Mais um ato de Delirium para vocês. Espero que curtam.
Até a próxima!
I
A
manhã estava mais nebulosa do que de costume. O clima instável, costumeiro
daquela cidade miúda dos confins da Alemanha, castigava seus moradores,
alternando entre ápices distintos sem aviso algum. Desde que o Aquecimento
Global ultrapassara os níveis aceitáveis pela ciência, todo lugar era assim.
Ora quente e fervoroso, ora gélido e nevado.
No
entanto, homem algum ousava reclamar daquela tortura. A culpa, afinal, era
deles próprios, de sua poluição, de seu maltrato para com a natureza.
Entre
alguns flocos de neve que deslizavam na brisa, uma porta envernizada se
mostrava atrativa, abaixo de uma gloriosa placada de Bem-Vindo! Um tapete com
orações em latim agraciou os pés de mais um dos convidados, antes que este
batesse à porta com as costas da mão.
Era
um senhor ajeitado, vestindo-se num terno garboso, com sapatos engraxados e
cabelos bem cortados, algo entre o castanho e o loiro. Os olhos pareciam
procurar alguma coisa atrás de si, abaixo ou acima, em todos os lados, sempre
inseguros.
Conforme
a paranoia da perseguição aumentava gradativamente, o senhor Adiel Marcuse
aumentou a velocidade das batidas, assim como a força empregada em cada toque.
“Doutor
Trevor? O senhor está aí?”
Sentia
algo atrás de si. Virava-se, o sol delicado iluminando as ruas e calçadas, as
crianças brincando com seus pais e irmãos, montando bonecos de neve.
Adiel,
perseguido.
“Doutor
Trevor!”
Gritava,
espancando a porta. Alguma coisa estava perto, estava chegando. Sentia, dentro
do peito, algo comprimir seu coração, espremê-lo até que o sangue começasse a
fraquejar.
“Doutor,
por favor!”
O
rosto suava, ainda que o clima friorento raramente permitisse tal situação. As
mãos estavam trêmulas, forçavam a maçaneta adornada por esqueletos, usou dos
pés para auxiliar as batidas na porta.
Trevor
Kraepelin não estava zombando de Adiel. Terminava seu banho quando escutou as
primeiras batidas, agilizou a troca de roupas para que pudesse correr até
aquele que o chamava. Consultou sua agenda mental, mas ela era falha e
impossível de se confiar. Não conseguiu se recordar do nome.
Vestiu-se
rapidamente, sem se preocupar com pormenores. Calça antiga, camisa clara e
estampada, sapatos surrados pelo dia-a-dia, e estava preparado para atender.
Por
sorte, pois seu paciente começava a gritar por seu nome, enquanto esmurrava a
porta de seu consultório-moradia.
“Já
estou indo!”
“Doutor
Trevor, por favor, eles estão aqui!”
Eles
sempre estavam ali. Trevor se acostumava com aquelas palavras, pois sua
profissão o guiava pelo submundo da loucura. A psiquiatria era uma área
atrativa para certas pessoas, pois mostrava a realidade do subconsciente das
pessoas. Trevor a amava, mas a odiava também. Tinha seus altos e baixos.
“Eu
também estou aqui.”
“Eles
estão chegando, estão chegando!”
“Acalme-se!”
Desceu
a escadaria espiralada de seus cômodos superiores, apoiando-se no corrimão
irregular e gasto, saltou os últimos três degraus para alcançar o piso frio. A
casa não estava ajeitada, mas que diferença faria? Tirou as roupas de cima dos
estofados, limpou a mesa da cozinha com os braços, acendeu a lareira.
“Doutor
Trevor, pelo amor de Deus, abra essa porta!”
As
coisas começavam a complicar para Adiel. As crianças ganhavam um aspecto
tenebroso, curvando seus olhos espelhados em ângulos impossíveis, dobrando-se
ao meio enquanto sacudiam seus braços e pernas desossados.
Atrás
delas, um batalhão de bonecos de neve se erguia do solo albino, retirando os
galhos retorcidos que lhes serviam de braços para usar como armas brancas. Suas
expressões eram terrivelmente cruéis, assim como a neblina que se dispersava
junto da respiração daqueles seres.
Adiel
começava a entrar em pânico.
“São
eles, doutor, são os monstros!”
Trevor
Kraepelin abriu a porta de sua casa, encontrando os olhos de Adiel arregalados
pelo pavor. O homem o empurrou, saltou para dentro de sua casa, estirou-se no
tapete, arfando.
As
crianças se aproximaram de Trevor.
“Aquele
senhor está bem?”
“Está
sim, ele estava apenas brincando.”
Trevor
gostava de crianças. Sempre tinha um sorriso no rosto ao falar com uma delas.
“Ficamos
com medo. Ele parecia estar passando mal ou coisa do tipo.”
“Fiquem
calmas, crianças, o senhor Adiel está passando por alguns momentos ruins, e
apenas isso. Agradeço pela preocupação de vocês.”
Com
um aceno, Trevor se despediu daqueles garotos sorridentes, e então fechou a
porta atrás de si.
“Bom
dia, senhor Adiel.”
O
homem ofegava, trêmulo. Jogado num leve tecido que pouco o distanciava do piso,
Adiel tinha olhos marejados, somados a uma expressão depressiva.
“Bom
dia, doutor.”
Sua
voz era pouco mais do que um murmúrio.
“Os
monstros ainda estão aí?”
“Não
há monstros, senhor Adiel. Eram apenas crianças. E alucinações.”
“Ah,
sim, claro.”
Adiel
se levantou.
“Mas
elas já foram embora?”
“Sim,
elas já foram embora. Você está a salvo aqui dentro. Minhas paredes são
protegidas de monstros e ilusões.”
O
doutor cumprimentou seu paciente com um sorriso agradável, ajudando-o a se
levantar. Ofereceu uma cadeira e uma xícara de café, mas Adiel se recusou.
“Tem
se alimentado, senhor Adiel?”
“Como
quando sinto fome.”
“E
quanto tempo costuma demorar?”
“Horas.
Dias. Semanas, após as cenas mais críticas.”
“Cenas
mais críticas?”
Adiel
parecia perturbado. A simples atitude de pensar naquelas coisas o fazia tremer,
sua mente oscilando em conflito.
“Preciso
de ajuda, doutor. Preciso me livrar dessas criaturas. Elas estão me
perseguindo.”
“Claro,
senhor Adiel. Vou te ajudar da melhor maneira possível. Se o senhor me permite,
levarei um café até meu escritório. Lá poderemos conversar melhor.”
Guiando
Adiel enquanto atravessava as portas, Trevor bebericava seu café fumegante,
saboreando os últimos instantes de sua vida pacata. Acostumado à insanidade de
seus pacientes, tinha seriedade em todas as consultas, buscando aventurar-se
nos limites das lembranças de cada um deles para que pudesse encontrar o
problema que causava tais distúrbios.
Por
vezes, lembranças dolorosas eram esquecidas por vontade própria, e então o
subconsciente fazia parecer que elas sequer existiam. O trabalho de Trevor era
entender cada pessoa, seus traumas e desavenças, descobrir a verdade dentro de
si.
Depois
disso, entrava seu hobby, mas essa era outra história.
Alcançaram
um cômodo largo, de janelas gradeadas e vidros finos, transparecendo a
claridade do exterior.
“Pode
se sentar ali.”
Adiel
obedeceu, acomodou-se numa cadeira de apoios largos, ainda olhava de um lado
para o outro como se esperasse que as crianças infernais retornassem.
“Aqui
é seguro, doutor?”
Trevor
fechava as cortinas finas, o que ainda permitia a entrada da luz natural.
“O
lugar mais seguro do mundo, senhor Adiel. Por que não começa a me relatar seus
problemas?”
Adiel
esperou até que Trevor se sentasse, estendendo as mãos até um gravador de som
portátil, o qual acionou e largou sobre uma mesa de madeira. Ajeitou os óculos
no rosto, e só então pegou seu bloco de anotações.
“Vai
gravar tudo o que eu lhe disser?”
“Certamente,
senhor Adiel. Não posso perder detalhe algum de nossa conversa, se realmente
desejar resolver seu caso. Nunca esteve num psiquiatra antes?”
“Passei
por onze diferentes, mas nenhum deles optou por gravar as sessões.”
“Assim
como nenhum deles foi capaz de lhe ajudar, não é? Não pretendo divulgar essas
coisas para ninguém, senhor Adiel. As sessões são privadas. O som é apenas para
futuras consultas de minha pessoa em seus distúrbios sonoros, ou caso algum
detalhe importante seja perdido por minha caneta.”
Com
um aceno, Trevor exibiu sua caneta personalizada.
“Entendo.
Não faz diferença.”
“Realmente.
Vamos começar?”
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