Trago-vos hoje mais um ato do segundo caso de Delirium, a nova Light Novel do blog Elhanor, e assim declaro encerrada a segunda parte da história. Falta apenas um caso, espero que estejam gostando do texto e não deixem de comentar e criticar, opiniões são sempre bem-vindas!
Sem mais demoras, vamos à postagem propriamente dita.
Até a próxima!
XIV
“Doutor?
O senhor está bem?”
Não
estava, obviamente. Trevor empalideceu em um instante, impossibilitado de
disfarçar o mal-estar que aquela visão lhe causou, assim como causaria a
qualquer pessoa.
“Eu
estou bem.”
Mentia.
Não estava, e não estaria enquanto tivesse de afrontar aqueles amaldiçoados
olhos verdes.
“Não
vai me responder?”
“Acho
que seria incapaz de fazer algo do tipo, Miley.”
Teve
de se esforçar por um momento para que recordasse o nome daquela garota, e
outro instante para se lembrar qual era a pergunta.
“Será
mesmo? Não acredito muito nos homens, doutor. Se há algo que aprendi de minha
mãe é a desconfiar de cada atitude, de cada palavra. Assim, não somos
surpreendidas jamais.”
“Você
está certa. É horrível ser surpreendido.”
“Não
é? Mamãe é muito inteligente, doutor. Ela poderia ser uma filósofa, ou uma
médica, como o senhor.”
“Com
o que sua mãe trabalha, Miley?”
“Ela
não trabalha. Ela vive em casa, trancafiada pelo ciúme. Papai não quer que ela
veja o restante do mundo, por isso ela também não está aqui hoje.”
Trevor
escutou com atenção as proximidades, não encontrando resquício algum de Joe
Hill e sua curiosidade.
“Seu
pai é uma pessoa ruim, Miley?”
“Eu
o odeio, doutor. Odeio meu pai. Odeio aquele filho da puta que me causou tanta
dor, que me fez sangrar por tanto tempo apenas por sua incompetência.”
Por
um momento, aquela garotinha ingênua pareceu uma assassina sádica e cruel.
“Miley!”
“Me
desculpe, doutor, mas é o que penso. Odeio ele! Odeio meu pai, com todas as
minhas forças!”
“Talvez
este seja o seu problema. Você tem que entendê-lo, tentar aprender com seus
atos. Podem parecer erradas num primeiro momento, mas cada atitude tem sua
finalidade quando se cuida de uma família. Cada passo tem de ser planejado com
maestria ou então...”
“Ou
então o quê? Ele não escutava minha mãe, nem mesmo me escutava! É um maldito
egoísta! Abusava de sua força para realizar todas as suas vontades. Ele gostava
da mamãe, eu sei que sim, mas tudo mudou depois que eu nasci. Não sei o que
aconteceu, mas papai se tornou outra pessoa. Se tornou mau.”
“Não
é culpa sua, Miley. As pessoas tendem a mudar quando se tornam chefes de
família. Imagine a sensação de se responsabilizar por duas mulheres. Consegue
pensar em algo assim? É uma coisa complexa para se lidar, se é que me entende.
Talvez o senhor Joe não estivesse preparado para ter uma filha.”
“Ou
talvez eu fosse uma filha muito especial
para ele.”
“Especial?”
“Você
não me acha especial, doutor?”
“Certamente,
pequena Miley, você é especial, como todos nós somos. Sempre há alguém no mundo
que precisa de nossa existência, que reza ao Deus em que acredita por nosso
conforto e comodidade, apenas por acreditar que somos especiais. Você não é
diferente.”
“Não
sei. Talvez eu seja diferente. Um pouco mais especial do que as especiais, se é que me entende.”
A
ironia em suas palavras era espantosa.
“É
mesmo? Por que acha isso, minha amiga?”
“Eu
tenho poderes, doutor. Destruí um relacionamento ao nascer.”
Riu,
como se realmente houvesse graça em seu comentário.
“Miley,
você está dificultando as coisas.”
“Não
é nada difícil, doutor. Difícil é ver um homem aceitar a opinião de outra
pessoa. Vocês são egoístas, na maior parte do tempo. Não há como negar que as
coisas mudaram quando eu nasci. Antes, tudo era perfeito, um mar de rosas. Olhe
agora, doutor. Estou conversando com um psiquiatra! Estou sendo tratada como
louca, e meu próprio pai é o responsável por isso tudo!”
Uma
pequena parcela de Trevor sentiu-se incomodada ao escutar a palavra psiquiatra
escapar entre os lábios daquela garota, mas a conversa prendia sua atenção como
um todo.
“Miley,
o que realmente...”
Joe
Hill entrou na sala. Não parecia abalado, ainda que seus olhos estivessem
manchados pelas lágrimas. Recomposto, caminhou entre Miley e Trevor,
aproximando-se do espelho da verdade.
“Posso
ajudá-lo, senhor Joe?”
“Acredito
que não, doutor. Se nem mesmo consegue ajudar minha filha, acho que nunca
poderá resolver meu problema.”
“Estamos
tendo progresso.”
“Progresso?
Escutou metade do que essa garota lhe falou, doutor? Ainda assim consegue
chamar isso de progresso? Ela está revoltada com a própria família! Eu fiz tudo
o que podia fazer, Trevor, fiz mesmo! Me esforcei, garanti carinho e afeição,
tentei oferecer até mesmo amor! Mas não deu certo. Quando essa criança nasceu,
fui abandonado.”
Miley
choramingou, cobrindo o rosto com as mãos delicadas. A situação estava fugindo
do controle.
“Senhor
Joe, isso não está ajudando.”
“E
o que vai ajudar? Ficar quieto do outro lado da porta escutando todas essas
malditas verdades não me fará bem, doutor. Se ela precisa disso para se curar,
vai acabar me enlouquecendo antes, e não pretendo deixar isso acontecer.”
Miley
gritou:
“Eu
quero a minha mãe!”
“Sua
mãe está aqui, Miley, assim como seu pai.”
“Você
me disse que o papai entenderia, mamãe! Ele é um egoísta! Eu estraguei o amor
de vocês!”
Trevor
se confundiu. As palavras não faziam sentido para ele. Não se manifestou.
“Não
é sua culpa, minha filhinha. Talvez não houvesse mais amor. Talvez esse homem
fosse o cretino que pareceu desde o início, atuando como todo ceifador tem de
atuar em algum momento de sua vida. Talvez tenha me enganado, nos enganado,
apenas para se esbaldar em meu corpo, em minhas virtudes.”
“Ele
mentiu para mim, mamãe! Disse que jamais seria capaz de matar a própria filha!
Disse que homem algum seria capaz de fazer coisas do tipo!”
“Veja
bem, Miley, as mentiras que movem a sociedade dos homens. Eles matam por
dinheiro, por ganância, às vezes sem motivo algum. Depois disso, cospem em
nossa cara ao nos chamar de demônios, incendeiam nosso corpos em seus
devaneios. Quem são os verdadeiros demônios agora, Trevor?”
O
psiquiatra estava paralisado. Era como um trem desgovernado, de súbito
escapando dos trilhos por onde rumava para ganhar um caminho inesperado e
destruidor, capaz de enlouquecer mesmo o especialista da mente que ali se
encontrava.
De
súbito, como a magia que bem conhecia, não mais existia Joe Hill. Em seu lugar
havia uma mulher atraente, de cabelos negros e pomposos, vestes provocantes e
tatuagens nos braços, ilustrando seu conhecimento de todas as cores e formas. O
metal polido brilhava em seu lábio e em suas orelhas.
“Não
pode ser!”
Trevor
estava incrédulo. Também não havia mais Miley. A garota bela e energética dera
lugar a um rascunho de pessoa, um corpo mastigado por lâminas, coberto de
sangue e pus, que exalava um odor nauseante e incômodo. A pele estava
ressecada, os cabelos desapareceram, os lábios estavam carcomidos por vermes
grotescos.
Mas
os olhos verdes ainda brilhavam.
“Vocês...”
“Sim,
Trevor, somos nós. Não somos simples criaturas,
como aquelas que você enfrenta em sua profissão.
Não pode se livrar de nós como se livra daqueles fracos, ceifador. É um homem,
e como tal deveria se orgulhar de ser um Sangue Azul.”
“Não,
isso não pode estar acontecendo. Como você pode estar aqui? Como isto... Como ela pode estar aqui?”
“Por
que me maltrata dessa maneira, papai?”
A
criatura gemia com mil vozes, aterrorizava. O som despejado pela furna que era
sua boca torturava o ceifador, crepitando seus ouvidos como um fogo invisível e
infernal.
“Eu
não sou seu pai!”
“Ainda
me recusa dessa maneira? Mamãe, ele ainda me recusa!”
“Pois
assim são os homens, minha filha. A resolução de um problema, por vezes, é
muito mais simples quando nos esquecemos dele. E os homens são fracos, são
tolos, são medrosos por natureza.
Trevor, você tem um grande problema aqui. Poderíamos chamar de trauma, como
você mesmo classifica às vezes. Sabe, aprendi bastante nos anos que convivi com
você. Talvez pudesse te ajudar.”
A
mulher ergueu um dos braços, uma poltrona confortável surgiu abaixo de seu
corpo, se acomodou. Um aceno trouxe o bloco de anotações e o gravador de áudio
de Trevor para suas mãos, posicionados como se fosse ela a psiquiatra.
Trevor
não relutou.
Não
poderia enfrentar aquele ser em seu mundo. Não poderia, pois ela era um demônio
liberto da prisão de sonhos, uma fugitiva do inferno verdadeiro. Enquanto ele,
naquele lugar, era um simples homem, um psiquiatra, um médico que escuta.
E
a culpa era dele mesmo.
“Não
se sinta entristecido pela situação, pobre Trevor. É difícil aceitar a loucura
quando ela nos assola. Abra-se comigo. Vamos encontrar o que está lhe causando
problemas.”
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