Eu sempre fui um tanto quanto sensitivo.
Aquela era uma péssima ideia, entretanto.
Acordar nas noites mais inóspitas imaginando a presença de algo que não deveria
existir, vislumbrar nos sonhos os maiores terrores que ainda afrontariam minha
vida, entre outros ocorridos macabros, era algo que eu dispensaria facilmente.
Mas aquilo me acompanhava, e eu sentia medo, obviamente, como qualquer
adolescente de quinze anos sentiria.
Como qualquer pessoa sentiria, na
verdade.
Naquela noite, não foi diferente.
Despertei no meio de um sonho erótico com
uma das atrizes da novela previamente assistida (como todo bom garoto em estado
de puberdade há de sonhar, acredite). O cenário não me era tão familiar, e só
então recordei-me de que, para que meus pais pudessem desbravar os terrores de
uma festa de família, aceitei passar a noite na casa do Tio Wake, uma morada
afastada da civilização, onde minha conexão wi-fi não era receptível e nem
mesmo o sinal do celular colaborava para a virtualização dos afazeres.
Ali, cercado por mato verde e cheiro de
nada com vento, eu acordei sentindo um frio assombroso, mas um frio quente.
E você pode rir de mim caso eu diga, mas
sim, era um frio quente. Como isso é
possível? O vento frívolo me castigava a pele de maneira gélida, e então me
acolhia num abraço quase que vulcânico, fervendo minhas vestes e fazendo me
suar, e então a brisa soprava outra vez, e todo o suor frio de meu corpo
congelava, quedava de meu corpo como lágrimas cristalinas.
Com os olhos abertos, constatei que as
janelas e as portas estavam fechadas. Sem vento, sem brisa, sem sopros. Sem
nada.
Era eu e o quarto e aquele gélido fervor.
A bexiga me alertou de imediato que meu
organismo implorava para urinar. Lembrei-me que, quando tive a oportunidade,
não o fiz, parte por ter certo receio de utilizar um banheiro que ficava no
exterior da casa. Agora, meu tio adormecera, e eu teria que fazer uso daquela
toalete improvisado na madeira sem companhia. Não que esperasse que ele me
acompanhasse até lá e... bom, você entendeu.
Deixei as cobertas para trás,
abraçando-me vez ou outra para evitar aquele frio exótico, então me enxugando
quando o calor me atordoava na sequência. A casa rangia por inteiro conforme eu
caminhava, e logo ficou para trás, deixando-me de frente com aquele verde que
eu deveria amar, como todo homem deve amar a natureza, mas odiava por livrar-me
da internet e das mensagens de texto. Pisei com as pantufas que um dia
pertenceram à minha Tia Wake, que Deus a tenha, e a terra fofa regozijou meus
temores. A noite estava agradável, e não havia vento algum diante do céu
estrelado e da lua minguante. Estranhei, mas prossegui, parte com frio, parte
acalorado.
Quinze metros, e lá estava o miúdo box de
madeira e alumínio onde as necessidades eram despejadas. Quinze metros, quinze
metros que me pareceram infindáveis, que me fizeram assistir a vida a cada
piscadela. A porta estava fechada, e eu não entendi o motivo. Uma pequena
fresta me fez notar a luz acesa. Olhando para trás, vi as luzes da casa
apagadas. Meu tio ainda dormia, certamente. Ele possivelmente esquecera a luz
do banheiro acesa, nada mais.
Abri a porta.
O celular pendeu de minha mão no mesmo
instante, baqueando contra as pedras numa melodia sonora e audível. Havia
alguém ali, mas não era o meu tio. Não era alguém como os alguém costumam ser. Era algo.
Estava em pé, com as pernas longas esticadas, sem veste alguma sobre o corpo
pálido, quase que rosado, como um albino de pele esticada e anormal, demarcado
por cicatrizes tão horrendas quanto profundas, riscos que desenhavam em sua
pele clara como crianças insanas desenhariam em folhas de sulfite nas escolas
de educação especial.
Eu queria me assustar com aquele ser,
queria me assustar com aquela forma, mas eu me assustei única e exclusivamente
com aqueles olhos.
Dois olhos de um tom ensandecido de
púrpura, como joias sem brilho, sem íris, sem pupilas, sem nada.
Como pedras foscas, sombreadas, mórbidas.
Dois olhos sem vida.
Eu não gritei, pois a voz me falhara, bem
como a respiração. Não gritei, mas corri, e corri mais do que as aulas de
educação física me ensinavam a correr. Corri até que as pernas não me
aguentassem, e caí no chão rochoso, marcando os cotovelos e os joelhos por uma
viagem que me seria inesquecível. Olhei ao redor, encontrando uma pequena casa
que não era a do meu tio, e só então pensei nele, em tê-lo deixado para trás,
sozinho com aquela coisa, mas eu precisava fugir, precisava encontrar alguém,
precisava sobreviver, e sentia que não o faria perto daquele ser.
Você
está bem?
A voz me pegou de surpresa. Havia um
homem ali, trajado em roupas pesadas e escuras, o rosto acobertado por um boné
e uma touca, quase que escondido. Eu recuei alguns passos na esperança de
correr outra vez, mas não o faria por estar sem forças.
—Quem é você? —perguntei, e somente
aquilo tive forças para perguntar.
—Eu sou o vigia do depósito. Você está
bem?
Um vigia. Respirei aliviado. Estava a
salvo, finalmente!
Eu parei ao seu lado, contei a ele o que
me acontecera. Ele riu, pois adultos sempre riem dessas histórias, mas me disse
que estava tudo bem. Percebi que, naquele momento, o frio era incomensurável, e
o vigia me fez sentar num lugar onde o vento não deturparia meu conforto.
—Você pode ficar aqui, se quiser. Quando
o dia amanhecer, seu tio vai procurar por você, ou você mesmo pode voltar para
a sua casa. É mais seguro do que fazê-lo agora.
Eu confiei nele, pois me parecia um bom
homem. Abracei-me a trapos surrados que encontrei naquele lugar e, de maneira
serena, adormeci, sem sonhos para me incomodar o descanso.
Acordei assustado, duas mãos pesadas me
sacudindo o corpo. Já era manhã.
—Onde você esteve a noite toda?!
Era meu tio, o rosto alarmado.
Eu engoli em seco. Não consegui
responder.
—Você fugiu quando eu te vi no banheiro,
lembra? Sabe que eu não consigo acompanhar a velocidade de um garoto de quinze
anos! Por que você não parou de correr quando eu gritei?
Não,
tio, não era você,
quis dizer, mas e se realmente fosse? Teria eu imaginado tudo aquilo? Como pude
ser tão ingênuo...
—Eu fiquei com medo, tio! Você me assustou!
—Deveria ter medo de dormir sozinho num
lugar desses! Existem animais perigosos por aqui, sabia? Cobras, até mesmo
onças, como pôde fazer isso?!
Olhando nas proximidades, percebi que o
vigia não mais estava por lá.
—Tinha um homem aqui, tio.
—Um homem?
—Sim, um homem. Ele disse que era o vigia
do depósito.
Eu pretendia apontar a construção que
vira na noite anterior, mas só então percebi que o que apontava não passava de
destroços tombados.
—Você está brincando comigo, não é?
Vamos, estamos indo embora agora. Eu vou preparar um café e você vai ficar
dentro de casa até os seus pais voltarem, entendeu?
Nunca antes vira meu tio daquele jeito.
Por mais arriscado que me parecesse a ideia, a curiosidade me dominou e, sem
pensar duas vezes, perguntei:
—Mas tio... e o vigia? Você o conhece?
A sua resposta estrondou em minha mente
como um trovão atrás das montanhas.
—Não existe um vigia. O senhor Thomas
costumava olhar o depósito de combustível, mas uma tempestade destruiu o lugar,
e um incêndio cuidou de acabar com a vida daquele pobre velhote. Isso foi há
três anos.
Uma tempestade, e então um incêndio. O
frio das águas torrenciais, o calor das chamas descontroladas. A pele pálida e
grotesca me estuporava, uma imagem que eu jamais esqueceria.
Aquele no banheiro não era o meu tio.
Aquele vigia não era real.
Enquanto caminhava para casa, um vento
estranho me assolou.
Eu senti frio, um frio indescritível e
gélido, mas logo despenquei em febre, num fervor incomum para aquela época do
ano.
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