sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Conto - Insuficiente


Insuficiente

Ali, sentado na cadeira de balanço, o velho pensava em sua vida.
A aliança de seu casamento ainda estava no dedo anelar esquerdo, ainda que não mais houvesse o que simbolizar. Tantos anos se passaram desde aquele fatídico dia em que sua esposa falecera, deixando para trás um vazio que refeição alguma há de preencher. Ela pensara nela durante alguns dias, mas logo resolveu aceitar. Já estava velho demais para ficar pensando, de qualquer modo.
Agora, no entanto, sentia um medo peculiar, uma sensação que era incapaz de explicar.
Lembrava-se da juventude, de quando ainda podia correr e saltar, e correra e saltara para chamar a atenção daquela garota de olhos verdes e pele macia, ao menos na época. Ela sorrira amigavelmente, mas era apenas isso: uma amiga. Simpática, linda, apaixonante, mas somente uma amiga, e o tempo custaria a retirar o temor da aproximação.
De ambos, claro. Ela também pensava nele, também achava seu sorriso bonito, também sentia um calor exótico ao se aproximar. Obviamente, como todas as garotas têm de ser, ela nada disse, mantendo-se no canto, e ele, de lentidão exemplar para esse tipo de assunto, sequer percebeu que ela também se apaixonava.
Na cadeira de balanço, escorado sobre os braços frágeis e as pernas enrugadas, ele pensava que as coisas poderiam ter sido diferentes.
Olhando para o verde que cercava sua casa de campo, local que escolhera para terminar seus dias, para aceitar a morte que logo lhe acolheria, ele se lembrava daquela linda mulher pela qual se apaixonara. Ela sempre fora agitada, ainda que tímida; fazia tudo pelos outros e nada por si mesma. Ele tentava impressioná-la agindo assim, e logo se deu conta de que era bom agir pelos outros, mas que o egoísmo de se preocupar com o próprio nariz também tinha sua importância. Ao lado daquela mulher, no entanto, ele perdeu todo o egocentrismo. Esqueceu-se de si mesmo, ao fim, deixou-se largado. Ela cuidava dele, é claro, mas ele não. Ele só tinha olhos para ela, todos os seus pensamentos eram voltados a ela, todas as suas atitudes eram focadas naquela garota, naquela mulher.
Às vezes ela sorria, e ele se sentia o melhor homem do mundo.
Às vezes ela chorava, e ele baixava os olhos, respirava fundo e tentava, tentava mesmo, mas não conseguia conter as lágrimas que lhe feriam os olhos.
Fora o culpado por aquelas lágrimas algumas das vezes, sim, tinha de admitir. Não gostava dessa ideia. Achava-se o pior homem do mundo, achava-se o carrasco da guilhotina. Ela tinha tantos problemas, tinha tantos afazeres, preocupações e assuntos delicadíssimos para lidar; fora isso, ele lhe fazia chorar dia ou outro, e aquela visão era uma tortura sem igual. Ele sempre se desculpava, sempre assumia seus erros, mas palavras não eram o suficiente. Ele se desculpava com atitudes, confortava com abraços e beijos, mas talvez aquilo também não fosse o suficiente.
Talvez ele próprio não fosse o suficiente.
Ela o fazia feliz, e ele também fazia o mesmo por ela. Diversas das lembranças lhe corriam a mente, mostravam-na gargalhando em praças públicas, brincando em lojas de cosméticos, sorrindo em shoppings e parques de diversões. Memórias das tardes em que se divertiram sozinhos, dos passeios e das viagens, da vida de sorrisos que tiveram lado a lado, havia muito para assistir naquela mente velha e cansada. Coisas boas, é, coisas ótimas na verdade. Ele sorria por lembrar, mas e então?
Eram memórias, nada mais.
Memórias que ficaram para trás, junto dos sorrisos e das alegrias.
Agora, ao fim de tudo, ele estava sozinho, e sentia-se mal. Sentia-se mal por tê-la feito feliz, mas não tão feliz quanto ela merecia. Quanto ele achava que ela merecia, ao menos. Talvez ele tenha sido um bom homem e estivesse se preocupando a toa, ao invés de se preocupar com o singelo balanço daquele assento de madeira, ao invés de admirar aquela paisagem tradicional das fazendas mais afastadas da civilização. Talvez ele tenha sido uma boa pessoa, mas isso não bastava.
Ele queria ser a melhor pessoa, a pessoa perfeita.
Esquecia-se do fato de que a perfeição inexiste.
Os erros estão presentes em todos os acertos. Não era diferente com ele. Não seria diferente com ninguém. Assim, lembrava-se de palavras errôneas, de respostas que não deveria proferir, de intrigas que causara sem necessidade. Erros, todos erros, todos seus. Ela também errava, como todo mundo há de errar um dia, mas ele não se incomodava. Chateava-se às vezes, sim, ninguém é de ferro, mas estava sempre sorridente, e um simples minuto ao lado dela era o suficiente para curar qualquer ferida.
Ele crescera nos números, mas não na mente, e ainda resolvia as coisas como uma criança, deixando para trás problemas de um instante anterior em troca de cócegas e brincadeiras. Era infantil, mas nada faria para mudar tal personalidade, afinal, isso era ele. Ela também brincava, mas ela estava ferida. Tivera histórias ruins, histórias péssimas, exemplos negativos demais. Por fora era uma mulher de postura, de personalidade forte e marcante, de olhos firmes e decididos; por dentro, uma boneca de porcelana, frágil e delicada como elas têm de ser, sem que suportasse uma única queda.
Então, quando ela errava, ele mal percebia. Chorava sim, e ai daquele que ousar incitar o machismo de que homens não choram. Ele chorava por seus erros, chorava junto dela. Muitas vezes a acompanhou na lamúria, ouviu seu pranto e compartilhou. Muitas vezes, porém, ouviu-a chorar sozinha, por seus erros ou por erros dela mesma, e isso era uma faca em seu coração, uma dor tão aguda que parecia capaz de levá-lo dali, de tirá-lo da vida. Ele ouvia aquele pranto como quem ouve uma marcha fúnebre, e jurava para si mesmo que faria diferente, que a impediria de chorar outra vez, que seria melhor, que seria o melhor, mas não era. Não por falta de tentativa, mas pela impossibilidade de ser melhor do que os homens são. Ele era um pouco diferente, mas ainda tinha dois braços, duas pernas, dois olhos e dois lados.
Ali, sentado na cadeira de balanço, um velho chorou por erros antigos.
Ele escutava a voz da mulher que amou, daquela princesa que o acompanhou até a mais alta torre, daquela rainha que o mostrou um novo caminho. Junto do ranger da madeira surrada, ele ouvia o canto dela, mas ela não estava ali. Ao seu lado, apenas uma cadeira vazia, velha e maltrapilha; sobre esta, ninguém. Não naquele momento, não mais em momento algum. Estava sozinho, estaria assim para sempre.
Sentia falta daquele sorriso, daqueles beijos e abraços.
Sentia falta de ser mais.
Talvez ele não tenha sido o melhor que podia ser. Tentara, na medida do possível. Fizera o seu melhor para ser o melhor. Quem era ele para julgar, no entanto? Ela não estava mais ali para respondê-lo. Ela não estava mais junto dele. Partira em seus braços, com um sorriso no rosto.
Esperava por ele, quando o fim tivesse de chegar.
Ali, sentado na cadeira de balanço, o velho enxugou suas lágrimas e assistiu ao pôr-do-sol. Fizera muito disso ao lado dela; agora, sozinho. Era uma linda vista, mas não o suficiente. O ar perfumado da natureza era admirável, mas não o suficiente. A companhia das flores, dos pássaros e da vida era dotada de um amor incomensurável, mas ainda assim, não era o suficiente.
Ele também tivera um amor incomensurável, um dia. O tinha até aquele instante, na verdade, e para sempre o teria. Sabia que errara, que ambos erraram, mas ambos erraram se amando até o fim. E, por mais que o medo da insuficiência lhe torturasse a alma, junto àquela pôr-do-sol, uma única certeza o aturdia: a vida que tivera fora perfeita, perfeitamente bela, perfeitamente suficiente, e nada extinguiria de seus pensamentos todos os momentos de felicidade que lhe foram proporcionados.
Afinal, não tem de ser suficiente ou insuficiente, mas tem de ser, e fim.

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