quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Conto - Paixão Além do Tempo


Paixão Além do Tempo

Ele achava que era o terror das garotinhas, mas era um terror com as garotas.
—Hei, gatinha, alguém já disse que você é inegavelmente linda?
—Acha mesmo?
—Mas é claro!
—Então faz o seguinte: leva a sua mãe em casa. Meu pai faz uma igualzinha.
Cada bravata era um tapa em seu rosto, e ele estava cansado de apanhar.
Não era assim por opção, no entanto. A vida não lhe garantira bons exemplos de relacionamento. Acima de tudo, garantira péssimos exemplos, iniciados no casamento da mãe, destruído por uma traição irremediável do pai, que deixara a casa para nunca mais voltar, e desde então não mais fora visto. Depois a irmã, cuja noivado se perdeu conforme se perdia o amor, abandonado pela necessidade da liberdade que o ciúme não deixava existir.
Com imagens assim em sua mente, é claro que aquele garoto adolescente de puberdade exacerbada não desejaria um relacionamento sério. É claro que ele teria medo de se machucar, que ele teria medo de machucar alguém.
E era muito mais fácil e agradável fingir ser o terror das garotinhas, mesmo sabendo que nenhuma das garotinhas lhe dirigiria olhar algum, exceto os olhares de desprezo e das piadas.
—Tô dizendo, cara, você precisa repensar suas atitudes —era o que sempre dizia seu melhor amigo. —As garotas gostam de caras determinados, que sabem o que querem da vida!
—Mas eu sei o que quero da vida, poxa! —ele se defendia com o mesmo argumento todas as vezes. —Estou estudando há anos para prestar o vestibular, quero arriscar na medicina, talvez ganhe uma bolsa incentivo ou algo assim!
—Não, cara, você não entendeu. As mulheres não querem saber de caras estudiosos. Você tem que bancar o rebelde sem causa, o garoto-problema, saca? As garotas curtem esse tipo de rapaz, aquele moleque negação nas aulas, que faz piada de tudo e mal consegue limpar a bunda sem ajuda.
—Isso é nojento!
—Sim, é nojento, mas é o que elas querem. Você não quer ser o que elas querem?
Não.
—Claro que sim.
Mentira, como muitas outras que contara anteriormente.
—Então vai precisar repensar suas atitudes.
E ele repensava, todos os dias, mas chegava sempre à mesma conclusão: se o mundo era assim, imundo como parecia, ele não queria mais pertencer àquele lugar. Como suicídio não era uma opção, ele se deixava levar no vento, vivendo cada dia como se fosse o último, numa adrenalina alcançada da melhor maneira nos blocos digitais de um memory card de Playstation.
Quando dormia, lembrava-se da infância, dos tempos onde o amor era uma bobagem sem igual, onde ver alguém se declarar, entregar doces ou fazer um desenho torto para uma menina era motivo de piada pelo resto dos dias. Não que agora, na adolescência, fosse diferente, claro.
Mas, naquela época, ele tinha alguém para presentear.
Ela era uma boa menina. Marina, seu nome, e perceba que, por tamanha importância possuída, seu nome é citado, e o dele não. Isso sim era amor, pode ter certeza. Ele fazia cartas, trazia flores, dava seu lanche para ela. E os outros apontavam e riam, chamavam-no de trouxa. Eles estudaram por quatro anos lado a lado, mas não trocaram nenhum beijo. Ao término do fundamental, ela foi embora, e ele ficou para trás, sozinho.
Agora, ele também tinha amigos, até mesmo amigas, mas ninguém mais para presentear. Ele não se apaixonou outra vez, não mais. Ou não ainda. A vida é curta, mas é bem aventurada, pra quem sabe lidar (o que não era o seu caso, definitivamente). Então ele esperou, e o tempo passou, e ele continuou sozinho, vendo amigos se afastarem em namoros prematuros e coisas do tipo.
—Você precisa mesmo de uma namorada —disse uma de suas amigas.
Ela era bonita, e facilmente beijável, mas isso não queria dizer nada. Ela era sua amiga, apenas isso. Para ela, ao menos. Para ele, era quase como um objeto voador não identificado, que você olha, admira, mas nunca alcança.
—Por que diz isso?
—Por que eu arrumei uma para mim no mês passado —contou ela. —É divertido. As pessoas não encaram muito bem, mas eu não ligo, nem ela.
—Já percebeu que até as garotas encontram garotas e eu não?
—Relaxa, isso pode ser só uma fase.
—Eu não aguento mais essa fase de dezesseis anos...
Mas ele aguentou, e o ano chegou ao fim, e outro se iniciou, o último do ensino médio. A sala se reuniu no início das aulas, contaram as histórias das férias, muitos dos alunos viajaram e se divertiram. Ele não. Ficou em casa terminando seus jogos eletrônicos e gastando sua mesada com livros. Era o suficiente; pelo menos fazia o tempo passar.
—Você já viu a aluna nova?
Não, ele não tinha visto. Quando seu amigo a apontou, o baque foi imenso.
Não era uma aluna nova.
—Marina?
Ela sorriu, levantou-se com alegria e o abraçou.
—Há quanto tempo! —simpática, os olhos brilhando. —Eu não esperava que você estivesse estudando aqui ainda! Como anda a vida?
Ela não andou nada depois de você foram as palavras estampadas em seus pensamentos, mas ele não as proferiu.
—Vai seguindo, quase que rastejando. E a sua?
—Ah, aconteceram muitas coisas, umas boas, outras ruins. Meu pai morreu ano passado.
—Eu sinto muito.
—Tudo bem. Eu fiquei abalada demais na época, mas sabe, a gente tem que superar. Eu voltei para cá por causa dele. Talvez isso seja um sinal.
—É. Talvez seja.
Um sinal do quê?
—Podíamos sair para comer alguma coisa qualquer dia, o quê acha?
Ele adoraria se gabar e dizer que a convidara para sair, mas aquelas palavras eram dela, e isso era o mais impressionante. Quatro carteiras mais longe, seu melhor amigo engolia o riso com as mãos avantajadas.
—É... Claro, claro que sim. Podemos tomar alguma coisa.
—Um sorvete, uma cerveja, um banho juntos, quem sabe.
—Banho?
Ela gargalhou.
—É brincadeira, seu bobo.
Ele não digeriu aquela brincadeira por muitos dias.
—Cara, você tem um encontro, já percebeu isso?
A voz estrondava em sua mente.
—Não sei não, isso não me parece um encontro. É como um reencontro, na verdade. Ela era a minha amiga dos primeiros anos de escola, a minha melhor amiga, na verdade.
—Isso não existe, cara.
—O quê?
—Amizade entre homem e mulher. Eles se aproximam por interesse, sempre assim.
—Bobagens...
—Você vai entender. Essa garota quer o seu corpo nu, sabia? Com chocolate espalhado, ainda.
Ele riu, mas não achou graça. Aprendeu isso com a vida: rir por educação. Rir para não causar problemas. Rir para não piorar as coisas.
Por dentro, angústia.
Seria aquilo um encontro? E o que ele, que nunca antes tivera um encontro na vida, faria?
Num estalo de dedos, ambos já estavam sentados ao redor de uma mesa redonda, aguardando pelo açaí que vinha nas mãos de uma garçonete morena.
—Como está a sua família? —foi uma das primeiras frases que o nervosismo permitiu que ele dissesse.
—Bem, eu acho —respondeu ela. —Meus irmãos ainda choram pelo meu pai, às vezes. Minha mãe disse que não teria outro homem, mas ela tem seus casos, eu sei. Ela não me engana.
—E você?
—Eu estou bem.
—Não é isso. Como anda você quanto aos casos? Já está namorando? —Ele percebeu que a pergunta soara séria demais para uma brincadeira, então disfarçou. —Ah, qual é, todo mundo sabe, a nossa idade é cheia dessas coisas, de beijos e tal. Me conta suas histórias.
Ela piscou, atônita.
—Eu não tenho histórias pra contar. Não sou o melhor exemplo de sorte no amor, acho.
Eu também não.
—Que coisa. Eu tive alguns lances...
Não, cara, o que você tá dizendo?
—Ah, entendi... Que legal.
—É. Legal.
Seu idiota.
—Mas... e agora? Você tá namorando, algo assim?
—Erm... bom, não. Eu escapei dos compromissos, sabe? Agora quero distância deles por um tempo.
O que eu estou dizendo?
—Sei... É bom ver que está curtindo a vida.
—É. Também acho.
Morra...
O açaí terminou numa conversa pacata e gaga, e eles então deixaram o lugar, caminhando de volta até suas casas. Ele a acompanhou, como todo bom garoto faria. Pensava em várias coisas, mas acima de todas elas estavam suas palavras, suas mentiras, que talvez custassem uma oportunidade tão rara quanto cometas no céu.
—Eu fico por aqui, então —disse ela, sorridente, mas hesitante. —A gente pode sair outras vezes, não é?
—É, sim. Claro. Podemos sair sempre.
—Então até amanhã.
Ela se aproximou, envolveu-o com os braços e deu um beijo em seu rosto.
Ali, o tempo parou.
Ele sentiu a respiração dela na sua pele, então o toque dos seus lábios, suas mãos nas suas costas, suas pernas coladas às dele. Ele a sentiu ali, presente, e só então percebeu o quanto isso lhe fez falta pela vida toda. Anos se passaram, e ele era um desastre no amor, ele era uma tragédia com os relacionamentos, e agora entendia. Ele era péssimo com todas as garotas, porque todas as garotas não lhe interessavam. Somente uma importava. Somente uma lhe chamou atenção na vida toda.
Se o tempo assim pedisse, ele poderia superar aquela perda, poderia encontrar alguém poderia até tentar ser feliz longe dela, mas ela voltou. Estava ali, agora, e ele a sentia.
Aquele abraço o fez vislumbrar o futuro, e havia muita coisa à frente. Ele viu um beijo apaixonado, viu dias felizes, viu um amor incondicional. Viu um par de alianças prateadas, depois douradas, viu um vestido de noiva e uma igreja decorada, viu um iate e um céu estrelado, e aquelas cenas se misturavam no toque dos lábios dela em seu rosto, no carinho das mãos postadas no seu corpo, na respiração delicada e aconchegante.
—Tchau.
Ela deu alguns passos para trás sem se virar, depois voltou-se e entrou na sua casa, fechando o portão atrás de si.
Ele ficou ali por algum tempo, pensando. Será que ela pensou as mesmas coisas naquele momento? Será que ela sentiu a mesma falta que ele sentia? Será que aquilo que ele sentia era recíproco?
Vinte minutos mais tarde, choveu. Ele se molhou muito, mas não se importou. A chuva era uma reflexão, e ela levou embora todos os temores. Ele decidiu que faria valer a pena a rotina; pensou em tantas coisas novas que percebeu que sua vida estava mudando.
Chegou em casa encharcado, tomou seu banho, derrubou o leite que deveria tomar, queimou o pão, quebrou uma moldura da sua mãe, apagou uma pasta de fotos da irmã. Fez tudo isso e, enquanto o insultavam, ele se deitou, fechou os olhos e não dormiu.
Pensava nela, sonharia com ela, acordaria ainda pensando nela e, feliz ou infelizmente, teria de se conformar com isso pelo resto da sua vida.

5 comentários:

  1. Belo conto. Muito profundo, muito poético. Parabéns, Rodolfo! Eu vislumbrei o seu talento lendo este texto. parabéns!

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  2. Adorei! Li seu conto com os olhos brilhando tanto!!
    Muito real, muito palpável!!
    Amei!!

    Luz Marrye

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  3. Fico lisonjeado pela leitura e pelos comentários, Owl e Luz, e é muito gratificante saber que gostaram! Continuem acompanhando o blog, eu sempre disponibilizo algum texto novo, espero que outros trabalhos também agradem!
    Abraços, e obrigado mesmo pelo apoio!

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  4. Como posso dizer... Sem dúvidas um texto épico! Me identifiquei com o sujeito sem nome! E eu conheço uma Marina. Ela é muito linda... Parabéns Rodolfo! Gostei muito.

    Valber Phoebus

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  5. Obrigado por ler e comentar Valber, fico feliz que tenha gostado!

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