Paixão Além do Tempo
Ele
achava que era o terror das garotinhas, mas era um terror com as garotas.
—Hei,
gatinha, alguém já disse que você é inegavelmente linda?
—Acha
mesmo?
—Mas
é claro!
—Então
faz o seguinte: leva a sua mãe em casa. Meu pai faz uma igualzinha.
Cada
bravata era um tapa em seu rosto, e ele estava cansado de apanhar.
Não
era assim por opção, no entanto. A vida não lhe garantira bons exemplos de
relacionamento. Acima de tudo, garantira péssimos exemplos, iniciados no
casamento da mãe, destruído por uma traição irremediável do pai, que deixara a
casa para nunca mais voltar, e desde então não mais fora visto. Depois a irmã,
cuja noivado se perdeu conforme se perdia o amor, abandonado pela necessidade
da liberdade que o ciúme não deixava existir.
Com
imagens assim em sua mente, é claro que aquele garoto adolescente de puberdade
exacerbada não desejaria um relacionamento sério. É claro que ele teria medo de
se machucar, que ele teria medo de machucar alguém.
E
era muito mais fácil e agradável fingir ser o terror das garotinhas, mesmo
sabendo que nenhuma das garotinhas lhe
dirigiria olhar algum, exceto os olhares de desprezo e das piadas.
—Tô
dizendo, cara, você precisa repensar suas atitudes —era o que sempre dizia seu
melhor amigo. —As garotas gostam de caras determinados, que sabem o que querem
da vida!
—Mas
eu sei o que quero da vida, poxa! —ele se defendia com o mesmo argumento todas
as vezes. —Estou estudando há anos para prestar o vestibular, quero arriscar na
medicina, talvez ganhe uma bolsa incentivo ou algo assim!
—Não,
cara, você não entendeu. As mulheres não querem saber de caras estudiosos. Você
tem que bancar o rebelde sem causa, o garoto-problema, saca? As garotas curtem
esse tipo de rapaz, aquele moleque negação nas aulas, que faz piada de tudo e
mal consegue limpar a bunda sem ajuda.
—Isso
é nojento!
—Sim,
é nojento, mas é o que elas querem. Você não quer ser o que elas querem?
Não.
—Claro
que sim.
Mentira,
como muitas outras que contara anteriormente.
—Então
vai precisar repensar suas atitudes.
E
ele repensava, todos os dias, mas chegava sempre à mesma conclusão: se o mundo
era assim, imundo como parecia, ele não queria mais pertencer àquele lugar.
Como suicídio não era uma opção, ele se deixava levar no vento, vivendo cada
dia como se fosse o último, numa adrenalina alcançada da melhor maneira nos
blocos digitais de um memory card de Playstation.
Quando
dormia, lembrava-se da infância, dos tempos onde o amor era uma bobagem sem
igual, onde ver alguém se declarar, entregar doces ou fazer um desenho torto
para uma menina era motivo de piada pelo resto dos dias. Não que agora, na
adolescência, fosse diferente, claro.
Mas,
naquela época, ele tinha alguém para presentear.
Ela
era uma boa menina. Marina, seu nome, e perceba que, por tamanha importância
possuída, seu nome é citado, e o dele não. Isso sim era amor, pode ter certeza.
Ele fazia cartas, trazia flores, dava seu lanche para ela. E os outros
apontavam e riam, chamavam-no de trouxa. Eles estudaram por quatro anos lado a
lado, mas não trocaram nenhum beijo. Ao término do fundamental, ela foi embora,
e ele ficou para trás, sozinho.
Agora,
ele também tinha amigos, até mesmo amigas, mas ninguém mais para presentear.
Ele não se apaixonou outra vez, não mais. Ou não ainda. A vida é curta, mas é
bem aventurada, pra quem sabe lidar (o que não era o seu caso,
definitivamente). Então ele esperou, e o tempo passou, e ele continuou sozinho,
vendo amigos se afastarem em namoros prematuros e coisas do tipo.
—Você
precisa mesmo de uma namorada —disse uma de suas amigas.
Ela
era bonita, e facilmente beijável, mas isso não queria dizer nada. Ela era sua
amiga, apenas isso. Para ela, ao menos. Para ele, era quase como um objeto
voador não identificado, que você olha, admira, mas nunca alcança.
—Por
que diz isso?
—Por
que eu arrumei uma para mim no mês passado —contou ela. —É divertido. As
pessoas não encaram muito bem, mas eu não ligo, nem ela.
—Já
percebeu que até as garotas encontram garotas e eu não?
—Relaxa,
isso pode ser só uma fase.
—Eu
não aguento mais essa fase de dezesseis anos...
Mas
ele aguentou, e o ano chegou ao fim, e outro se iniciou, o último do ensino
médio. A sala se reuniu no início das aulas, contaram as histórias das férias,
muitos dos alunos viajaram e se divertiram. Ele não. Ficou em casa terminando
seus jogos eletrônicos e gastando sua mesada com livros. Era o suficiente; pelo
menos fazia o tempo passar.
—Você
já viu a aluna nova?
Não,
ele não tinha visto. Quando seu amigo a apontou, o baque foi imenso.
Não
era uma aluna nova.
—Marina?
Ela
sorriu, levantou-se com alegria e o abraçou.
—Há
quanto tempo! —simpática, os olhos brilhando. —Eu não esperava que você
estivesse estudando aqui ainda! Como anda a vida?
Ela não andou nada
depois de você
foram as palavras estampadas em seus pensamentos, mas ele não as proferiu.
—Vai
seguindo, quase que rastejando. E a sua?
—Ah,
aconteceram muitas coisas, umas boas, outras ruins. Meu pai morreu ano passado.
—Eu
sinto muito.
—Tudo
bem. Eu fiquei abalada demais na época, mas sabe, a gente tem que superar. Eu
voltei para cá por causa dele. Talvez isso seja um sinal.
—É.
Talvez seja.
Um
sinal do quê?
—Podíamos
sair para comer alguma coisa qualquer dia, o quê acha?
Ele
adoraria se gabar e dizer que a convidara para sair, mas aquelas palavras eram
dela, e isso era o mais impressionante. Quatro carteiras mais longe, seu melhor
amigo engolia o riso com as mãos avantajadas.
—É...
Claro, claro que sim. Podemos tomar alguma coisa.
—Um
sorvete, uma cerveja, um banho juntos, quem sabe.
—Banho?
Ela
gargalhou.
—É
brincadeira, seu bobo.
Ele
não digeriu aquela brincadeira por muitos dias.
—Cara,
você tem um encontro, já percebeu isso?
A
voz estrondava em sua mente.
—Não
sei não, isso não me parece um encontro. É como um reencontro, na verdade. Ela
era a minha amiga dos primeiros anos de escola, a minha melhor amiga, na
verdade.
—Isso
não existe, cara.
—O
quê?
—Amizade
entre homem e mulher. Eles se aproximam por interesse, sempre assim.
—Bobagens...
—Você
vai entender. Essa garota quer o seu corpo nu, sabia? Com chocolate espalhado,
ainda.
Ele
riu, mas não achou graça. Aprendeu isso com a vida: rir por educação. Rir para
não causar problemas. Rir para não piorar as coisas.
Por
dentro, angústia.
Seria
aquilo um encontro? E o que ele, que nunca antes tivera um encontro na vida,
faria?
Num
estalo de dedos, ambos já estavam sentados ao redor de uma mesa redonda,
aguardando pelo açaí que vinha nas mãos de uma garçonete morena.
—Como
está a sua família? —foi uma das primeiras frases que o nervosismo permitiu que
ele dissesse.
—Bem,
eu acho —respondeu ela. —Meus irmãos ainda choram pelo meu pai, às vezes. Minha
mãe disse que não teria outro homem, mas ela tem seus casos, eu sei. Ela não me
engana.
—E
você?
—Eu
estou bem.
—Não
é isso. Como anda você quanto aos casos? Já está namorando? —Ele percebeu que a
pergunta soara séria demais para uma brincadeira, então disfarçou. —Ah, qual é,
todo mundo sabe, a nossa idade é cheia dessas coisas, de beijos e tal. Me conta
suas histórias.
Ela
piscou, atônita.
—Eu
não tenho histórias pra contar. Não sou o melhor exemplo de sorte no amor,
acho.
Eu também não.
—Que
coisa. Eu tive alguns lances...
Não, cara, o que
você tá dizendo?
—Ah,
entendi... Que legal.
—É.
Legal.
Seu idiota.
—Mas...
e agora? Você tá namorando, algo assim?
—Erm...
bom, não. Eu escapei dos compromissos, sabe? Agora quero distância deles por um
tempo.
O que eu estou
dizendo?
—Sei...
É bom ver que está curtindo a vida.
—É.
Também acho.
Morra...
O
açaí terminou numa conversa pacata e gaga, e eles então deixaram o lugar,
caminhando de volta até suas casas. Ele a acompanhou, como todo bom garoto
faria. Pensava em várias coisas, mas acima de todas elas estavam suas palavras,
suas mentiras, que talvez custassem uma oportunidade tão rara quanto cometas no
céu.
—Eu
fico por aqui, então —disse ela, sorridente, mas hesitante. —A gente pode sair
outras vezes, não é?
—É,
sim. Claro. Podemos sair sempre.
—Então
até amanhã.
Ela
se aproximou, envolveu-o com os braços e deu um beijo em seu rosto.
Ali,
o tempo parou.
Ele
sentiu a respiração dela na sua pele, então o toque dos seus lábios, suas mãos
nas suas costas, suas pernas coladas às dele. Ele a sentiu ali, presente, e só
então percebeu o quanto isso lhe fez falta pela vida toda. Anos se passaram, e
ele era um desastre no amor, ele era uma tragédia com os relacionamentos, e
agora entendia. Ele era péssimo com todas as garotas, porque todas as garotas
não lhe interessavam. Somente uma importava. Somente uma lhe chamou atenção na
vida toda.
Se
o tempo assim pedisse, ele poderia superar aquela perda, poderia encontrar
alguém poderia até tentar ser feliz longe dela, mas ela voltou. Estava ali,
agora, e ele a sentia.
Aquele
abraço o fez vislumbrar o futuro, e havia muita coisa à frente. Ele viu um
beijo apaixonado, viu dias felizes, viu um amor incondicional. Viu um par de
alianças prateadas, depois douradas, viu um vestido de noiva e uma igreja
decorada, viu um iate e um céu estrelado, e aquelas cenas se misturavam no
toque dos lábios dela em seu rosto, no carinho das mãos postadas no seu corpo,
na respiração delicada e aconchegante.
—Tchau.
Ela
deu alguns passos para trás sem se virar, depois voltou-se e entrou na sua
casa, fechando o portão atrás de si.
Ele
ficou ali por algum tempo, pensando. Será que ela pensou as mesmas coisas
naquele momento? Será que ela sentiu a mesma falta que ele sentia? Será que
aquilo que ele sentia era recíproco?
Vinte
minutos mais tarde, choveu. Ele se molhou muito, mas não se importou. A chuva
era uma reflexão, e ela levou embora todos os temores. Ele decidiu que faria
valer a pena a rotina; pensou em tantas coisas novas que percebeu que sua vida
estava mudando.
Chegou
em casa encharcado, tomou seu banho, derrubou o leite que deveria tomar, queimou
o pão, quebrou uma moldura da sua mãe, apagou uma pasta de fotos da irmã. Fez tudo
isso e, enquanto o insultavam, ele se deitou, fechou os olhos e não dormiu.
Pensava
nela, sonharia com ela, acordaria ainda pensando nela e, feliz ou infelizmente,
teria de se conformar com isso pelo resto da sua vida.
Belo conto. Muito profundo, muito poético. Parabéns, Rodolfo! Eu vislumbrei o seu talento lendo este texto. parabéns!
ResponderExcluirAdorei! Li seu conto com os olhos brilhando tanto!!
ResponderExcluirMuito real, muito palpável!!
Amei!!
Luz Marrye
Fico lisonjeado pela leitura e pelos comentários, Owl e Luz, e é muito gratificante saber que gostaram! Continuem acompanhando o blog, eu sempre disponibilizo algum texto novo, espero que outros trabalhos também agradem!
ResponderExcluirAbraços, e obrigado mesmo pelo apoio!
Como posso dizer... Sem dúvidas um texto épico! Me identifiquei com o sujeito sem nome! E eu conheço uma Marina. Ela é muito linda... Parabéns Rodolfo! Gostei muito.
ResponderExcluirValber Phoebus
Obrigado por ler e comentar Valber, fico feliz que tenha gostado!
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