sábado, 5 de maio de 2012

Trecho - A Dança do Espectro

Olá, companheiros.
O trecho de agora é especial, pois trata da obra que considero minha favorita até então: A Dança do Espectro. Com suas 50000 palavras, aproximadamente, essa novela foi o primeiro texto grande que escrevi com o gênero fantasia urbana, e gostei bastante do resultado. Trago agora as primeiras palavras do Ato I - Solidão, e espero que admirem a leitura.



Aquela era uma garota alegre.
Todos os dias, abria os olhos e os lábios, sorria ao despertar. Agradecia a apenas um Deus, ao Criador, por sua vida, por sua família, por sua saúde. Por seu mundo. Sentava-se à mesa com seus pais, unia suas mãos delicadas às deles, oravam juntos para que os belos dias de primavera durassem uma eternidade. Conversavam sobre a escola, sobre o trabalho, sobre os afazeres domésticos. Conversavam sobre o irmão, que ainda descansava dentro da barriga inchada de sua mãe, brincavam com a pele maltratada pela criança. Sorrindo, sempre, felizes.
Naquele dia, foi diferente. Acordou, sentiu-se vazia, a solidão era quase palpável. O cabelo cor-de-cobre estava despenteado, não se preocupou em ajeitá-lo. Lavou os olhos de mel, enxugou o rosto macio na toalha esmeralda, caída ao chão, escovou os dentes assim que encontrou o creme dental e sua escova. Desceu as escadas em espiral, apoiando-se no encosto de madeira surrada, saltou os degraus que não pareciam confiáveis, alcançou o térreo. Desviou-se dos móveis desorganizados, empurrou as ruínas de um lustre para longe. Sentou-se à mesa, o café não estava preparado. Puxou sua cadeira, era a única a ser ocupada, e assim seria para sempre. Debruçou-se sobre a imundice no mármore, refletiu sobre o que acontecia, nada lhe vinha à mente além da tristeza e do vazio.
Naquele dia, a garota alegre, que sempre sorria, chorou.

Lydia viu o mundo acabar. No escuro de seu quarto, um cômodo miúdo de segundo andar, viu quando o céu negro foi envolto por um clarão escarlate. Naquele dia, discutira com os pais sobre um possível namorado, por mais que seus quinze anos já lhe permitissem certas regalias. Ofendera a mãe e sua proteção excessiva, evitara as palavras do genitor. Sentia-se presa a uma família de tradições, de costumes rígidos, de modos antepassados. Atirada em sua cama, escondida no edredom bordado pela avó, que há muito já partira daquele mundo emporcalhado, desejava ser livre.
Quando acordou, tinha sua liberdade.
Escondeu-se novamente nas cobertas, desejou que fosse tudo um pesadelo.
Não era.
Esperou que a porta fosse aberta, que a mãe lhe alertasse sobre o atraso para a escola, que o pai gritasse que o café da manhã estava pronto. Aguardou por horas, não comeu, recusou a água, o corpo praguejou por sua greve desnecessária, mas as pernas não a obedeciam. Reuniu as forças que restavam, sentou-se no colchão de molas, os pés descalços encontraram o chão. Desceu, temerosa, sentou-se à mesa.
Permitiu-se chorar como criança, por mais que lutasse para crescer, para que a vissem como adulta. Desabou num sofrimento tardio, chorou faminta, a garganta estava seca. Depois da tristeza, a revolta. Levantou-se, derrubou a mesa, chutou o ar, gritou. Arrancou cabelos, socou a geladeira, dois de seus dedos sangraram. Berrava.
Caminhou até a porta, os olhos já arroxeavam pelo pranto que a aturdia. As mãos se uniram, trêmulas, alcançaram a maçaneta de alumínio, hesitou. Não sabia o que encontraria no mundo, mas sabia que algo estava diferente. Sentira a mudança que se sucedeu na noite, algo terrível acontecia. Acordara sozinha, sem uma família para dividir os problemas. Largou a saída para trás, recuou, subiu novamente as escadas. Não sabia o que acontecia, não sabia o que fazer. Tinha medo das respostas, mas a curiosidade lhe obrigou a se aproximar do quarto dos pais. Baixou os olhos, abriu a porta, o metal rangeu pelo movimento. Sentiu as narinas coçarem pela poeira, tossiu quando se embrenhou no breu. Tateou as paredes em busca do interruptor, mas não o encontrava. Seguiu, como cega, até que alcançasse as janelas de presídio devidamente instaladas pelo pai, sempre atento à segurança, por vezes um tanto fanático quanto ao assunto. Destravou o lacre, empurrou as cortinas, abriu as vidraças e a madeira decorada, deixou que o céu escarlate tocasse o cômodo.
Lydia se orgulhava dos pais. Eram firmes nas decisões, certamente, o que sempre fora um empecilho em suas passeatas de adolescente. Ainda assim, serviam-lhe de apoio em todas as horas, seja para conversar sobre assuntos em particular, seja para apoiar alguma decisão que os amigos zombariam. Estavam ao seu lado quando era preciso, mesmo quando não era. Eram pais, talvez os melhores do mundo, talvez como outros quaisquer. A grande diferença é que eram os seus pais, e de mais ninguém. Seriam divididos com seu irmão, em alguns meses, mas isso não era um problema. Lydia não era egoísta, por mais que admitisse gostar da bajulação de filha única.
Não teria que dividir os pais, de qualquer modo. Não mais os tinha. A cama de casal abrigava dois corpos, unidos até o último dos momentos, envoltos num abraço carinhoso e amável. Elena e Tales eram apaixonados, os álbuns de fotos antigas eram prova concreta, mais de vinte anos de união e poucos problemas. Esbanjavam beleza e afeto, jovens aprisionados nos semblantes cansados de seus trinta e sete anos. Mesmo na morte, mantiveram-se juntos, os rostos colados. Lydia não quis acreditar, mas os lábios próximos mostravam um beijo que nunca chegou a se concretizar, por mais que o esforço de ambos tenha-os mantido unidos após o terror que assolou a noite.
Lydia alcançou os interruptores, tentou acender as luzes, a eletricidade não respondeu. O mesmo acontecia com os abajures e com as televisões de toda a casa. Tudo o que era eletrônico não respondia, mesmo o celular que guardava consigo, abaixo do travesseiro, usado para trocar mensagens com suas amigas de escola. Admirou o amor dos pais por mais alguns instantes, então desviou o olhar, decidiu que teria de aceitar aquela tragédia. Nada traria seus genitores de volta, mesmo a dor da perda seria inútil. Engoliu o choro, guardou o sofrimento para si, mostrando-se forte. Era adulta, sempre desejou; agora, tinha de ser, estava sozinha. Assombrada pelo pavor da solidão, Lydia reuniu forças, respirou fundo, caminhou até a janela.
Olhou o exterior de sua casa, e só então se deu conta de que o mundo havia acabado.

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