sábado, 5 de maio de 2012

Trecho - O Espelho da Juventude

Olá, companheiros.
Voltando com mais um trecho, dessa vez de um romance ambientado em Elhanor, concluído em meados do ano passado (2011). Trata-se de O Espelho da Juventude, uma história de fantasia medieval com cerca de 60000 palavras que nos mostra a empreitada de Jade e seu irmão, Soran, em busca da salvação de Inoccen, a deusa da juventude. Esse trecho representa a primeira parte do Capítulo 1, mas o romance, ao todo, conta com 10 capítulos e 1 epílogo. Vamos conferir?



CAPÍTULO 1
A DEUSA ENVENENADA

            Sentiu o corpo arder em febre, a cabeça rodopiar no lugar, e se apoiou, as mãos delicadas tremulando, a pele macia enrugando pelo esforço.
            Lá estava Inoccen, a deusa da juventude de Elhanor. Seus cabelos faiscavam, os fios de todas as cores, e os olhos fumegavam pela vontade de continuar viva, mas a fraqueza lhe abatia, empalidecendo a pele bronzeada, fraquejando a existência divina, escondendo o corpo de deusa sob um manto de depressão e dor. Arfava, a alma ferida, o corpo em destroços. Sentou-se nas colinas do mundo divino, e ofegou.
            Inoccen era uma linda deusa, imagem de paz e tranquilidade para todos, olhos capazes de encantar o mais frio dos corações. Como alguém pôde ser capaz de planejar algo maligno contra uma entidade tão bondosa? Era inacreditável, mas Inoccen estava ali, ferida por dentro, fraca, perdendo pouco a pouco seus poderes, sentindo suas forças se esvaírem através da respiração dificultada. Fora envenenada e, quem quer que fosse o responsável por tal atitude, fizera com tanta perfeição que nem mesmo a deusa descobriu. Agora, quando sentia os sintomas de seu veneno, já era tarde demais.
            Além da própria deusa, o mundo era envenenado junto dela.
            Elhanor é uma terra de heróis, de aventuras e lendas, lar de criaturas fantásticas e perigosas. É um mundo jovem, e os jovens são os grandes responsáveis por toda essa evolução, pelo conhecimento, pelas batalhas históricas, pelos cantos incríveis nas tavernas. Agora, a juventude estava fraquejando. Elfos sentiram a idade, pela primeira vez na vida. Não morreriam: os poderes da deusa eram indescritíveis, e nem mesmo a sua morte acabaria com a influência de suas vontades, mas, enquanto ela fraquejava, os homens sofriam, e logo a juventude perderia o significado.
Videntes sonharam com crianças barbadas após o parto, bebês com rugas e corações frágeis. Cartomantes vislumbraram em suas leituras um futuro sem jovens, onde os adultos envelheciam mais cedo, apodrecendo em suas vestes, apoiados nas bengalas improvisadas. Esse era o futuro, o destino, a sina de Elhanor. Caso Inoccen morresse, afastada de seus poderes, o mundo todo seria prejudicado.
Então as parcas resolveram intervir.
As parcas, ou moiras, são um trio de feiticeiras responsáveis pelo destino, banhadas pelas fontes do conhecimento e da magia divina, semideusas, como os etéreos, mas ainda mais influentes. Vivem no plano dos deuses, longe da humanidade, e lá assistem numa piscina de prata derretida toda a existência dos planos, e, em cada pessoa, encontram todos os destinos, marcados desde o nascimento e modificados através das eras. Lá, do Teatro da Banheira de Prata, elas assistem a tudo, sem interferir. Vez ou outra, tecem seus fios de escolhas e aconselham os mortais, mostrando lampejos do futuro, visões ou coincidências, atirando-os em seus jogos ou revelando caminhos melhores, distanciando perigos do mundo pelo qual tanto prezam. Agora, com o envenenamento da deusa da juventude, a tríade das bruxas precisava agir, e rápido.

Surgiram, juntas, no plano dos deuses, vestindo suas túnicas de espectros, mantos com fios de vida e morte presos ao corpo por cinturões de ossos e olhos arregalados. Lá estava Inoccen, deitada em uma cama de nuvens com trajes finos, similares a vestes de casamento. Seu cabelo, antes de todas as cores, sacudia, fosco, conforme a brisa soprava com leveza.
—Saudamos a deusa dos jovens, ó grande senhora da juventude —disse Nona, a primeira das três irmãs, de pele negra e bochechas rechonchudas, com grandes olhos de abutre. —Sentimos tua fraqueza, senhora. O mundo todo está a sentir.
—Sei de toda a influência, Nona —disse a deusa, e sua voz, antes de cantiga, agora soava rouca, sombria. —O mundo vai envelhecer sem a minha presença.
—Vimos a desgraça que virá, e a ela tememos —soprou a Décima, a feiticeira de pele clara, tão branca quanto a nuvem que era a cama da deusa. Seus dentes cintilaram pelo brilho de um dos inúmeros sóis que rodopiavam o cômodo divino. —O mundo apodrecerá. O destino mais incerto ainda é a certeza de uma vida de velhice e morte.
—Não me fale sobre um futuro que não virá —implorou a deusa, e seus olhos marejaram, as lágrimas sagradas brilhando junto do movimento das nuvens mais altas, um azul fosforescente e delicado. Ela se pôs de pé, o vestido deslizando por seu corpo, os pés descalços amaciando o solo de algodão e plumas, mas fraquejou, as pernas lhe traindo, e novamente a nuvem se fez de assento, onde a deusa encostou-se para tossir furacões e tempestades. —Não vou permitir que sofram pela minha tolice.
—És uma deusa, minha senhora —curvou-se a última das irmãs, a Morta, uma figura horrível de uma donzela de pele finíssima, os ossos transparecendo o corpo nu, fios ruivos escorrendo por diversas partes de seu corpo raquítico. Ela sorriu, e o ranger de seus dentes era tenebroso, como uma chuva de relâmpagos dizimando uma floresta. —Tens tua divindade, teus dons. Entretanto, o futuro nos pertence, e ele será como visto nas Águas de Prata.
Inoccen choramingou.
—Não... —sua voz era abafada por suspiros e soluços, e o sangue cintilante dos deuses escorreu por seus lábios após uma tosse tão áspera quanto espinhos de uma rosa. —Não vou permitir que seja assim. Vocês... Vocês podem me ajudar.
—Fraquejas longe de teus poderes, minha deusa —era Nona, como uma avó conselheira. —As Águas de Prata nos mostram diversas cenas, diversos futuros em um só destino. Vemos tudo e todos, e as imagens sempre mudam. Não podemos escolher por ti. Somos parcas, responsáveis pela sina dos mortais, mas somos eternas, e eternos não podem se envolver. Nós não podemos ajudá-la.
—Mas alguém pode —interrompeu a Décima. —Aquele distante dos eternos, de outros planos, de outras vidas. A mais simplória existência é a ponta da balança de sua vida, ó deusa. A súplica de um mortal vem à deusa, e só assim poderá ser atendida. A súplica de uma divindade deverá ser feita a um mortal.
Inoccen cambaleou, a cabeça ardendo, os braços fracos. Deitou-se novamente.
—Devo implorar a um homem? —perguntou, confusa. —São eles quem farão por mim o que não pude fazer por eles?
—Que façam por si mesmos —a Morta, ríspida feito um trovão repentino. Sorriu, um riso em assovio, como um silvo ecoando num cemitério. —A senhora, ó grande deusa da juventude, farás por tua própria divindade. Eles, por si próprios. Ambos, pelo mundo.
—Eu aceito —suplicou Inoccen, desolada, perdida em sua agonia. A cena de uma deusa soluçando daquela maneira era trágica, e poucos homens acreditariam que isso era capaz de existir. —Quem é o mortal?
—As Águas de Prata revelam o caminho, ó grande deusa —disse a Nona. Retirou de sua túnica de vultos uma bandeja, e vomitou sobre ela uma poça prateada de destinos, que logo borbulhou e desenhou no metal sagrado, mostrando imagens de incontáveis vidas. —Aqui estão tuas escolhas, minha rainha. Quem será responsável por ti e por tudo?

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