria. Oferecia drinks, estendia os dedos. Era chacota para os pequenos. Todos eles com idade para que eu lhes fosse um genitor. Todos eles com mentes para que eu lhes vendesse os cérebros no lugar dos amendoins de elefantes num zoológico.
—Eu posso me sentar com o senhor?
A voz era agradável, melodiosa e harmônica. Uma voz de prostituta.
—Só se quiser se sentar no céu, porque é lá que o senhor está —zombei. —Mas se quiser se sentar comigo, fique à vontade.
Eu não era bom com piadas. Na verdade, eu era péssimo. Meu senso de humor era tão ilustre quanto um rato de laboratório preso a um pneu de bicicleta a girar. Meus olhos, no entanto, eram ótimos. E eles me mostraram os seios daquela menina. Sim, menina. Uma adolescente com idade o suficiente para ter nascido de mim, ou de uma mulher que eu tivesse de fecundar. Uma garotinha com documentos falsos que a possibilitavam circular entre os adultos e sentir-se, assim, parte daquilo tudo.
—Você é engraçado —ela riu. O batom estava borrado, parte pela inexperiência, parte por beijos de uma noite duradoura. Seus lábios cheiravam a morango, uísque e uma terceira coisa. Talvez esperma. —Tem um nome?
—Meus documentos dizem que sim —foram minhas palavras sinceras. —Eu, não mais.
—Ah, entendi —mas era mentira. —Eu me chamo Brígida. Mas pode me chamar de Bi.
—Seus gostos se dividem nas aventuras, Bi?
—Como uma lâmina divide uma folha.
Ela gargalhou, mas nada havia para se rir. Então ela tomou do meu corpo, e eu nada disse. Apenas assisti aquela depravação, admirando sua garganta e imaginando o quão fundo ela poderia levar um homem.
—Isso é vodca?
—Era —respondi. —Agora é só um copo vazio. Quer beber alguma coisa?
—É estranho beber com um homem que tem a idade para ser meu pai.
Sua mão encontrou a minha sobre a mesa. A outra, se não a segurasse no lugar, procuraria minha carteira.
—Um novo copo e parecerei seu filho —ironizei, sem emoção alguma. —Permita-me.
Acenei para a garçonete, já conhecida, e ela me trouxe dois copos da bebida verdejada que pedira. A garota bebericou para conhecer, então desbravou o líquido de imediato, secando o copo a seguir. Eu sequer encostei em meu drink.
—O que era isso? —depois de beber, como toda boa inteligência.
—Piper. Ou meleca de rinoceronte. Escolha o que achar melhor.
—Ei, pare de tirar sarro de mim! Eu não estou tão bêbada, tá bem?
Seus olhos me diziam o contrário. Eu imaginava, em sua residência, um pai deitado em sua cama, escutando um rádio de pilhas ou assistindo a algum filme pornográfico ao lado de uma mulher de sexualidade inativa. Ele poderia ter uma idade similar à minha, ou talvez ser ainda mais novo. Pensar desse jeito faria qualquer pedófilo desistir de suas intenções.
Por isso, como cada um deles, desisti de meus pensamentos.
—Imagino que esteja. Ou será que consegue fazer um quatro?
Ela sentiu-se desafiada. Levantou-se derrubando copos e uma garrafa no movimento. Teve dificuldades em parar de pé, cambaleou no lugar. Depois escorou-se na mesa com as mãos, tentou levantar as pernas, em vão.
Sentou-se novamente, exausta.
—Sei fazer algo melhor do que isso —sussurrou, as bochechas coradas, a língua para fora dos lábios.
—O que é? —Mostrei uma falsa curiosidade.
—Sei fazer de quatro.
Respirei fundo, entediado com aquela conversa. Alguém abaixo de minhas calçadas me mandava um aceno. No meu cérebro, anjo e demônio travavam uma guerra eterna nas escolhas, mas, como há de ser, somente um deles a venceu.
E eu a tirei dali, postando-a no meu carro enquanto recebia um sexo oral com cheiro de álcool e gosto de juventude.
Encostei a um canto qualquer, no escuro. Era um beco de uma rua nada movimentada. Tirei-a do carro, joguei seu corpo contra uma das paredes, tirei suas roupas e sua vergonha, penetrei-a sem hesitar. Ela gemia, eu bufava. A fricção era intensa, a respiração pesada e densa, como quem respira numa neblina turva e fétida. Eu não tinha mais fôlego para essas coisas.
Soltei seu corpo, que cedeu como uma boneca sem vida, e ela vomitou nos meus pés. Os sapatos eram importados, mas que homem se importaria com isso naquele momento? Eu tinha outros pensamentos, pensamentos muito mais sedutores e atraentes. A mão estava num dos bolsos, preparada para o clímax do tesão, para o desfecho guardado para todas as minhas transas.
—Nós realmente podemos ficar aqui? —ela perguntou, limpando os lábios. —Ouvi dizer que tem um assassino à solta...
Sorri, carinhoso, coloquei-a nos braços e a levei para a escuridão.
Naquele momento, era como um pai, carinhoso e atencioso.
—Fique tranquila, queridinha —e a agarrei, borrado por orgasmo daquele momento que me fazia homem, me fazia vivo. —Essa notícia só vai importar à sua família.
Quando a matei, ela não gemeu. Ela chorou, mas estava anestesiada. Não sentia dor, prazer, nada. Sentia-se partir, despedia-se do mundo. Calou-se na noite, no frio, e eu me regozijei pelo prazer impactante que somente a morte pode oferecer.
Há um assassino à solta.
Era o que diziam os jornais, mas eu sabia que aquilo era uma mentira.
O assassino estava preso.
Mais preso do que qualquer um.

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