sábado, 5 de maio de 2012

Trecho - Magistra

Olá, companheiros.
Magistra é uma novela que concluí recentemente, no início de 2012. Tem cerca de 40000 palavras, mas seu gênero é diferente do que costumava escrever, uma fantasia urbana e obscura, em termos. Ela nos conta a história de Owen e Ingrid, dois órfãos que partem numa aventura muito perigosa em busca da professora desaparecida, mas acabam por descobrir que há muito mais por trás desse outro mundo. Fiquem agora com um pequeno trecho de Magistra.



I


O crepúsculo se desfez, deixando que a noite tomasse o céu por inteiro, como o abraço delicado de uma mãe atenciosa. O véu enluarado estava mais claro do que de costume, com estrelas dedilhadas por todos os cantos, rodeando com louvor o satélite natural e brilhoso que era a Lua, curvilínea em seu esplendor crescente, ostentando toda a luxúria de sua existência de modo a evitar que a escuridão assustasse criança alguma.
Ah, mas é claro, havia crianças! Dezenas delas estavam espalhadas nos terraços de suas casas, assistindo à raridade daquela bela penumbra, contando estrelas, fazendo pedidos, cada qual com seus genitores. Abraçadas às pernas de pais e mães graciosos, sorriam pela felicidade do momento, de poder estar ao lado de quem amavam numa cena tão bela como aquela. Abraçavam irmãos, dividiam alegrias, corriam com seus brinquedos em devaneios extrovertidos, banhados por criatividade e diversão. Crianças e pais, como há de ser.
Havia outras crianças, contudo, e estas não abraçavam seus pais. Muitas delas não tinham irmãos, primos, algumas nem mesmo brinquedos. Abandonadas às portas de residências desconhecidas, vivendo ao lado de moradores de rua ou sob os viadutos trabalhados daquela cidadela, órfãos predominavam naquela região. A taxa de nascimento aumentara gradativamente nos últimos anos, ao mesmo tempo em que muitos filhos tornavam-se indigentes, largados em orfanatos e deixados em hospitais na tutela de falsos registros. Grande parte destes órfãos sequer teria a oportunidade de conhecer os pais, muitos dos quais já estavam mortos, ou há muito tinham escapado da coleira de uma prole. Sem escolha, eram forçados a tornar-se pedintes, trabalhar de maneira escrava ou, na melhor das hipóteses, encontrar uma vaga disputada num orfanato público.
TulTul Highway era um orfanato pequeno, mas feliz, na medida do possível. Em suas paredes tingidas por um castanho de alegorias, instrutores ensinavam o que podiam para suas crianças, muitas delas vivendo no interior daqueles portões durante toda a vida. Contabilizando suas dezoito vagas, TulTul já abrigava mais de trinta crianças, eternizando o sentimento do coração de mãe. Ali os filhos de todos e de ninguém aprendiam a ler, escrever, falar e cantar, contando com voluntários sorridentes e dispostos a dar tudo de si por cada uma daquelas crianças.
Owen Bartholomeu era um dos filhos sem pais. Tido como inteligente, destacava-se entre as crianças de TulTul por sua memória incomparável, qualidade que facilitava seus estudos em comparação com os demais alunos de doze anos. Vestindo-se nos trapos doados pelas crianças mais ricas, Owen estava sempre de bem com a vida, alegre nos piores momentos, quando a fome importunava o Highway. Abraçava seus amigos, cantarolava, espantava qualquer desânimo passageiro, e logo a situação retornava ao normal, motivo para que ele ostentasse um sorriso largo e contagiante de Eu não disse que iria melhorar!
Naquela noite, Owen havia escalado as paredes do orfanato, algo que frequentemente irritava suas professoras-mães, para sentar-se próximo à chaminé, de onde poderia assistir àquele belo fenômeno. Como todas as outras crianças, e também a maior parte dos adultos da cidade, estava ansioso para admirar uma combinação fabulosa do clima nevoado, o eclipse prometido durante tantas semanas nos noticiários e a Aurora Boreal que já começava a se formar no breu. Tantos fatos incomuns chamaram a atenção de cientistas de todas as partes do mundo, mas nenhuma explicação racional impediu o povo de parar tudo o que fazia para esperar aquele momento único. Enquanto ouvia passos raspando a neve dos telhados, Owen aplaudiu os primeiros movimentos eclipsais, tímidos e vagarosos.
—Eu sabia que te encontraria aqui!
A voz era familiar, sequer precisou se virar para ter certeza de quem era. A garota escalou com dificuldade, diferente da agilidade atlética de seu companheiro. Seguiu com cautela, evitando possíveis escorregões nas telhas congeladas do orfanato, e sentou-se ao lado de Owen, sorrindo apenas com os olhos. Olhos lindos, por sinal, safiras incrustadas nas órbitas alvas de uma pequena donzela, vestida com um saiote de bordados e cheirando a maquiagem de adultos, roubada das professoras mais vaidosas. Ingrid Strawberry era a melhor amiga de Owen, ou o mais próximo disso. Ambos viveram no TulTul Highway durante todos os anos de suas vidas, aguardando o processo de adoção que nunca chegou. Não mais esperavam por novos pais, pois encontraram nos instrutores a felicidade de uma família mais unida do que qualquer outra. Eles mesmos eram o complemento que faltava, exibindo uma afeição que irmão algum seria capaz de demonstrar, e isso os contentava na maior parte do tempo. Obviamente passavam por maus momentos, mas sempre estavam lado a lado, bem como recepcionando o sofrimento de todas as demais crianças com os peitos calejados por um pranto que nunca os deixaria. Não eram os mais velhos, mas eram respeitados como tal, pois estavam sempre unidos, sempre alegres, como pai e mãe.
Como um casal, o que sempre garantia zombarias imperdíveis, o que não os deixava muito felizes.
—E o que é que você não sabe sobre mim? —riu com prazer, afastando-se para que Ingrid pudesse se acomodar ao seu lado. —Tome cuidado para não fazer barulho! Logo eles vão sentir nossa falta, portanto, vamos aproveitar o momento.
—Como se eu pretendesse fazer barulho!
—Vai saber, você é menina! As meninas são complicadas, ninguém entende.
—Fácil é entender alguém que convida os outros para assistir a um fenômeno e depois sobe no telhado sem esperar!
—Está começando!
Uniram as mãos delicadas, apontando com alegria para a lua, agora uma esfera enegrecida no céu. A claridade da noite se dispersou, restando apenas o pontilhado das estrelas, incontáveis e radiantes. A escuridão durou pouco, pois logo o vento soprou um véu mágico, uma cortina de cores e formas que tremulou na noite como a magnificência de um teatro profissional, coisa que nenhuma daquelas crianças teve a chance de ver na vida.
—Que lindo!
—Fique quieta.
—Mal educado!
—Escute.
Ingrid não sabia o que escutar, mas logo percebeu que algo curioso acontecia. Uma estrela cadente riscou o céu, cantarolando uma melodia harmoniosa, mas sem significado. Fecharam os olhos, as mãos cerradas numa carícia fraterna, fizeram seus pedidos secretos que mais tarde seriam contados para todos. Abriram os olhos, a música continuou, outra estrela despencou do céu. Atrás dela, uma terceira, e mais outra, e então outras dez.
—Uau! Hoje temos pedidos infinitos para fazer!
—Vou pedir batons novos, nunca ganho o kit de maquiagem que aparece na televisão.
—Você só pensa em maquiagem.
—É porque eu sou menina, Owen! Do mesmo jeito que você só pensa em carrinhos e bonecos de plástico!
—Não foi esse o meu pedido!
—Ah é? Então qual foi?
Engoliu em seco.
Queria uma família para ele e para Ingrid, mas tinha vergonha de contar.
Uma madeira rangeu nas proximidades.
—O que foi isso? —Ingrid.
—Tem mais alguém subindo! Você contou para mais alguém?
—Eu juro que não!
—Então fomos descobertos, se esconda!
Ambos correram para o outro lado do telhado, abraçando-se às antenas televisivas e à chaminé, o que não era capaz de escondê-los por completo. Assistiram enquanto mãos alcançavam as telhas com suavidade, puxando um corpo esbelto de boneca para a superfície nevada e escorregadia onde estavam sentados. Owen estranhou, mas logo reconheceu aquela pele macia, similar ao tapete de flocos que escondia o telhado do casebre. Era Cecília, ou simplesmente Ceci, a professora mais legal de todo o mundo! Responsável pelo aconchego das manhãs, lecionava de maneira única e extrovertida, ensinando com brincadeiras que deixavam qualquer matéria aprisionava na mente de cada um dos órfãos com uma facilidade que somente ela possuía. Ceci era a professora favorita de todos os alunos, e mesmo outros instrutores aceitavam este fato sem ciúme algum, pois o carisma presente na humildade daquela mulher era inacreditável. Era como um anjo, nascido com o dom de animar as crianças; uma mãe para tudo e para todos.
—Achei vocês, danadinhos!
Ceci eram sempre brincalhona, e não conseguia alterar seu comportamento nem mesmo na hora de castigar. Puxou suas longas vestes para sobre as telhas e, com um sorriso, se aproximou das crianças, que deixaram os esconderijos para correr até a amiga.
—Professora Ceci —em coro.
—Não corram, meus queridos —com alegria contagiante. —É perigoso, não queremos ninguém machucado na semana que vem. O que estão vendo aqui?
—Olhe aqui, professora —apontou Ingrid. —Olha que coisa mais linda!
Era realmente magnífico, Cecília comprovou com facilidade. Deixando-se sentar ao lado de seus alunos, a professora admirou o eclipse, as estrelas, a Aurora Boreal, tudo aquilo reunido numa apresentação divina. Fez sua prece, e não se conteve em fazer um pedido ao ver mais uma ou duas estrelas cadentes desbravarem as galáxias.
—Que fantástico! —aplaudiu com vigor.
—É maravilhoso, não é?
—Realmente! Mas vocês não vão escapar da minha bronca, tudo bem? Subir no telhado é perigoso, Ingrid.
—Mas foi o Owen quem me convidou!
Owen se espantou com a atuação convincente de sua companheira.
—Ora, Owen, você deveria saber que não pode se arriscar aqui, muito menos nessa época de neve! É fabuloso ver essa cena no céu, mas podemos vê-la pela televisão ou nos portões de entrada. Vamos descer agora, está bem?
—Sim, professora!
Ingrid foi a primeira a descer, usando de uma cautela incomum, substituindo a destreza irregular de criança e garota. Owen a acompanhou de perto, como um macaco de doze anos de idade, ágil e esperto nos movimentos. Saltou para o solo com manha de alpinista, ilustrando sua performance com agradecimentos a uma plateia imaginária, Ingrid sorriu.
—Professora, você já pode descer! —avisou ele. —Meu fãs já escolheram que eu fui o melhor, mas você pode tentar ainda assim!
—Eu já estou indo —brincou Cecília.
Aquelas foram as últimas palavras que as crianças escutaram da professora.
Tudo foi muito rápido.
Ceci gritou bem alto, como se escorregasse no telhado, mas não caiu para lado algum. Ingrid circundou a casa, esperando do outro lado por algum sinal da professora; Owen se preparou para escalar outra vez, apoiando no pinheiro que alguns órfãos plantaram anos atrás. O céu oscilou, as luzes ribombaram num clarão descomunal, cegando por instantes todos aqueles que estavam fora de suas casas.
Crianças e adultos gritaram, assustados e maravilhados com aquela fantasia. Quando a luz voltou, todos eles gargalhavam, saltitando pela alegria de tal momento.
Cecília não gritou, não sorriu e não saltitou.
Ceci desaparecera.

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