Insuficiente
Ali, sentado na cadeira de balanço, o
velho pensava em sua vida.
A aliança de seu casamento ainda estava
no dedo anelar esquerdo, ainda que não mais houvesse o que simbolizar. Tantos
anos se passaram desde aquele fatídico dia em que sua esposa falecera, deixando
para trás um vazio que refeição alguma há de preencher. Ela pensara nela
durante alguns dias, mas logo resolveu aceitar. Já estava velho demais para
ficar pensando, de qualquer modo.
Agora, no entanto, sentia um medo
peculiar, uma sensação que era incapaz de explicar.
Lembrava-se da juventude, de quando ainda
podia correr e saltar, e correra e saltara para chamar a atenção daquela garota
de olhos verdes e pele macia, ao menos na época. Ela sorrira amigavelmente, mas
era apenas isso: uma amiga. Simpática, linda, apaixonante, mas somente uma amiga,
e o tempo custaria a retirar o temor da aproximação.
De ambos, claro. Ela também pensava nele,
também achava seu sorriso bonito, também sentia um calor exótico ao se
aproximar. Obviamente, como todas as garotas têm de ser, ela nada disse,
mantendo-se no canto, e ele, de lentidão exemplar para esse tipo de assunto,
sequer percebeu que ela também se apaixonava.
Na cadeira de balanço, escorado sobre os
braços frágeis e as pernas enrugadas, ele pensava que as coisas poderiam ter
sido diferentes.
Olhando para o verde que cercava sua casa
de campo, local que escolhera para terminar seus dias, para aceitar a morte que
logo lhe acolheria, ele se lembrava daquela linda mulher pela qual se
apaixonara. Ela sempre fora agitada, ainda que tímida; fazia tudo pelos outros
e nada por si mesma. Ele tentava impressioná-la agindo assim, e logo se deu
conta de que era bom agir pelos outros, mas que o egoísmo de se preocupar com o
próprio nariz também tinha sua importância. Ao lado daquela mulher, no entanto,
ele perdeu todo o egocentrismo. Esqueceu-se de si mesmo, ao fim, deixou-se
largado. Ela cuidava dele, é claro, mas ele não. Ele só tinha olhos para ela, todos
os seus pensamentos eram voltados a ela, todas as suas atitudes eram focadas
naquela garota, naquela mulher.
Às vezes ela sorria, e ele se sentia o
melhor homem do mundo.
Às vezes ela chorava, e ele baixava os
olhos, respirava fundo e tentava, tentava mesmo, mas não conseguia conter as
lágrimas que lhe feriam os olhos.
Fora o culpado por aquelas lágrimas
algumas das vezes, sim, tinha de admitir. Não gostava dessa ideia. Achava-se o
pior homem do mundo, achava-se o carrasco da guilhotina. Ela tinha tantos
problemas, tinha tantos afazeres, preocupações e assuntos delicadíssimos para
lidar; fora isso, ele lhe fazia chorar dia ou outro, e aquela visão era uma
tortura sem igual. Ele sempre se desculpava, sempre assumia seus erros, mas
palavras não eram o suficiente. Ele se desculpava com atitudes, confortava com
abraços e beijos, mas talvez aquilo também não fosse o suficiente.
Talvez ele próprio não fosse o
suficiente.
Ela o fazia feliz, e ele também fazia o
mesmo por ela. Diversas das lembranças lhe corriam a mente, mostravam-na gargalhando
em praças públicas, brincando em lojas de cosméticos, sorrindo em shoppings e
parques de diversões. Memórias das tardes em que se divertiram sozinhos, dos
passeios e das viagens, da vida de sorrisos que tiveram lado a lado, havia muito
para assistir naquela mente velha e cansada. Coisas boas, é, coisas ótimas na
verdade. Ele sorria por lembrar, mas e então?
Eram memórias, nada mais.
Memórias que ficaram para trás, junto dos
sorrisos e das alegrias.
Agora, ao fim de tudo, ele estava
sozinho, e sentia-se mal. Sentia-se mal por tê-la feito feliz, mas não tão
feliz quanto ela merecia. Quanto ele achava que ela merecia, ao menos. Talvez
ele tenha sido um bom homem e estivesse se preocupando a toa, ao invés de se
preocupar com o singelo balanço daquele assento de madeira, ao invés de admirar
aquela paisagem tradicional das fazendas mais afastadas da civilização. Talvez
ele tenha sido uma boa pessoa, mas isso não bastava.
Ele queria ser a melhor pessoa, a pessoa
perfeita.
Esquecia-se do fato de que a perfeição
inexiste.
Os erros estão presentes em todos os
acertos. Não era diferente com ele. Não seria diferente com ninguém. Assim,
lembrava-se de palavras errôneas, de respostas que não deveria proferir, de
intrigas que causara sem necessidade. Erros, todos erros, todos seus. Ela
também errava, como todo mundo há de errar um dia, mas ele não se incomodava.
Chateava-se às vezes, sim, ninguém é de ferro, mas estava sempre sorridente, e
um simples minuto ao lado dela era o suficiente para curar qualquer ferida.
Ele crescera nos números, mas não na
mente, e ainda resolvia as coisas como uma criança, deixando para trás
problemas de um instante anterior em troca de cócegas e brincadeiras. Era
infantil, mas nada faria para mudar tal personalidade, afinal, isso era ele.
Ela também brincava, mas ela estava ferida. Tivera histórias ruins, histórias
péssimas, exemplos negativos demais. Por fora era uma mulher de postura, de
personalidade forte e marcante, de olhos firmes e decididos; por dentro, uma boneca
de porcelana, frágil e delicada como elas têm de ser, sem que suportasse uma
única queda.
Então, quando ela errava, ele mal
percebia. Chorava sim, e ai daquele que ousar incitar o machismo de que homens
não choram. Ele chorava por seus erros, chorava junto dela. Muitas vezes a
acompanhou na lamúria, ouviu seu pranto e compartilhou. Muitas vezes, porém,
ouviu-a chorar sozinha, por seus erros ou por erros dela mesma, e isso era uma
faca em seu coração, uma dor tão aguda que parecia capaz de levá-lo dali, de
tirá-lo da vida. Ele ouvia aquele pranto como quem ouve uma marcha fúnebre, e
jurava para si mesmo que faria diferente, que a impediria de chorar outra vez,
que seria melhor, que seria o melhor, mas não era. Não por falta de tentativa,
mas pela impossibilidade de ser melhor do que os homens são. Ele era um pouco
diferente, mas ainda tinha dois braços, duas pernas, dois olhos e dois lados.
Ali, sentado na cadeira de balanço, um
velho chorou por erros antigos.
Ele escutava a voz da mulher que amou,
daquela princesa que o acompanhou até a mais alta torre, daquela rainha que o
mostrou um novo caminho. Junto do ranger da madeira surrada, ele ouvia o canto
dela, mas ela não estava ali. Ao seu lado, apenas uma cadeira vazia, velha e
maltrapilha; sobre esta, ninguém. Não naquele momento, não mais em momento
algum. Estava sozinho, estaria assim para sempre.
Sentia falta daquele sorriso, daqueles
beijos e abraços.
Sentia falta de ser mais.
Talvez ele não tenha sido o melhor que
podia ser. Tentara, na medida do possível. Fizera o seu melhor para ser o
melhor. Quem era ele para julgar, no entanto? Ela não estava mais ali para respondê-lo.
Ela não estava mais junto dele. Partira em seus braços, com um sorriso no
rosto.
Esperava por ele, quando o fim tivesse de
chegar.
Ali, sentado na cadeira de balanço, o
velho enxugou suas lágrimas e assistiu ao pôr-do-sol. Fizera muito disso ao
lado dela; agora, sozinho. Era uma linda vista, mas não o suficiente. O ar
perfumado da natureza era admirável, mas não o suficiente. A companhia das
flores, dos pássaros e da vida era dotada de um amor incomensurável, mas ainda
assim, não era o suficiente.
Ele também tivera um amor incomensurável,
um dia. O tinha até aquele instante, na verdade, e para sempre o teria. Sabia
que errara, que ambos erraram, mas ambos erraram se amando até o fim. E, por
mais que o medo da insuficiência lhe torturasse a alma, junto àquela
pôr-do-sol, uma única certeza o aturdia: a vida que tivera fora perfeita,
perfeitamente bela, perfeitamente suficiente, e nada extinguiria de seus
pensamentos todos os momentos de felicidade que lhe foram proporcionados.
Afinal, não tem de ser suficiente ou
insuficiente, mas tem de ser, e fim.
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