sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Conto - Chuva e Lágrimas


Chuva e Lágrimas

—Ela está morta.
Sim. Eu sabia. Eu estava no velório dela, em frente ao seu caixão selado. Era óbvio que ela estava morta. Eu ainda a amava. Eu ainda era apaixonado por ela. Ainda sentia o gosto dos seus beijos na boca.
—Eu sei —foi o que consegui responder, e a pessoa se afastou. Até hoje não sei quem era.
—Papai.
A última voz que eu desejava ouvir naquele momento.
—Sim, minha filha.
Minhas lágrimas eram como cachoeira. Aquela voz, ao crescer, tornar-se-ia idêntica à dela. Eu me recordaria das músicas que ela cantava para nossa filha dormir. Eu me recordaria dos poemas que ela entoava para que eu dormisse.
—A mamãe vai voltar?
Como mentir para as crianças? Ela me focava num olhar sincero, esperançoso, ingênuo e infantil. Focava-me num olhar de filha para pai, de criança para adulto. E o que eu fiz?, você se pergunta. Eu fiz o que todos adultos fazem.
Eu menti.
—Talvez ela volte. Ainda há tempo.
—Tempo para quê?
—Tempo para passar. O relógio sempre gira.
Mas o tempo ia correr, sem parar, e ela não voltaria. Eu sabia. Todos sabiam, menos a minha filha, e isso me deixou feliz por algum tempo.
Ela me encarou, minutos se tornaram horas. Depois me abraçou, ronronando uma carícia na altura de minhas pernas, alcançando num esforço o meu torso elevado. Era dócil, amigável, amável e linda com seus cachos robustos. Era um anjo, como antes sua mãe fora.
Era uma herdeira de sua beleza, e uma herança de sua bondade.
E eu era um tolo apaixonado por um cadáver.
—Vai ficar tudo bem, papai. Você aguenta a saudade.
Por quanto tempo?
Eu quase perguntei isso.
Minha filha se afastou, foi brincar com outras crianças, sorrindo num clima hostil de quem vela um corpo. Eu fiquei ali, inerte, sem forças para respirar, sem vontade de tragar qualquer resquício de oxigênio. Eu queria me deitar ao lado dela, pedir para que selassem o caixão sobre nossos corpos unidos, sentir mais uma vez aquele calor do seu corpo, mas sabia que, naquele momento, calor algum jazia na pele mórbida de minha esposa.
—Dizem que precisamos chorar, às vezes.
A voz não me assustou. Nada mais me assustaria, pensei. Voltei-me para minha mãe, cujos olhos estavam inchados pela tristeza, e baixei a faceta numa mesura desanimada.
—Chorar não resolve nada.
—Mas limpa a alma.
—E que alma há para se limpar aqui? Isso não é sujeira, mãe. Isso é dor.
Ela franziu o cenho.
—Você tem de superar, meu filho.
—Eu sou um quarentão de emprego incerto, cabelos grisalhos e uma filha para cuidar. Solteiro. Viúvo, na verdade. Superação não é o meu forte.
Ela se calou por algum tempo.
Um pingo de chuva caiu em minha testa.
—Vamos. Vai começar a chover. Vamos esperar pelo enterro em algum lugar coberto e —
—Eu não vou sair daqui, mãe.
Aquelas palavras a pegaram de surpresa.
—Como assim?
—É a minha última homenagem. Eu a amei por tanto tempo. Alguns minutos na chuva não vão me matar. Infelizmente.
Minha mãe assentiu, mas não concordava. Afastou-se, agarrou o braço de minha e a levou embora, e assim todos o fizeram.
Menos eu.
Eu fiquei ali. Queria ficar para sempre, na verdade. O caixão estava selado, e eu não mais podia ver seu rosto. Nunca mais poderia, e sabia disso. Meus olhos doíam, minha cabeça doía.
A chuva começava a cair, preguiçosa.
—O tempo passa mesmo, não é?
Percebi que falava sozinho, mas não me importei.
—O tempo passou de vez. E ele não vai voltar. Eu sei que não.
Água, de cima para baixo, do céu para a terra.
A chuva piorava, mas não me assustei.
—Você se lembra de quando eu te pedi em casamento?
Ela se lembraria, sim, caso estivesse viva.
Mas não estava.
A garoa tornou-se uma tempestade, com ventos e relâmpagos e um sofrimento estampado nos meus olhos.
—Eu me lembro bem, como se fosse ontem.
Mas não era ontem. Não era hoje, não seria amanhã.
Era passado.
—Eu amo você. Eu amei... eu vou amar para sempre... eu vou...
Os olhos marejaram, mas eu insisti em me assegurar de que era somente a chuva encharcando meu rosto, lavando meu corpo e minha mente, estuporando meus pensamentos com sua temperatura gélida e assombrosa.
Eu tentei falar mais alguma coisa por vezes, mas a voz falhou. Então não disse nada. Fiquei ali, em silêncio, fingindo chorar, fingindo estar calmo. Lágrimas desabaram, mas para mim, eram apenas chuva, uma chuva fina e congelante.
Foi quando eu a vi.
Perto das árvores, escorada num tronco, ela me olhava como sempre me olhou, com os mesmos olhos claros que me deixaram loucamente apaixonado na primeira vez que a vi. Ela estava ali, mas não estava, e eu sabia. Ela estava morta. Estava em outro lugar, distante, perto do descanso merecido. Mas eu a via e, para minha surpresa, enquanto eu chorava, ela sorria.
Pisquei, e só então ela desapareceu.
Foi então que eu percebi a verdade, e desabei num choro compulsivo.
Eu precisava chorar. Precisava aliviar, deixar tudo aquilo sair, correr livre pelos meus olhos, escapar da minha cabeça que estava prestes a explodir. Eu chorei, gritei, ajoelhei-me diante da imagem que a representava e supliquei, mesmo sabendo que súplica alguma resolveria alguma coisa, mas tinha de ser feito, então o fiz. Gritei, chorei, e a chuva não mais deslizava em meu rosto, pois não havia espaço para nada além do choro, para nada além das lágrimas, e ali fiquei por tempos, por horas, até que meu peito parasse de doer, até que meu ar voltasse a circular.
O velório terminou, então o enterro, e logo os dias voltaram à rotina. Uma rotina diferente, claro. Uma rotina sem ela.
Eu aprendi a levar. Aprendi a cuidar da minha filha, a amá-la como amei sua mãe, ainda mais. Aprendi a conviver com a solidão, a chorar no escuro quando tinha vontade. Aprendi que chorar não é coisa de mulheres, também, que homens também choram, que chorar revigora o espírito, coloca as coisas no lugar.
Acima de tudo isso, aprendi que a chuva disfarça as lágrimas, mas não faz a tristeza passar.

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