domingo, 18 de novembro de 2012

Conto - Gélido Fervor


Eu sempre fui um tanto quanto sensitivo.
Aquela era uma péssima ideia, entretanto. Acordar nas noites mais inóspitas imaginando a presença de algo que não deveria existir, vislumbrar nos sonhos os maiores terrores que ainda afrontariam minha vida, entre outros ocorridos macabros, era algo que eu dispensaria facilmente. Mas aquilo me acompanhava, e eu sentia medo, obviamente, como qualquer adolescente de quinze anos sentiria.
Como qualquer pessoa sentiria, na verdade.
Naquela noite, não foi diferente.
Despertei no meio de um sonho erótico com uma das atrizes da novela previamente assistida (como todo bom garoto em estado de puberdade há de sonhar, acredite). O cenário não me era tão familiar, e só então recordei-me de que, para que meus pais pudessem desbravar os terrores de uma festa de família, aceitei passar a noite na casa do Tio Wake, uma morada afastada da civilização, onde minha conexão wi-fi não era receptível e nem mesmo o sinal do celular colaborava para a virtualização dos afazeres.
Ali, cercado por mato verde e cheiro de nada com vento, eu acordei sentindo um frio assombroso, mas um frio quente.
E você pode rir de mim caso eu diga, mas sim, era um frio quente. Como isso é possível? O vento frívolo me castigava a pele de maneira gélida, e então me acolhia num abraço quase que vulcânico, fervendo minhas vestes e fazendo me suar, e então a brisa soprava outra vez, e todo o suor frio de meu corpo congelava, quedava de meu corpo como lágrimas cristalinas.
Com os olhos abertos, constatei que as janelas e as portas estavam fechadas. Sem vento, sem brisa, sem sopros. Sem nada.
Era eu e o quarto e aquele gélido fervor.
A bexiga me alertou de imediato que meu organismo implorava para urinar. Lembrei-me que, quando tive a oportunidade, não o fiz, parte por ter certo receio de utilizar um banheiro que ficava no exterior da casa. Agora, meu tio adormecera, e eu teria que fazer uso daquela toalete improvisado na madeira sem companhia. Não que esperasse que ele me acompanhasse até lá e... bom, você entendeu.
Deixei as cobertas para trás, abraçando-me vez ou outra para evitar aquele frio exótico, então me enxugando quando o calor me atordoava na sequência. A casa rangia por inteiro conforme eu caminhava, e logo ficou para trás, deixando-me de frente com aquele verde que eu deveria amar, como todo homem deve amar a natureza, mas odiava por livrar-me da internet e das mensagens de texto. Pisei com as pantufas que um dia pertenceram à minha Tia Wake, que Deus a tenha, e a terra fofa regozijou meus temores. A noite estava agradável, e não havia vento algum diante do céu estrelado e da lua minguante. Estranhei, mas prossegui, parte com frio, parte acalorado.
Quinze metros, e lá estava o miúdo box de madeira e alumínio onde as necessidades eram despejadas. Quinze metros, quinze metros que me pareceram infindáveis, que me fizeram assistir a vida a cada piscadela. A porta estava fechada, e eu não entendi o motivo. Uma pequena fresta me fez notar a luz acesa. Olhando para trás, vi as luzes da casa apagadas. Meu tio ainda dormia, certamente. Ele possivelmente esquecera a luz do banheiro acesa, nada mais.
Abri a porta.
O celular pendeu de minha mão no mesmo instante, baqueando contra as pedras numa melodia sonora e audível. Havia alguém ali, mas não era o meu tio. Não era alguém como os alguém costumam ser. Era algo. Estava em pé, com as pernas longas esticadas, sem veste alguma sobre o corpo pálido, quase que rosado, como um albino de pele esticada e anormal, demarcado por cicatrizes tão horrendas quanto profundas, riscos que desenhavam em sua pele clara como crianças insanas desenhariam em folhas de sulfite nas escolas de educação especial.
Eu queria me assustar com aquele ser, queria me assustar com aquela forma, mas eu me assustei única e exclusivamente com aqueles olhos.
Dois olhos de um tom ensandecido de púrpura, como joias sem brilho, sem íris, sem pupilas, sem nada.
Como pedras foscas, sombreadas, mórbidas.
Dois olhos sem vida.
Eu não gritei, pois a voz me falhara, bem como a respiração. Não gritei, mas corri, e corri mais do que as aulas de educação física me ensinavam a correr. Corri até que as pernas não me aguentassem, e caí no chão rochoso, marcando os cotovelos e os joelhos por uma viagem que me seria inesquecível. Olhei ao redor, encontrando uma pequena casa que não era a do meu tio, e só então pensei nele, em tê-lo deixado para trás, sozinho com aquela coisa, mas eu precisava fugir, precisava encontrar alguém, precisava sobreviver, e sentia que não o faria perto daquele ser.
Você está bem?
A voz me pegou de surpresa. Havia um homem ali, trajado em roupas pesadas e escuras, o rosto acobertado por um boné e uma touca, quase que escondido. Eu recuei alguns passos na esperança de correr outra vez, mas não o faria por estar sem forças.
—Quem é você? —perguntei, e somente aquilo tive forças para perguntar.
—Eu sou o vigia do depósito. Você está bem?
Um vigia. Respirei aliviado. Estava a salvo, finalmente!
Eu parei ao seu lado, contei a ele o que me acontecera. Ele riu, pois adultos sempre riem dessas histórias, mas me disse que estava tudo bem. Percebi que, naquele momento, o frio era incomensurável, e o vigia me fez sentar num lugar onde o vento não deturparia meu conforto.
—Você pode ficar aqui, se quiser. Quando o dia amanhecer, seu tio vai procurar por você, ou você mesmo pode voltar para a sua casa. É mais seguro do que fazê-lo agora.
Eu confiei nele, pois me parecia um bom homem. Abracei-me a trapos surrados que encontrei naquele lugar e, de maneira serena, adormeci, sem sonhos para me incomodar o descanso.
Acordei assustado, duas mãos pesadas me sacudindo o corpo. Já era manhã.
—Onde você esteve a noite toda?!
Era meu tio, o rosto alarmado.
Eu engoli em seco. Não consegui responder.
—Você fugiu quando eu te vi no banheiro, lembra? Sabe que eu não consigo acompanhar a velocidade de um garoto de quinze anos! Por que você não parou de correr quando eu gritei?
Não, tio, não era você, quis dizer, mas e se realmente fosse? Teria eu imaginado tudo aquilo? Como pude ser tão ingênuo...
—Eu fiquei com medo, tio! Você me assustou!
—Deveria ter medo de dormir sozinho num lugar desses! Existem animais perigosos por aqui, sabia? Cobras, até mesmo onças, como pôde fazer isso?!
Olhando nas proximidades, percebi que o vigia não mais estava por lá.
—Tinha um homem aqui, tio.
—Um homem?
—Sim, um homem. Ele disse que era o vigia do depósito.
Eu pretendia apontar a construção que vira na noite anterior, mas só então percebi que o que apontava não passava de destroços tombados.
—Você está brincando comigo, não é? Vamos, estamos indo embora agora. Eu vou preparar um café e você vai ficar dentro de casa até os seus pais voltarem, entendeu?
Nunca antes vira meu tio daquele jeito. Por mais arriscado que me parecesse a ideia, a curiosidade me dominou e, sem pensar duas vezes, perguntei:
—Mas tio... e o vigia? Você o conhece?
A sua resposta estrondou em minha mente como um trovão atrás das montanhas.
—Não existe um vigia. O senhor Thomas costumava olhar o depósito de combustível, mas uma tempestade destruiu o lugar, e um incêndio cuidou de acabar com a vida daquele pobre velhote. Isso foi há três anos.
Uma tempestade, e então um incêndio. O frio das águas torrenciais, o calor das chamas descontroladas. A pele pálida e grotesca me estuporava, uma imagem que eu jamais esqueceria.
Aquele no banheiro não era o meu tio.
Aquele vigia não era real.
Enquanto caminhava para casa, um vento estranho me assolou.
Eu senti frio, um frio indescritível e gélido, mas logo despenquei em febre, num fervor incomum para aquela época do ano.

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