quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Conto - Pesadelos Surreais


Pesadelos Surreais

Eram ruas cinzentas, aquelas. Ruas por onde ninguém caminharia.
Ninguém além daquele homem.
Ele era pouco mais que uma silhueta no asfalto surrado de uma rodovia gélida e silenciosa. O vento soprava melodioso, e junto dele, o homem assoviava. A música era um blues antigo, rítmico e sonoro, de certo modo agradável. A mente era tão antiga quanto a música, talvez mais; o corpo era jovem, mas não era o dele próprio.
—Por quanto tempo pretende andar?
A pergunta veio de uma criança, um garoto de cabelos desajeitados e olhos felinos, claros e soturnos. Ele se escorava a um fio elétrico que nascia e morria num único poste daquele caminho eterno. Tinha, nas mãos, o barbante maltrapilho de um peão, brinquedo há muito esquecido pelas crianças da realidade.
Mas aquela não era a realidade.
—Por quanto tempo for necessário —respondeu o homem. Os mantos escuros sacudiam ao vento, bem como os cabelos rebeldes e longos. Suas sobrancelhas eram mais escuras que a noite, quase igualadas a seus olhos, que de tão negros sombreariam o universo, se houvesse um universo para sombrear. Ele falava como um cantor pop dos anos 60, uma voz grave e única, disposta a vencer concursos de jovens talentos da mídia convencional.
—Talvez você não tenha todo esse tempo —zombou o garoto, sem deixar sua posição. Ele enrolava o barbante no peão, como as regras mandam. —E então?
—Então eu vou continuar a andar.
E ele continuou a andar, inquieto.
O garoto o observava. Ele andava, andava e andava mais, mas o poste ainda estava ali, inerte, e o garoto sentado sobre ele, escorado aos fios, brincando com seu peão.
O brinquedo girou no chão ate perder as forças e quedou. Voejou no vento seco e desértico até retornar às mãos do menino do poste de eletricidade.
—Por que está procurando por ele? —perguntou o garoto, e o homem suspirou, impaciente.
—Porque eu quero —com rispidez desnecessária numa resposta direcionada a uma criança. —Vai me encher até que eu o encontre?
—Claro que não. Vou te encher enquanto tiver forças para caminhar. Você nunca o encontrará. Não está preparado. Ninguém está.
—É o que veremos.
O homem de preto seguiu, trilhando seu caminho. Atrás dele, um peão girava.

Ronald estava sem sorte aquela tarde.
Tomara chuva durante o trajeto feito de motocicleta, pouco mais de quatrocentos metros, mas isso enxaguara todo seu smoking recentemente comprado para reuniões como aquela. Chegara atrasado à sala onde o grupo se sentava, esperando somente por ele, fora apontado como um descrente do crescimento evolutivo da empresa em que trabalhava. Quase perdera o emprego quando espirrou em meio às palavras do Sr. Coats, o velho diretor que planejava investir nas ações da Carmim Laugh, uma das mais jovens e bem sucedidas indústrias de cosméticos de Nova York.
Ronald pôs tudo a perder, e seu chefe o fuzilava com os olhos. Ele sabia que, caso algo desse errado naquela reunião, seu emprego correria um imenso risco de inexistir.
—Eu lhe disse para não se atrasar dessa vez, senhor Smith —disse o velho Connor, presidente da Carmim Laugh e exemplo de patriotismo. Vestia-se no elegante e costumeiro cinza da alta sociedade, mas sempre havia algo em seu corpo que o recordaria das cores da bandeira americana. Naquele dia, o cinto que ajustava suas calças tinha as estrelas da bandeira nacional. —Sei que a chuva é um empecilho atípico e temporal, mas isso não justifica sua entrada desastrosa na sala de reuniões.
—Eu sinto muito, Sr. Connor —foi tudo o que Ronald pôde dizer, e pareceu o suficiente, pois o velho se ausentou, deixando que o intervalo da reunião parecesse mais uma pausa momentânea para a respiração.
Ronald buscou nos bolsos do paletó uma barra de cereais e a mastigou, lembrando de que aquele seria seu café da manhã, deixado para trás em virtude do atraso. Jogou a embalagem no lixo que dizia Plástico e se aproximou das janelas do décimo primeiro andar daquele edifício colossal, de onde ele poderia avistar quase toda a extensão de sua cidade. Era óbvio, ele sabia, que aquela visão não mostraria Nova York como um todo. Ronald duvidava que a visão alcançada por um helicóptero seria capaz de apresentar a metrópole americana por inteiro, mas estava satisfeito com a imagem periférica dos prédios e das residências onde inúmeros cidadãos norte-americanos viveriam suas vidas pacatas, tomados por luxúria desnecessária e eternamente acompanhados por gorduras localizadas dignas de provadores de Mc Donalds.
—Ronald.
Alguém chamou, mas Ronald ainda pensava nos gordinhos das famílias lá embaixo.
—Sim? —sem se virar.
—A reunião vai começar.
Era uma das secretárias num alerta, e ele estava atrasado outra vez.
—Só um instante.
Jogou o restante de sua barra na boca e mastigou, apressado. Ajeitava o terno com as mãos desengonçadas quando percebeu, no exterior do vidro, uma movimentação estranha.
Olhou o relógio no pulso: 11 de setembro.
Que data emblemática, não?
O World Trade Center tremulou no lugar quando o primeiro dos aviões atingiu a torre ao lado de onde Ronald se encontrava, e o pânico se instaurou. Gritaria e caos se espalharam por todos os corredores enquanto as pessoas tentavam desesperadamente abandonar seus pertences para trás e fugir, descer as escadas e os elevadores, na esperança póstuma de sobreviver àquele atentado terrorista.
Não Ronald. Ele não estava sequer desesperado.
Estava assustado, sim, mas não devido ao fato de aviões alvejarem as torres gêmeas, marco da metrópole estadunidense. O que o assustava era se recordar que, pela manhã, quando acordara atrasado, Ronald tivera um pesadelo. Ele via aquela imagem, aquela mesma imagem que via pela vidraça de um dos andares daquele prédio, um tanto turva pela reprodução do subconsciente. Mas era aquela imagem mesmo, tivera certeza assim que a viu. Era um deja vu, uma reprise de um sonho catastrófico.
Desde que deixara sua casa, Ronald sabia que ia morrer.
Ainda assim, ousou contrariar o aviso de sua mente. Era apenas um sonho, não era?
Quando sua torre desabou, Ronald se arrependeu de não acreditar no que sonhava.
Não gritou.

O homem de preto continuava a caminhar.
A paisagem ao seu redor era desértica, assolada por cactos, árvores ressecadas e cadáveres de animais já em decomposição. À frente, no horizonte, nada além do calor e do solo trevoso e cicatrizado de costume. Atrás, um caminho similar, senão idêntico, àquele em que ele se encontrava no exato momento em que olhava para trás.
Ao lado, um poste de eletricidade, e sobre ele um garoto inconveniente.
—Está calor, não?
Ele não respondeu.
—Eu não gosto de calor —continuou o garoto. —O sol parece um castigo divino para todas as merdas que a humanidade já fez. É como uma prega fincada na testa de um infeliz pecador. Se todos somos pecadores, todos vão contar com a mesma prega na testa. Alguns em outros lugares, talvez, mas o sofrimento é parecido.
Silêncio.
—Acho que você deveria conversar. Ajudaria a passar o tempo infinito que você vai ficar andando por esse lugar.
O peão girou atrás do homem de preto até perder as forças e quedar, e então voejou outra vez.
—Você gosta de peões? —perguntou o velho.
—Só desse. Ele gira bem rápido, tão rápido que eu quase posso sentir o vento.
—Me empresta aqui.
O menino fez que não com a cabeça.
—Nunca, nunquinha mesmo! É um tesouro, sabe? Ele tem uma magia que só eu posso usar. É como um sonho de verdade.
—Tudo aqui é como um sonho.
—Menos os furacões. Os furacões são bem reais.
O homem franziu o cenho, sem entender.
—Vou te mostrar.
Erguendo as pernas sobre os fios de eletricidade, o garoto usou os dois braços para enrolar o barbante com agilidade sem igual e, num movimento felino, girar o peão com uma força incomparável. O brinquedo tocou o solo com a ponta metálica e girou, girou e girou, e a areia começou a se mover ao seu redor, agrupando-se acima dele. Ele girava tão rápido quanto um tufão, e logo deixou de ser um peão para se tornar um pequeno ciclone, e então um olho de furacão.
O vento cessou, sem forças, e o peão tombou ao solo mais uma vez.
—Viu?
Ele não parecia surpreso.
—Legal. Bem legal, na verdade.
—Tem muita coisa que eu posso fazer.
—Então me leve até ele.
O menino engoliu em seco.
—Isso eu não posso. Mais alguma coisa?
—Só fique quieto. Vai ajudar.
Ele se calou.
Por alguns minutos, ao menos.
—Por que quer encontrar o Sonho?
—Por que todo mundo deseja encontrá-lo?
O garoto deu de ombros.
—Satisfação pessoal? Talvez um desejo íntimo. Se for um desejo, já te aviso, ele não é um gênio ou um djinn. Ele molda a realidade, mas não adianta ficar esfregando a lâmpada. Não vai funcionar.
—Eu não quero um desejo.
O que era estranho.
—Então o que quer?
Pensou por um instante.
—Vingança.
—Vingança? Quer se vingar do Sonho? Mas o que ele te fez? O que ele fez para que a sede de vingança nascesse em seu coração gélido, homem de preto?
Ele caminhou alguns passos antes de responder.
—Ele não fez, na verdade. Meu sonho não se realizou.
—E qual era o seu sonho?
Silêncio.
—O mesmo que o dela.
As lembranças machucavam como estacas.
O vento aumentou, soprou areia para todas as direções. O calor era escaldante, mas o homem de preto não parecia se incomodar, mesmo vestido daquela maneira desconfortável e calorosa.
—Que seria?
—Cale a boca.
—Que seja.
De sobre o poste de eletricidade, o garoto girou o peão mais uma vez.
Ele rodou e rodou, então cambaleou no lugar e, sem forças, caiu.

Marcelo era um grande jogador de futebol.
Não era bonito, mas tinha sua lábia, e isso garantia sorte no amor. Talvez não no amor propriamente dito, pois o amor da atualidade se encontrar disperso nas bandeirolas de escanteio de uma boate qualquer, mas no amor do presente, aquele amor momentâneo de um beijo e um tchau. Ele tinha lábia, e também tinha dinheiro e um carro atraente, e algumas mulheres só precisam de uma dentre essas três características para se interessar por um homem.
Eram mais de meia-noite e ela ainda não estava lá. Marcelo não gostava de esperar. Ele fazia os atacantes esperarem por seus passes; mulheres não o faziam esperar. Sentado no balcão de uma casa noturna, terminou sua bebida e, quando pensou em se aventurar na pista de dança em busca de uma garota interessantemente idiota, ela chegou.
—Como vai o meu jogador favorito? —perguntou Rúbia, os cabelos tingidos de escarlate, as unhas e as sobrancelhas em diferentes tons de vermelho.
—Com fome —respondeu Marcelo, e sorriu, largando-se num beijo de falsa paixão. —Pensei que não viria.
—Eu tive contratempos, digamos assim.
—Outro cliente?
Rúbia era uma garota de programa. Uma prostitua, pode-se dizer. Vendia o corpo, ou melhor, alugava-o, como costumava dizer, para divertir homens que não possuíam a capacidade de se virar sozinhos. Ela sabia que Marcelo sabia se virar, mas Às vezes ele tinha preguiça.
Na verdade, ele gostava dela.
Muitas vezes antes, oferecera a ela dinheiro para que abandonasse aquela vida, mas você sabe como é, uma vez mosqueteiro, sempre mosqueteiro. Ninguém abandona o dinheiro que vem fácil quando se acostuma com ele. Essa é a lógica dos humanos.
—Quem dera. Minha mãe.
—O que ela tem?
—Ela tem que se ferrar, isso sim. Mas enquanto a vida não a leva, a sífilis vai denegrindo sua castidade.
Beijaram-se, entre risos e provocações, e Marcelo achou mais certo sair logo daquele lugar.
—Que tal acelerarmos o processo hoje? —sugeriu ele. —Podemos ir para um lugar mais tranquilo, sabe.
—Vai me levar para assistir um filme?
—Claro. Um pornô sobre um galanteador de coxas torneadas e uma prostituta com lábios inchados.
—Eu não tenho lábios inchados!
—Quem disse que estava falando de você?
Eles acertaram a conta e saíram da boate. Estava uma noite agradável lá fora, com uma garoa serena e uma brisa cheirando a narcóticos e vinho. Marcelo abriu a porta de sua caminhonete para que Rúbia entrasse, e ela agradeceu com uma mesura. Quando ele deu a volta no veículo para direcionar-se ao sexo oral mais categórico de São Paulo, viu as luzes.
Duas imensas e esféricas luzes, que na verdade nem eram tão imensas assim. Faróis de um Chevrolet desgovernado, acelerado demais, perdido demais, pilotado por um jovem alcoolizado e transtornado com a namorada que perdera na noite anterior.
Aqueles olhos de luz gargalhavam à frente de Marcelo, e ele engoliu em seco.
Era exatamente como o sonho que tivera todas as noites naquela semana.
Rúbia ajeitava a lingerie translúcida por sob o vestido carmim quando ocorreu o impacto. A janela ao seu lado se destruiu conforme o corpo de Marcelo era esmagado, e ela quase engoliu o batom que tinha próximo dos lábios. Ela chorou, sim, mas antes de sair do carro e gritar para a polícia, guardou a carteira do jogador dentro de seu sutiã, deixando os documentos caídos no banco de trás.

—Você sabe que ele vai te matar, não sabe?
O menino insistia. O homem mantinha-se calado.
—Não vai mesmo desistir de andar?
—Não.
O peão caiu de sua mão, sem girar. O barbante se desenrolou, sacudido ao vento como uma madeixa rebelde dos cabelos do sol, o mesmo sol esférico e nauseante que incinerava os pensamentos acima das nuvens.
—Talvez você o vença na persistência. Nunca é uma boa hora para desistir, não é? Foi o que eu ouvi por aí. Mas também ouvia as pessoas dizerem que é sempre uma boa hora para mudar de ideia, desde que a nova ideia dê mais dinheiro. Agora não sei no que acreditar.
O homem de preto bufou, silenciado.
—A sua mulher morreu?
—É. Ela morreu sim. Por que?
—Ei, calma aí, cara! Eu só estou tentando manter uma conversa agradável com você, não percebeu? Você devia me agradecer! Se estivesse andando desse jeito sem me ouvir, já estar louco.
—As chances de eu enlouquecer ouvindo você são bem maiores, moleque.
A paisagem não mudava nunca. Ainda desértica, ainda tomada por cactos e galhos ressecados, ainda coberta de areia e terra disforme. Ainda quente, muito quente, como um inferno escaldante, um caldeirão borbulhante ou uma frigideira fritando batatas.
—A Terra dos Sonhos é proibida para os mortais —contou o menino. —Se eles entram aqui, desafiam diretamente o Senhor dos Sonhos, e ele não costuma ficar feliz quando é desafiado. Ele até gosta, sabe? É divertido matar pessoas, ainda mais quando não se tem o que fazer por séculos. Mas ele nunca fica feliz ao ser desafiado.
—E aí ele manda um moleque infernal para atazanar a vida dos invasores, acertei? —explodiu o homem de preto. —Eu tô cansado de você, criança! Por que não desce desse poste pra que eu quebre logo o seu pescoço? Facilitaria bastante as coisas! Eu só queria andar aqui, na minha, ouvir o silêncio um pouco, acho que deixaria as coisas mais calmas! Tipo um tratamento psicológico, sabe? Você cala a boca, eu calo a boca, e vivemos felizes para sempre. Topa?
O barbante escapou das mãos do menino, deslizando junto do vento para bem longe do homem de preto. Ele voejou, voejou e desapareceu no horizonte atrás dele, reaparecendo na parte da frente, como se trespassasse o mundo todo em um único instante.
—Viu só? —disse o menino, ignorando a fúria iminente do homem de preto. —Eu disse que você cansaria de andar e não chegaria a lugar nenhum.
Num movimento rápido demais para ser visto, o homem tirou do cinto uma pistola velha. Uma garrucha, na verdade, coberta de pólvora e de ferrugem. Ele a carregou com uma das mãos e, sem fazer mira, disparou na direção do garoto, atingindo sua testa, que sangrou num orifício assustador.
—Eu pretendia guardas as munições para o Senhor dos Sonhos, insolente, mas eu não aguentava mais a sua voz irritante.
Caminhando, o homem de preto pisoteou o corpo do garoto, que jazia inerte no chão, sobre uma poça de sangue. Ele continuou a caminhar, sem olhar para trás, e uma hora se passou sem que o corpo do menino desaparecesse naquele rumo improvável.
—Ei —disse ele, já morto.
—Você morreu, merda. Será que nem assim pode ficar quieto?
O garoto se levantou e limpou as roupas. Pegou do chão o seu peão e o barbante. Enrolou-os.
—Eu juro que, enquanto brincava, tentei te avisar —disse ele.
—Do que está falando?
O ferimento em sua testa se fechou, e uma língua asquerosa cuspiu a munição no asfalto fumegante.
—Eu não gosto de ser desafiado.

Ikari estava se sentindo azarado demais.
Em uma semana de ensino médio, quebrara um pé, perdera o celular e ainda conseguiu ficar com a pior nota de sua classe toda. Isso, para os pais japoneses, era uma vergonha sem tamanho, e ele aguardava sua recuperação em casa deitado, com o pé enfaixado sobre a cama, jogando seu eletrônico portátil ao invés de estudar. Diferente dos demais estudantes que o acompanhavam, Ikari não se incomodava com qual universidade o aceitaria. Qualquer coisa estava bom. Na verdade, se não fosse aceito, seria ainda melhor.
Ikari gostava dos jogos.
Desde pequeno se apaixonara pelos jogos eletrônicos. Perdeu vidas e mais vidas nas fases aquáticas de seus games favoritos, desbravou masmorras nas histórias medievais e enfrentou presidentes mesquinhos em roteiros mais modernos, viajou por multiversos infinitos na ficção científica. Só esqueceu que, além de tudo isso, havia uma vida para ser vivida. Ele tinha de estudar, tinha de ser alguém. E, se tinha que ser alguém, queria ser um programador.
Afinal, para um apaixonado por tecnologia, nada melhor do que produzir o que ele mais gostava de ter em mãos.
Estudou sozinho, e aquele era seu fascínio. O vício garantiu que ele usasse óculos aos onze anos e tivesse dores de cabeça constantes durante todo o ensino fundamental, mas ele suportou tudo isso, bem como o bullying dos valentões das escolas que frequentou, para que pudesse ser alguém na vida.
Agora, perto de concluir o ensino médio, Ikari ainda não era ninguém, e não tinha tanta certeza se, algum dia, seria.
Ele não dormira bem na noite anterior. Na realidade, não dormia bem durante a semana toda em que o azar lhe perseguia. Os pesadelos atrapalhavam seu sono sempre que ele precisava descansar, e já era um costume acordar suando frio com sonhos terríveis. Não eram sonhos de um adolescente comum, em que ele se vê sozinho, perdendo a família num acidente de carro ou coisa assim.
Eram sonhos em que ele morria, e não havia nada pior do que isso para Ikari.
Seus pais estavam trabalhando quando começou. Ele estava quase conseguindo um novo recorde naquela música que exigia de si uma concentração abusiva quando um dos livros de sua prateleira de Como Desenvolver Seu Próprio Jogo caiu, a capa para cima, deixando a gravura ilustrativa de um teclado e uma xícara de café à mostra. Ikari estranhou, mas não havia demais. Depois de tantos filmes de fantasmas e aberrações, um livro caindo não era nada de assustador.
Mas então caíram outros dois, e logo mais cinco, e então a prateleira toda desabou sobre sua cama.
Era um terremoto.
Ikari queria gritar. Queria chorar, clamar por sua vida, exigir dos deuses uma nova chance, mas nada fez. Ele ainda tinha o pé quebrado, e sua muleta ficara no térreo da casa, muito longe do alcance de seus braços. Ele não aceitou a morte assim, tão fácil, mas também não fez nada para evitá-la. No fundo, sabia que ela viria, ainda que não acreditasse em vislumbres.
Os sonhos o avisaram, mas ele fingiu não ver.
A casa oscilou, coberta por rachaduras, quase desistindo de se manter em pé. Ikari fechou os olhos logo após terminar sua música favorita daquele jogo. Não conseguira um novo recorde, o que era uma pena.
Antes da casa toda ruir, Ikari achou que tinha azar demais para uma única pessoa.
Na verdade, achava que era azar demais para uma vida só.

O homem de preto disparou outras cinco vezes, descarregando sua garrucha.
O Senhor dos Sonhos apenas sorria.
—Eu sempre me interesso pelos homens, sabia? —contou ele, caminhando com o sangue a escorrer dos braços e do rosto. —Eles não têm poderes, mas têm virtudes muito maiores. Por exemplo: eles podem adquirir conhecimento sobre quase qualquer coisa. Inclusive sobre outros planos, veja só! Você veio atrás da Terra dos Sonhos, e cá está, pisando nela. Não é incrível?
O homem de preto arremessou seu revólver na direção do garoto, mas ele o atravessou, como faria a um espectro ou a uma projeção holográfica.
—Eu só queria que a minha mulher sobrevivesse, seu monstro! —gritava o homem de preto. —Ela tinha um sonho... Todas as noites, toda merda de noite ela sonhava com um velho que lhe oferecia uma nova chance. Ela aceitava, dizia que queria continuar, que queria tentar outra vez. Então ele... Então você ofereceu um acordo para ela. Você pediu a nossa filha, a nossa linda filha, e ela aceitou! Eu aceitei! Queria ficar do lado dela, mais do que tudo! Mas quando a nossa filha se foi, a minha mulher morreu, e junto dela todos os sonhos se foram.
Ele respirou fundo. Lágrimas corriam por suas bochechas imundas.
—Você nos enganou —disse, por fim, e havia um rancor obscuro em seus olhos.
—Eu nunca enganei ninguém, meu jovem. Eu pedi a filha de vocês para que ela tivesse uma nova chance, e ela teve. Um novo dia nasceu, e ela poderia sobreviver. —Uma moeda surgiu em sua mão, sem brilho algum. Não parecia com uma moeda de qualquer região que o homem de preto conhecera. —Ela dependeu da sorte. Cara ou coroa. —Ele jogou a moeda para cima, girando, então a agarrou outra vez com as mãos. —Infelizmente, não deu certo. Olhe só! Essa moeda tem duas caras.
—Seu filho da mãe!
O homem de preto avançou sobre o Senhor dos Sonhos, e aquele crime era o pior de todos. Ele caiu, acorrentado nos braços e nas pernas, e foi arrastado no deserto por mais de cinquenta metros. Preso, foi suspenso nas alturas pela mágica do Sonho, e o Senhor dos Sonhos o observou, incrédulo.
—Eu gostei tanto da sua determinação, pequenino —disse ele. —Quase cogitei a possibilidade de que se juntasse a mim. Aliás, para ser sincero, ainda a cogito. Mas não agora. Não ainda.
—Eu nunca me juntaria a você, maldito!
A boca que praguejava era a mesma boca que vomitava sangue.
—Óbvio que não. Você ainda não conhece a morte, e é ela que eu vou lhe apresentar. Vai conhecê-la muitas vezes, até que se torne tão íntimo da morte quanto da loucura. Assim, quando engolir cada fagulha de seus atos medíocres, você vai voltar. Rastejando. E vai me pedir ajuda. Vai me pedir perdão.
O Senhor dos Sonhos caminhou até o homem de preto. Em suas mãos, surgiu um miúdo punhal curvilíneo, de prata fosca.
—A primeira de suas mortes virá por minhas mãos, mortal —alertou o Senhor dos Sonhos. —E você vai sonhar com ela. Vai ter pesadelos com todas as suas mortes. E isso vai doer mais do que morrer.
Assim, quando as palavras do Senhor dos Sonhos terminaram, o homem de preto se viu morrer. Ele era apunhalado na altura do peito, e seu corpo era aberto como uma casca de banana, igualmente frágil, igualmente dispensável. Abriu os olhos, suava frio.
Encontrou os olhos do Senhor dos Sonhos, e nele não havia piedade alguma.
O punhal trespassou sua carne, e ele foi partido ao meio.
A dor da morte era grande, mas não tão grande quanto a dor do pesadelo que a antecedia. Não era nada se comparada à dor de existir sabendo que a morte é seu destino, sua sina, seu castigo, todas as vezes, todas as vidas.

Marcos sonhou com uma corda pendurada numa árvore, e lá estava seu corpo, enforcado.
Acordou assustado, trêmulo. As pernas se recusavam a obedecê-lo. Levantou-se com dificuldade, tomou um gole de água fria. Ainda era madrugada quando ele olhou para o relógio da sala e viu, além das horas que procurava, a fotografia da esposa assassinada na noite anterior.
Aquele dia lhe pareceu extremamente agradável para morrer.

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