De Sorrisos
Obscenos a Lamúrias Tardias
Há
um assassino à solta.
É o que dizem todos os jornais que a
manhã me oferece. Enquanto provo de meu café com adoçante, escuto as ladainhas
da noite anterior. Mais sangue, mais morte, poucas respostas e nenhuma explicação.
Nada diferente do que o Brasil sempre me mostrou, sem pudor algum. Vergonha.
Nada é feito, nada é resolvido.
Como se eu realmente me importasse.
Ao caminhar pelas calçadas da metrópole
carioca, sinto o calor me acolher como se o próprio inferno me abraçasse. Não é
uma boa sensação, obviamente, ao menos que você goste de assistir enquanto sua
pele se faz líquida e escorre, gotejando no calçamento cinzento. Tudo ali é
dourado, das areias aos olhos das mulatas e também seus bronzeados espectrais,
que de naturais nada possuem. Eu as enojo. Gosto de mulheres, não de produtos.
Naquele dia, minha vida pouco valia. Não
era diferente nos dias anteriores. Eu era alguém sem nome, sem importância. A
cada vez que saía, trabalhava em algo diferente nas mentiras, mas sempre
retornava recordando que não mais trabalhava. Nunca mais trabalharia, talvez.
Eu era louco, e loucos nunca são aceitos. Só se aceitam os comuns, os volúveis.
Que vão à merda, todos eles. Eu passo fome sendo original.
Escorado a um banco de madeira, vejo um
casal de crianças correr ao redor de uma bola plástica.
—Não vão para muito longe! —dizia o pai,
cujas mãos não possuíam aliança. —Vocês podem se perder!
Pois ele, pobre coitado, já estava
perdido. Um pai solteiro. Traição, possivelmente. Escória.
Levantei-me nauseado, sussurrei um foda-se e parti. Nada diferente da
rotina.
—Eu nunca entendo como você pode ter
dinheiro para a farra de todas as noites.
As palavras vinham de um velho que me
vendia os maços de cigarro e a primeira dose de destiladas que me abria o
apetite alcoólico. Seus cabelos grisalhos não tinham rumo ou penteado,
deixavam-no similar a um leão de pelos cinzentos. Um avô teimoso e intrometido,
pensava eu. Um cadáver dotado de fala e pensamentos inóspitos.
—Eu também não —respondi, ríspido.
—Diga a verdade, você ganhou na loteria,
não é?
Segurei o riso. Se é que me lembrava de
como sorrir.
Eu nunca ganharia nada. Sorte era uma
lenda tão afastada quanto Odin e seus filhos deuses. Acreditar nunca fez com
que o sol esquentasse mais a Terra. O que fez isso foi o aquecimento global. E
minha sorte era tão gélida quanto a Antártida, mas sem sol algum para derreter
suas calotas polares.
—Claro —menti. —Obrigado.
Acendi um cigarro sobre o gosto da vodca,
deleitei-me na fumaça soprada entre os lábios. Fiz anéis cinzentos, joguei-os
para o ar. Eles eram livres. Eu não.
A tarde correu solta, mas não ia muito
longe, como as crianças de um pai solteiro que não entendia o princípio de uma
boa família. E, enquanto a tarde corria solta, eu me sentava preso, inerte,
usando da nicotina para que o relógio parecesse girar. Ele girava, claro.
Giravam, também, minhas vontades, meus temores. Meus dias.
Eu estava ficando velho.
—Pai, hoje eu vi uma calça linda no
shopping!
A adolescente de arquétipo louro e
magricela entoava cada palavra. Não era um comentário. Era uma súplica
enrustida na timidez de uma aproveitadora. Uma filha interesseira.
Eu também tive uma filha interesseira, um
dia.
—Eu não tenho dinheiro, filha.
Aquelas eram as minhas palavras, ditas no
silêncio. O velho assentiu, ofereceu à filha o presente que ela desejava, e ela
sorriu o sorriso mais artificial do mundo e se felicitou. Tolo era ele por
acreditar. Ela era somente humana e, como tal, via na tolice sua vantagem, os
degraus de sua escada.
—Eu te amo, papai.
Claro. Como o Papa ama os famintos
enquanto ostenta riqueza em seu trono e nada faz para ajudá-los. Faz todo
sentido.
A noite chegou, e eu escolhi a primeira
boate que avistei para assentar minha tristeza. A música era boa, mas boa no
limite da repetição. Nada de inovar, nada de agradar a todos. Uma música de
jovens num ambiente de jovens. Jovens e eu, velho. Velho demais para me
divertir, mas não para sentar e deixar que se divertissem comigo. Alguns
apontavam, debochavam. Eu sorria. Oferecia drinks, estendia os dedos. Era
chacota para os pequenos. Todos eles com idade para que eu lhes fosse um
genitor. Todos eles com mentes para que eu lhes vendesse os cérebros no lugar
dos amendoins de elefantes num zoológico.
—Eu posso me sentar com o senhor?
A voz era agradável, melodiosa e
harmônica. Uma voz de prostituta.
—Só se quiser se sentar no céu, porque é
lá que o senhor está —zombei. —Mas se
quiser se sentar comigo, fique à vontade.
Eu não era bom com piadas. Na verdade, eu
era péssimo. Meu senso de humor era tão ilustre quanto um rato de laboratório
preso a um pneu de bicicleta a girar. Meus olhos, no entanto, eram ótimos. E
eles me mostraram os seios daquela menina. Sim, menina. Uma adolescente com
idade o suficiente para ter nascido de mim, ou de uma mulher que eu tivesse de
fecundar. Uma garotinha com documentos falsos que a possibilitavam circular
entre os adultos e sentir-se, assim, parte daquilo tudo.
—Você é engraçado —ela riu. O batom
estava borrado, parte pela inexperiência, parte por beijos de uma noite
duradoura. Seus lábios cheiravam a morango, uísque e uma terceira coisa. Talvez
esperma. —Tem um nome?
—Meus documentos dizem que sim —foram
minhas palavras sinceras. —Eu, não mais.
—Ah, entendi —mas era mentira. —Eu me
chamo Brígida. Mas pode me chamar de Bi.
—Seus gostos se dividem nas aventuras,
Bi?
—Como uma lâmina divide uma folha.
Ela gargalhou, mas nada havia para se
rir. Então ela tomou do meu corpo, e eu nada disse. Apenas assisti aquela
depravação, admirando sua garganta e imaginando o quão fundo ela poderia levar
um homem.
—Isso é vodca?
—Era —respondi. —Agora é só um copo
vazio. Quer beber alguma coisa?
—É estranho beber com um homem que tem a
idade para ser meu pai.
Sua mão encontrou a minha sobre a mesa. A
outra, se não a segurasse no lugar, procuraria minha carteira.
—Um novo copo e parecerei seu filho
—ironizei, sem emoção alguma. —Permita-me.
Acenei para a garçonete, já conhecida, e
ela me trouxe dois copos da bebida verdejada que pedira. A garota bebericou
para conhecer, então desbravou o líquido de imediato, secando o copo a seguir.
Eu sequer encostei em meu drink.
—O que era isso? —depois de beber, como
toda boa inteligência.
—Piper. Ou meleca de rinoceronte. Escolha
o que achar melhor.
—Ei, pare de tirar sarro de mim! Eu não
estou tão bêbada, tá bem?
Seus olhos me diziam o contrário. Eu
imaginava, em sua residência, um pai deitado em sua cama, escutando um rádio de
pilhas ou assistindo a algum filme pornográfico ao lado de uma mulher de
sexualidade inativa. Ele poderia ter uma idade similar à minha, ou talvez ser
ainda mais novo. Pensar desse jeito faria qualquer pedófilo desistir de suas
intenções.
Por isso, como cada um deles, desisti de
meus pensamentos.
—Imagino que esteja. Ou será que consegue
fazer um quatro?
Ela sentiu-se desafiada. Levantou-se
derrubando copos e uma garrafa no movimento. Teve dificuldades em parar de pé,
cambaleou no lugar. Depois escorou-se na mesa com as mãos, tentou levantar as
pernas, em vão.
Sentou-se novamente, exausta.
—Sei fazer algo melhor do que isso
—sussurrou, as bochechas coradas, a língua para fora dos lábios.
—O que é? —Mostrei uma falsa curiosidade.
—Sei fazer de quatro.
Respirei fundo, entediado com aquela
conversa. Alguém abaixo de minhas calçadas me mandava um aceno. No meu cérebro,
anjo e demônio travavam uma guerra eterna nas escolhas, mas, como há de ser,
somente um deles a venceu.
E eu a tirei dali, postando-a no meu
carro enquanto recebia um sexo oral com cheiro de álcool e gosto de juventude.
Encostei a um canto qualquer, no escuro.
Era um beco de uma rua nada movimentada. Tirei-a do carro, joguei seu corpo
contra uma das paredes, tirei suas roupas e sua vergonha, penetrei-a sem
hesitar. Ela gemia, eu bufava. A fricção era intensa, a respiração pesada e
densa, como quem respira numa neblina turva e fétida. Eu não tinha mais fôlego
para essas coisas.
Soltei seu corpo, que cedeu como uma
boneca sem vida, e ela vomitou nos meus pés. Os sapatos eram importados, mas
que homem se importaria com isso naquele momento? Eu tinha outros pensamentos,
pensamentos muito mais sedutores e atraentes. A mão estava num dos bolsos,
preparada para o clímax do tesão, para o desfecho guardado para todas as minhas
transas.
—Nós realmente podemos ficar aqui? —ela
perguntou, limpando os lábios. —Ouvi dizer que tem um assassino à solta...
Sorri, carinhoso, coloquei-a nos braços e
a levei para a escuridão.
Naquele momento, era como um pai,
carinhoso e atencioso.
—Fique tranquila, queridinha —e a
agarrei, borrado por orgasmo daquele momento que me fazia homem, me fazia vivo. —Essa notícia só vai importar à
sua família.
Quando a matei, ela não gemeu. Ela
chorou, mas estava anestesiada. Não sentia dor, prazer, nada. Sentia-se partir,
despedia-se do mundo. Calou-se na noite, no frio, e eu me regozijei pelo prazer
impactante que somente a morte pode oferecer.
Há
um assassino à solta.
Era o que diziam os jornais, mas eu sabia
que aquilo era uma mentira.
O assassino estava preso.
Mais preso do que qualquer um.
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