Chuva
e Lágrimas
—Ela está morta.
Sim. Eu sabia. Eu estava no velório dela,
em frente ao seu caixão selado. Era óbvio que ela estava morta. Eu ainda a
amava. Eu ainda era apaixonado por ela. Ainda sentia o gosto dos seus beijos na
boca.
—Eu sei —foi o que consegui responder, e
a pessoa se afastou. Até hoje não sei quem era.
—Papai.
A última voz que eu desejava ouvir
naquele momento.
—Sim, minha filha.
Minhas lágrimas eram como cachoeira.
Aquela voz, ao crescer, tornar-se-ia idêntica à dela. Eu me recordaria das
músicas que ela cantava para nossa filha dormir. Eu me recordaria dos poemas
que ela entoava para que eu dormisse.
—A mamãe vai voltar?
Como mentir para as crianças? Ela me
focava num olhar sincero, esperançoso, ingênuo e infantil. Focava-me num olhar
de filha para pai, de criança para adulto. E o que eu fiz?, você se pergunta.
Eu fiz o que todos adultos fazem.
Eu menti.
—Talvez ela volte. Ainda há tempo.
—Tempo para quê?
—Tempo para passar. O relógio sempre
gira.
Mas o tempo ia correr, sem parar, e ela
não voltaria. Eu sabia. Todos sabiam, menos a minha filha, e isso me deixou
feliz por algum tempo.
Ela me encarou, minutos se tornaram
horas. Depois me abraçou, ronronando uma carícia na altura de minhas pernas,
alcançando num esforço o meu torso elevado. Era dócil, amigável, amável e linda
com seus cachos robustos. Era um anjo, como antes sua mãe fora.
Era uma herdeira de sua beleza, e uma
herança de sua bondade.
E eu era um tolo apaixonado por um
cadáver.
—Vai ficar tudo bem, papai. Você aguenta
a saudade.
Por quanto tempo?
Eu quase perguntei isso.
Minha filha se afastou, foi brincar com
outras crianças, sorrindo num clima hostil de quem vela um corpo. Eu fiquei
ali, inerte, sem forças para respirar, sem vontade de tragar qualquer resquício
de oxigênio. Eu queria me deitar ao lado dela, pedir para que selassem o caixão
sobre nossos corpos unidos, sentir mais uma vez aquele calor do seu corpo, mas
sabia que, naquele momento, calor algum jazia na pele mórbida de minha esposa.
—Dizem que precisamos chorar, às vezes.
A voz não me assustou. Nada mais me
assustaria, pensei. Voltei-me para minha mãe, cujos olhos estavam inchados pela
tristeza, e baixei a faceta numa mesura desanimada.
—Chorar não resolve nada.
—Mas limpa a alma.
—E que alma há para se limpar aqui? Isso
não é sujeira, mãe. Isso é dor.
Ela franziu o cenho.
—Você tem de superar, meu filho.
—Eu sou um quarentão de emprego incerto,
cabelos grisalhos e uma filha para cuidar. Solteiro. Viúvo, na verdade. Superação
não é o meu forte.
Ela se calou por algum tempo.
Um pingo de chuva caiu em minha testa.
—Vamos. Vai começar a chover. Vamos
esperar pelo enterro em algum lugar coberto e —
—Eu não vou sair daqui, mãe.
Aquelas palavras a pegaram de surpresa.
—Como assim?
—É a minha última homenagem. Eu a amei
por tanto tempo. Alguns minutos na chuva não vão me matar. Infelizmente.
Minha mãe assentiu, mas não concordava.
Afastou-se, agarrou o braço de minha e a levou embora, e assim todos o fizeram.
Menos eu.
Eu fiquei ali. Queria ficar para sempre,
na verdade. O caixão estava selado, e eu não mais podia ver seu rosto. Nunca
mais poderia, e sabia disso. Meus olhos doíam, minha cabeça doía.
A chuva começava a cair, preguiçosa.
—O tempo passa mesmo, não é?
Percebi que falava sozinho, mas não me
importei.
—O tempo passou de vez. E ele não vai
voltar. Eu sei que não.
Água, de cima para baixo, do céu para a
terra.
A chuva piorava, mas não me assustei.
—Você se lembra de quando eu te pedi em
casamento?
Ela se lembraria, sim, caso estivesse
viva.
Mas não estava.
A garoa tornou-se uma tempestade, com
ventos e relâmpagos e um sofrimento estampado nos meus olhos.
—Eu me lembro bem, como se fosse ontem.
Mas não era ontem. Não era hoje, não
seria amanhã.
Era passado.
—Eu amo você. Eu amei... eu vou amar para
sempre... eu vou...
Os olhos marejaram, mas eu insisti em me
assegurar de que era somente a chuva encharcando meu rosto, lavando meu corpo e
minha mente, estuporando meus pensamentos com sua temperatura gélida e
assombrosa.
Eu tentei falar mais alguma coisa por vezes,
mas a voz falhou. Então não disse nada. Fiquei ali, em silêncio, fingindo
chorar, fingindo estar calmo. Lágrimas desabaram, mas para mim, eram apenas
chuva, uma chuva fina e congelante.
Foi quando eu a vi.
Perto das árvores, escorada num tronco,
ela me olhava como sempre me olhou, com os mesmos olhos claros que me deixaram
loucamente apaixonado na primeira vez que a vi. Ela estava ali, mas não estava,
e eu sabia. Ela estava morta. Estava em outro lugar, distante, perto do descanso
merecido. Mas eu a via e, para minha surpresa, enquanto eu chorava, ela sorria.
Pisquei, e só então ela desapareceu.
Foi então que eu percebi a verdade, e
desabei num choro compulsivo.
Eu precisava chorar. Precisava aliviar,
deixar tudo aquilo sair, correr livre pelos meus olhos, escapar da minha cabeça
que estava prestes a explodir. Eu chorei, gritei, ajoelhei-me diante da imagem
que a representava e supliquei, mesmo sabendo que súplica alguma resolveria
alguma coisa, mas tinha de ser feito, então o fiz. Gritei, chorei, e a chuva
não mais deslizava em meu rosto, pois não havia espaço para nada além do choro,
para nada além das lágrimas, e ali fiquei por tempos, por horas, até que meu
peito parasse de doer, até que meu ar voltasse a circular.
O velório terminou, então o enterro, e
logo os dias voltaram à rotina. Uma rotina diferente, claro. Uma rotina sem
ela.
Eu aprendi a levar. Aprendi a cuidar da
minha filha, a amá-la como amei sua mãe, ainda mais. Aprendi a conviver com a
solidão, a chorar no escuro quando tinha vontade. Aprendi que chorar não é
coisa de mulheres, também, que homens também choram, que chorar revigora o
espírito, coloca as coisas no lugar.
Acima de tudo isso, aprendi que a chuva
disfarça as lágrimas, mas não faz a tristeza passar.
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