terça-feira, 27 de novembro de 2012

Conto - Par ou Ímpar


Par ou Ímpar

—Par.
Rosa sempre escolhia par. Não era de se surpreender que, na última vez em que jogasse aquilo com Thomas, fizesse o mesmo.
—Ímpar.
Ele não tinha outras opções, na verdade. Sua vida sempre fora assim, sem escolhas. Ficava com o que sobrava e, como de costume, tinha de se contentar com isso, aproveitar o que conseguia e viver da melhor maneira possível.
Jogaram, confiando na sorte. Rosa deixou quatro de seus dedos em riste; Thomas, um.
—Eu ganhei —disse ele.
—Não é justo!
—Não mesmo! É sorte. A sorte nem sempre é justa.
Ela não parecia feliz, mas acabou por aceitar o resultado. Olhava para o relógio a cada quinze segundos, como instruída por seus pais. Não podia se atrasar de maneira alguma.
—E então? —perguntou ela.
—Então o quê?
—O que você escolhe?
—Como assim escolher?
—Ah, Thomas, presta atenção no jogo! Nós acabamos de combinar que quem ganhasse poderia escolher uma coisa do outro, lembra?
Ele se lembrava, sim, e essa era a pior parte.
—Vamos lá, não tem nada que você queira me pedir?
Na verdade, havia sim. Várias coisas, inclusive, mas algumas delas eram impossíveis. Talvez todas fossem. Que diferença faria? Ele não diria nada, como sempre, e a oportunidade passaria diante de seus olhos. Costume. Rotina. Nada de diferente.
—Eu vou pensar em algo, prometo.
Enquanto pensava, Thomas pegou um pedaço de papel e rabiscou algo, depois o amassou e colocou no bolso.
—Você é muito chato, sabia? —disse Rosa. —É só um pedido, qual é! Você pode pedir para ficar com os meus jogos de Super Nintendo, se quiser. É claro que eu não me livraria de todos eles, mas poderia pensar em te presentear com alguns e —
—Rosa, eu não tenho um Super Nintendo. E, sinceramente, não me importo com fita alguma.
Me importo com outra coisa.
—O que disse?
Ele percebeu que havia sussurrado algo sem significado, e achou melhor assim.
—Nada. Que horas são?
—Tenho vinte minutos.
SÓ VINTE?!
—Então vamos indo.
—Mas ainda é cedo!
—Não para quem tem que caminhar até o aeroporto.
Ambiente-se na situação, companheiro: vivenciamos a despedida de dois amigos de infância. Após anos convivendo nas mesmas escolas, sempre nas mesmas salas, Rosa e Thomas teriam de separar. Os pais dela se preparavam para uma viagem de negócios e, possivelmente, partiriam para o exterior em alguns meses. Ela, menor de idade, os acompanharia, obviamente. Não que fosse essa sua vontade, claro, mas seria bom. O inglês que ela sempre estudou seria posto a prova, enfim, e ela teria grandes oportunidades  de se destacar em outro país.
E ele?
Thomas, por sua vez, ficaria ali, sozinho. Ele nunca iria ao exterior. Nunca teve vontade, muito menos oportunidade. Não tinha inveja dela, no entanto. Torcia para o seu sucesso. Torcia para que ela conseguisse realizar todos os seus sonhos, porque ela não conseguiria.
Tinha inveja dos pais dela, pois eles sempre estariam ao lado daquela garota incrível.
—Tem certeza que não quer me pedir alguma coisa?
Rosa insistia naquilo. Era óbvio que Thomas queria pedir algo, mas as suas vontades não importavam. Eram impossíveis. Não havia escolhas, como sempre.
—Tenho —mentiu, e ela se deixou cabisbaixa até o fim do percurso.
O aeroporto estava bem movimentado, mas nunca é difícil encontrar um casal de pais esperando por sua filha. A mãe de Rosa acenava para ela, as malas ao seu lado. O pai dela vestia um terno elegante, provavelmente preparado para pousar numa mesa de reunião ou similar.
—Olá, Thomas —cumprimentou o senhor Marcos, sorridente.
Thomas acenou, entristecido.
—Rosa, nosso voo sai em alguns minutos —disse sua esposa, Nádia. —Vamos até os assentos de espera para reservar os tickets. Nos encontre lá assim que terminar de se despedir, tá bem?
—Ok, mamãe.
Rosa assistiu enquanto seus pais se afastavam, e só então percebeu que estava ali, mesmo. Não havia mais volta. Não havia mais nada.
—Eu... eu vou sentir sua falta, Thomas.
Ele tinha uma lágrima no canto dos olhos. Fazia um esforço imenso para não permitir que ela escapasse.
—Eu também, Rosa.
Ríspido, seco, frio. Mascarado.
Rosa se aproximou, abraçando Thomas com todas as suas forças, e ali ela chorou, tristonha. Aquele pesadelo poderia durar dias, semanas, meses. Anos.
Poderia nunca mais acabar.
—Eu vou voltar um dia, você sabe.
—Eu vou estar esperando.
—O que disse?
Thomas ruborizou. Desviou o olhar, pigarreou.
—Eu disse que sei. Tomara que possamos nos ver novamente.
—Temos a internet para matar a saudade, bobinho.
Ela forçou um sorriso, mas não estava feliz. Não havia remédio para aquela distância.
—Não é o suficiente.
Thomas se virou, dando as costas a Rosa. Ele chorava, mas ela nunca viu lágrima alguma em seu rosto. Antes de soluçar, antes de deixar-se desabar em tristeza, Thomas tirou o papel de seu bolso e o jogou no chão, ainda amassado.
—Adeus, Rosa.
Com passos firmes, mas nada decididos, o garoto se afastou, deixando-a para trás, sozinha.
É claro que ela também chorou, mas não foi naquele momento. Naquele instante, Rosa sentiu raiva. Ela viu o seu melhor amigo, seu companheiro de anos, se afastar sem olhar nos seus olhos. Ela viu o garoto que tanto gostava se despedir sem nem mesmo beijar seu rosto. Ela o viu partir, e partiu também, sem que pudesse provar o gosto de seu beijo.
Somente mais tarde, quando Rosa já estava no avião, ela teve coragem de abrir o papel que Thomas deixara cair ao chão.
Ali, naquele garrancho que ela aprendera a amar durante os anos, estava o pedido que ele não teve coragem de fazer.
Fica do meu lado para sempre.
Só então ela chorou, e chorou pra valer. Chorou como criancinha, acolhida nos braços da mãe. Pensava em como Thomas estaria, em como ele ficaria lá, sozinho. Sem ela.
Chorou, chorou mais e mais, e quando se achou cansada de chorar, quando seus olhos já pareciam inchados demais, ela se levantou, limpou o rosto, borrando sua maquiagem, e respirou fundo.
—Fique calma, minha filha —disse Nádia, visivelmente aborrecida com a situação. —Há algo que eu possa fazer para te ajudar?
Rosa fechou a mão e apontou para sua mãe que, num primeiro momento, pensou naquilo como uma ameaça, um soco, mas só depois entendeu o que verdadeiramente significava.
—Par ou ímpar? —perguntou Rosa.
—Escolha você —sorriu a mãe, mas era um sorriso sem alegria.
—Par.
Ela sempre escolhia par.
—Ímpar.
—Se eu ganhar, terei minha vida de volta. Terei Thomas de volta.
A mãe não disse nada.
Jogaram.
Dois e cinco, respectivamente.
Rosa perdeu.
Naquele dia, Rosa não chorou mais. Choraria em vários outros dias, sim, mas não naquele.
De frente para o espelho do hotel que os acolheu, Rosa ergueu a mão direita.
—Da próxima vez que jogar, vou escolher ímpar —disse para si mesma. —E eu vou vencer, Thomas. Eu prometo.
Havia um papel em sua outra mão e, nele, havia escrito um desejo de dois jovens.

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