sábado, 5 de maio de 2012

Trecho - Elo de Chamas Negras

Olá, companheiros.
Continuando a postagem dos trechos, trago agora um pequeno pedaço do primeiro capítulo de Elo de Chamas Negras, um romance ambientado em Elhanor, com uma fantasia medieval mais "suja", próxima do dark-fantasy. Elo também foi concluído ano passado (2011) e conta com aproximadamente 85000 palavras. Sem mais demoras, vamos à pequena introdução do texto.


I. Mente e Alma                       

Doze pernas aceleravam, ritmadas sobre rochas disformes e calorosas. Quatro delas terminavam em cascos de cavalos, mas não eram de um animal.
Eram cinco. Valentes, pela eternidade, unidos.
Fugitivos, agora.
Corriam de algo maior, incapazes de afrontar. Erraram, a bravura os convencendo a tentar o absurdo, a insolência obrigando-os a desbravar terras desconhecidas. Por fim, notaram o erro, mas já era tarde. Fugiam feito crianças temerosas, braços de sombra os cercavam, almas em dor infinita voejando pelos arredores. Um deles foi ferido pela magia, o corpo castigado. Outro, amaldiçoado pela vida, pelo sempre.
Escaparam, ainda assim.
Não sozinhos.
Havia fogo, e fogo negro. A fogueira incendiava uma pilha de corpos, e muitos deles gritavam, sem abrir os olhos ou as bocas. Gritavam, mesmo que mortos, as peles destruídas pelas chamas, a fumaça desenhando horrores sem nome no que seria o céu. Mas não havia céu.
Havia um teto, de nuvens empoeiradas e cinzentas, uma pintura sofrível e tenebrosa, o anil bruxuleante mudando de tom e forma, em violeta, azul-marinho, verde-musgo, laranja. Girava, e tudo parecia girar junto do que se postava no lugar do céu, as falsas nuvens riscando a imensidão inacabável, a superfície acima do solo manchada por um sangue inumano.
Dez braços, todos suados pelo esforço, alguns deles frágeis, despreparados para a batalha. Portavam armas, mas elas não eram o suficiente. Lâminas cintilavam, o ferro e os demais tipos de metal banhados pelo brilho da lua inexistente naquela noite sem fim. O cheiro de enxofre tinha forma, uma névoa sinistra e venenosa, que impregnava as vestes e os cabelos, incomodava as narinas.
Cinco aventureiros, sem medo, perseguidores de sonhos e realidades. Agora perseguidos, a liberdade tão próxima, a morte entrelaçando os dedos em suas mãos destemidas.
Atrás deles havia olhos e garras e chamas.
E o fogo negro guinchava.

O pistoleiro abriu os olhos, o sono frágil incomodado pelo farfalhar das folhas escuras, murchas e sem vida, somado aos murmúrios sonolentos daquela que o acompanhava. Ainda dormia, agarrada aos joelhos, os lábios molhados pela saliva do cansaço, a pele perdendo a pouca cor que tinha, pálida pela fome e pela falta da água saudável. Os cabelos sacudiam pela brisa leve, o acampamento simplório incapaz de protegê-los do frio, tampouco da chuva que viria a seguir.
O vento soprou diferente, o cheiro mudou.
Estavam próximos.
Uma das mãos buscou a jovem, que se esgueirou do toque, recusando-se a levantar. Insistiu, ela praguejou. A mão livre buscou um cigarro, trouxe-o à boca, o acendeu. A fumaça das ervas cheirava forte, ainda que menos do que o odor carregado pelo vento.
A garota abriu os olhos, delicados e sinceros, as íris peculiares, uma verde, uma azul, ambas tão claras quanto as águas de um rio límpido. Não que houvesse algo assim por perto.
—O que aconteceu? —perguntou ela, vagarosa nas palavras e nas ações. Levantou-se, apoiou os braços nas pernas, espreguiçou.
—Faça silêncio —murmurou o pistoleiro, a voz como um sopro, áspera e cortante. —Não estamos sozinhos.
Os olhos de duas cores ficaram foscos, dilataram. Ela se agachou, buscou esconderijo, mas não havia. Havia apenas as montanhas, o céu negro e soturno ao redor, o solo distante, muito abaixo dos pés. Os Montes do Arcanjo foram um lar durante diversos dias. Contavam quinze luas, mas talvez fossem mais, pois não havia sóis, e o tempo era tão inimigo quanto aqueles que os perseguiam. A comida era mínima, nada mais que feras caçadas, fervidas no fogo rústico, na madeira improvisada pelo corte de árvores magras. A bebida era racionada, e restavam poucos cantis, o líquido sacudindo, preso ao cinturão do pistoleiro, junto de suas amigas inseparáveis.
Eram duas, uma metálica e prateada, outra pintada e sombria, os canos largos, fora do comum, tiras de cobre circundando o ferro. Mente e Alma, seus nomes, caracterizando-as como especiais, acompanhantes de uma vida toda, e além. As armas de fogo tinham outro traço diferente dos convencionais: seus tambores e carregadores não possuíam munições. Não havia pólvora, e os canos não se manchavam pela imundice negra que ardia após o tiro. O disparo era ocasionado pela junção de duas coisas, uma habilidade, um talento, um dom.
Mente e alma.
O pistoleiro era tão incomum quanto as armas que portava. Sua habilidade era peculiar, rara em Elhanor, submersa num mar de intrigas e preconceitos. Dominava o espírito e seus caminhos, a mente, o controle psíquico. A vontade lhe garantia uma munição infinita, tão forte quanto seus pensamentos, capaz de violar metal, entortar escudos e armaduras, desviar-se de um alvo indesejado. O psiquismo era uma benção, mas também um empecilho. Complexo, custando o sofrimento para que se desenvolvesse, trouxe ao àquele homem tomado por cicatrizes olhares de desprezo, maltrato e uma fama aterrorizante. Chamaram-no de louco, atiraram pedras, ofenderam. Esse era o povo, sempre discreto e respeitoso quanto às diferenças, desde as épocas mais remotas de Elhanor.
Ainda assim, Julius seguia.
Estava acostumado ao preconceito, às dificuldades, à vida árdua que lhe atordoava. Acima de tudo, tinha uma missão, por mais que a memória lhe privasse de muito de seu passado. Restavam as lembranças ruins, da infância, da adolescência, dos pais que muito lhe torturaram. Havia uma lacuna, e ela lhe intrigava.
Após seu lapso, havia Brenda, e ele sabia que deveria guiá-la, impedir que algo acontecesse a ela, que a garota sofresse.
Sabia o que deveria ser feito.
—Como eles nos encontraram? —a voz trêmula, agarrando os braços de Julius conforme seu medo se ampliava.
Tragou, de olhos fechados, fumegou.
—Você cheira bem —respondeu.
—Mas eu —
—E o mundo cheira mal. Chama atenção, no fim. Ninguém engana aqueles farejadores.
O teto negro que era o céu rutilou, o lampejo de um trovão irradiando, seguido de perto por um estrondo. Uma árvore distante incendiou, os galhos retorcidos na função de membros, sacolejando pela dor de queimar. O fogo rubro se erguia, iluminando a noite silenciosa, o crepitar das chamas como uma melodia de incontáveis bardos, uma banda de estalos e ruídos estridentes. A fumaça subiu em espirais, e o cheiro logo alcançou o pistoleiro e a jovem, somados ao turbilhão de outros odores que os circundava.
—O mundo realmente cheira mal —completou ele.
E então, o raspar do solo, garras riscando a terra das montanhas. O cume estava distante, mas mais distante era a planície, e o som estava perto. Muito perto, praguejou o pistoleiro em seu monólogo mental, as armas deslizaram para as mãos. Concentrou-se, seguiu o som, os olhos se fecharam numa atenção diferenciada. A garota correu para trás do muro que era Julius, fez de seu corpo um escudo.
O primeiro dos monstros saltou, a rajada de Mente o encontrou ainda no ar, fez seu corpo tombar inerte, as seis patas apontando o céu. Havia outros quatro farejadores, todos igualmente carnudos e de pelugem grossa, os focinhos vermelhos em destaque no corpo escuro. Eram sombras, cães com vultos de corpos, as costas largas e truculentas, maiores do que de cavalos. As bocarras mostravam-se encharcadas pela saliva, os olhos de um rubro sanguinolento. Pisavam nas montanhas com pancadas firmes, alguns corriam. Cinco, um sem vida, quatro sem medo.
Atacaram.
Oito patas deslizaram pelas montanhas, lançando areia conforme avançavam, Julius empurrou sua protegida para trás, deixando-a cair sentada. Girou o corpo, atirou duas vezes, um farejador caiu. Os disparos mentais escapavam pelos canos metálicos, os tambores rodopiando, buscando as munições inexistentes. Um farejador grunhiu, mirou a perna do pistoleiro, abocanhou o ar. Julius se moveu veloz, pisou forte, ganhou os ares com três disparos certeiros, outro dos farejadores tombou. O quarto lambia os lábios, os olhos fixos no pistoleiro, mas sua agilidade era inacreditável. Mesmo os selvagens eram enganados por sua precisão, os movimentos inesperados, as pernas o levando às costas da criatura, montou-a. Guiou, bateu com as botas para controlar a direção, usou de seu oponente para extinguir a vida da última das feras. Por fim, escorregou por seu corpo, agarrando a pelugem escura com os braços preparados, e a mão livre disparou com Alma, perfurando o corpo pesado do monstro, que derrapou, caindo pela encosta até o sopé, enquanto Julius saltava para longe do perigo.
—Elas não vão parar, não é? —perguntou a garota.
Queria dizer que sim, mas não mentia para crianças.
Ao longe, outros dez farejadores avançavam, uivando para a noite.
—Quem dera.
Correram.
Julius puxava Brenda pelo braço, as mãos unidas, como pai e filha, mas não o eram. O pistoleiro nunca teve filhos. Sequer uma esposa. Achava que Brenda era o mais próximo de uma prole que poderia ter em sua vida, e estava feliz assim.
Encontrou-a logo nos primeiros dias de sua estadia naquela paisagem sombria. Eterno Circo era infernal, mas talvez toda aquela ilha o fosse. A cidadela maltratava seus moradores, em suma escravos das criaturas abissais, dos meio-demônios, dos circenses obscuros. Havia muita maldade, e pouco espaço para uma criança como Brenda. Julius a encontrou. Não encontrava um espaço para si mesmo.
Decidiu partir, e a levou consigo.
Sacudiu a cabeça, ignorou as lembranças. Precisava focar-se apenas em sua missão, protegê-la, levá-la até o fim daquela jornada. Precisava alcançar a Fenda dos Espíritos, o local que via em seus sonhos, que Brenda via em seus vislumbres. Lá, sua missão teria um fim, e ela poderia se guiar sozinha.
Lá, Brenda seria uma deusa.
Mas a torre estava distante, e os farejadores estavam cada vez mais perto.
Brenda corria, o esforço lhe custando o ar, as pernas curtas dificultando a movimentação. O braço estava seguro nas mãos de Julius, que avançava à frente, guiando por entre as curvas das trilhas montanhosas. Um pedaço de terra se desfez, os passos se tornaram vagarosos, criaturas caíram quando os caminhos se estreitaram. Brenda escorregou, mas Julius a ergueu em um dos braços, os músculos implorando pelo descanso que nunca vinha.
Havia vinte farejadores, talvez mais. Atrás da dupla, os corpos se chocavam, a saliva manchava o terreno, os olhos como lanternas de vermelhidão brilhosa. As patas marcavam o solo em que pisavam, a marcha desenfreada acelerando, e os próprios monstros se derrubavam, grunhindo pela queda, pela morte inevitável.
À frente, Julius e Brenda ofegavam. Uma curva os fez deslizar, o peso do cansaço num esforço para levá-los à morte iminente, o pistoleiro os salvou, segurando-se numa rocha. Subiram, a garota empurrada à frente, uma garra cortou as costas do velho, o sangue manchou suas vestes. Chutou, derrubou um farejador, subiu com o impulso de seu corpo. Ganharam altura, a trilha agora larga e disforme, voltaram a correr. Restavam treze farejadores, sem obstáculos em sua perseguição, cumprindo seu papel de caçadores.
—Eles vão nos alcançar —Brenda murmurava, lágrimas no canto dos olhos.
—Não se correr mais e falar menos.
E o caminho desapareceu, restando apenas uma parede de montanha, e uma plataforma miúda de rochas. Indicou para Brenda, que seguiu vagarosa, Mente e Alma protegendo a jovem e o pistoleiro com um escudo invisível.
Concentrou-se, mas a primeira das pancadas fez o escudo oscilar, as mãos firmes nas pistolas. Brenda suspirou, o medo torturando suas pernas, a rota esguia se tornando mais complexa. Um novo corte foi feito, o escudo se rasgou como pele contra metal, a defesa ruiu. Julius derrubou dois farejadores, outros onze saltaram, se esquivou. Defendeu-se de uma mordida, dois cães caíram, outros cinco se puseram de pé.
Sem escolhas, correu na direção de Brenda, abraçou-a com braços de seus pensamentos, e ambos caíram, rolando dentro de uma esfera psíquica metros abaixo até que uma parede rochosa os impedisse.
Brenda chorava, mas fingia estar bem, como de costume. Os cabelos curtos voejavam, a brisa soprando com delicadeza a pele alva da garota, os olhos multicoloridos demonstrando sua ingenuidade.
—Vamos ficar bem? —perguntou, trêmula.
—Como sempre ficamos.
—Nunca estamos bem.
—Estamos vivos, e isto basta.
—E quando vamos parar de fugir?
Ouviu-se o ruflar de asas, e um par delas se ergueu, junto de um falcão de plumas de aço, os olhos enfeitiçados pela existência da garota, que não conteve o grito. Julius se ergueu, postou-se à frente da protegida, Mente e Alma carregadas por sua vontade, por seu espírito.
—Que tal agora? —sorriu, ansioso. —Eu odeio fugir.
E atirou. Enfrentou a ave de metal, os disparos refletidos por seu corpo mágico, o psiquismo defendendo Brenda mais do que o próprio pistoleiro.
O pássaro guinchou alto, pousou à frente de Julius, mordiscou um de seus braços, fez sangue escorrer. As pistolas despejavam o invisível, rajadas velozes pelo ar. O pistoleiro correu, saltou sobre uma das patas, cravou as unhas para escalar, puxou as penas, pisou na escadaria metálica improvisada e se atirou nas costas do falcão, erguendo-se de imediato. As pistolas fincaram-se no metal, auxiliadas por chutes fervorosos. A ave se debateu, tentou derrubar seu agressor, não conseguiu. Seis disparos, e o peito se abriu, formando um túnel por onde passaram as rajadas.
O falcão cambaleou, gritou para os céus, caiu sem vida.
Brenda correu até Julius.
—Eles nunca param! —assustada. —Faça eles parar!
Julius sacudiu seus cabelos. Guardou as pistolas, esmagou ervas nas mãos, preparou os papéis, acendeu novamente um cigarro.
—Tudo vai acabar, garota. Agora pare de ser medrosa e se torne mulher de uma vez.
Esconderam-se nas montanhas, uma pequena caverna lhes servindo de abrigo. A chuva chegou, primeiramente tranquila, mas logo uma torrente que fez dos Montes do Arcanjo uma cachoeira chorosa. Farejadores perseguiam, mas a água atrapalhava as buscas. Outras aves rodeavam a caverna, mas a escuridão era um manto que os protegia. Brenda adormeceu, jogada a um canto da gruta.
Julius desabou, exausto.
Todos os dias eram como aquele. Perseguições, ataques de monstros, perigos assombrosos. Cada dia tornava mais difícil acreditar que chegariam vivos ao destino. Cada instante tornava mais impossível acreditar na sobrevivência da garota. Felizmente, o pistoleiro era bom em uma coisa, acima de todas as outras.
Desacreditar.
Dormiram, sem palavras.

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