Sem enrolações, vamos ao ato XII de Delirium. Até a próxima!
XII
Miley
se debatia em suas amarras, girando o corpo no tapete do consultório. Em seus
movimentos revoltosos, derrubava vasos e decorações, livros e peças de louças
antigas. Por pouco não se chocou contra o espelho da verdade, que se mantinha
escondido nos tecidos costumeiros.
“Miley,
se acalme!”
Trevor
correu até a garota, tentou acalmá-la com a voz e as mãos, ela parecia insana.
Gritava coisas sem sentido, idiomas inventados por sua loucura, ameaças e
palavrões misturados a elogios e cantigas de ninar americanas.
O
psiquiatra tentou imobilizá-la com os braços, mas a garota estava
descontrolada. Parecia forte, uma força impossível para o corpo frágil de uma
garotinha, por vezes arrastava o doutor junto de si. Sacudia os cabelos para
todos os lados, chicoteando o ar com seus fios cor-de-sol.
“Fique
calma, Miley, eu só quero lhe ajudar!”
O
pior de tudo eram seus olhos. Aquele par de olhos verdes familiares e
torturantes. Eram idênticos aos olhos que tanto atormentavam os sonhos de
Trevor, traziam memórias de momentos inacreditáveis. Perdido nas íris verdejadas
daquela garota, Trevor escutava gritos do momento e do passado, via uma loucura
recente e antiga. Tudo se misturava, se confundia, o mundo ao seu redor parecia
girar junto do corpo de Miley.
“Acalme-se!”
A
voz estava exaltada pela situação, soou quase como um grito de fúria. Não era a
intenção, mas a garota pareceu se intimidar pelo bramido do doutor, pois parou
de se debater. Acomodou-se, relaxou o corpo, abafou os gritos com ganidos
tristonhos.
“Faça
parar, faça parar!”
“Tudo
vai parar, Miley, você só precisa se acalmar. Vai ficar tudo bem.”
Após
seu surto, Miley desabou em lágrimas, um pranto soluçante e infantil.
Mostrou-se delicada e ingênua como parecia, esfregando os olhos com a suavidade
das mãos, deixando o córrego de seu choro escorrer nas roupas.
“Quem
é você?”
“Eu
sou o doutor Trevor Kraepelin, Miley. Estou aqui para lhe ajudar. Quero apenas
o seu bem. Pode me entender? Eu sou seu amigo.”
“Você
é meu amigo, doutor Trevor?”
“Sim,
Miley. Eu sou seu amigo.”
“Onde
eu estou?”
“Em
meu consultório, na Alemanha.”
“Alemanha?
Eu quero voltar! Quero voltar para casa com a minha mãe! Quero estar com ela em
Nova Iorque!”
“Fique
calma, eu estou aqui. Vamos conversar um pouco, Miley. Assim você esquecerá
seus problemas. O que acha dessa ideia?”
A
garota respondeu com um aceno de cabeça.
Trevor
ajudou Miley a se levantar, colocou-a sentada sobre a mais confortável de suas
cadeiras. Desatou os cintos que a amarravam, libertando os braços e as pernas
daquela criança indefesa. Por um momento, achou que aquele ato fora um pouco
doentio da parte de Joe.
“Você
está solta agora, pode fugir ou me bater, se preferir. Mas eu confio em você,
Miley. Sei que não vai me desapontar, não quer me ferir. Você quer apenas ver
tudo isso passar, não é?”
“Eu
só quero poder sorrir outra vez. Quero viver de verdade, doutor.”
(Viver
de verdade?)
Por
dentro, Trevor mergulhava num turbilhão de lembranças.
“Vamos
cuidar disso, minha amiga. Pode contar comigo para qualquer coisa.”
“Obrigado,
senhor Kraepelin.”
“Pode
me chamar apenas de Trevor, Miley.”
“Trevor?”
“Exatamente.”
“Trevor.
É um belo nome.”
“Não
tanto quanto o seu.”
Trevor
se afastou sem pressa, sentando-se numa cadeira mais distante de sua paciente.
Ligou o gravador de áudio em sua mesa, mas Miley parecia desinteressada naquele
objeto. Então alcançou seu bloco de anotações.
“O
senhor é um médico, Trevor?”
“Podemos
dizer que sim. Mas eu não vou curar
você, Miley, pois você não está doente. É uma garota forte, resistente e
corajosa, nada poderia te derrubar. Eu sou um outro tipo de médico.”
“Você
é um médico de loucos?”
Trevor
sorriu com simpatia.
“Você
se acha louca?”
“Não.
Quer dizer, não sei. Às vezes, eu escuto vozes. Vejo sombras e... coisas que se
movem. Mas podem ser apenas brincadeiras da minha cabeça, não é?”
“Certamente
o são. Você não é louca. Eu não sou um médico para loucos, apesar de parecer.
Sou uma espécie de médico que existe para escutar as pessoas.”
“Escutar?”
“Exatamente.
Muitos dos nossos problemas podem ser resolvidos com apenas uma conversa
tranquila. Sabia disso, Miley?”
“O
papai não é bom em escutar a mamãe.”
“Não?”
“Não.
Talvez seja por isso que nossos problemas nunca se resolvem.”
“Me
conte mais.”
“Não
tenho muito para contar. Eles estavam sempre brigando, discutindo por bobeiras.
Num dia, se elogiavam, faziam poemas e declarações. No outro, gritavam pela
conta do telefone, por ciúme bobo. Papai estava sempre gritando, sempre mesmo.”
“E
a sua mãe, Miley? Como ela reagia a isso tudo?”
“Mamãe
é uma boa pessoa. Ela poderia ser uma médica de escutar. Sempre me escutou
quando precisei, sempre estava lá. Faz algum tempo que ela mudou. Antes,
parecia disposta a tentar resolver as coisas. Agora, parece que desistiu do
papai.”
“As
pessoas podem demonstrar coisas diferentes do que estão pensando, Miley. Por
que sua mãe desistiria de seu pai?”
Miley
baixou os olhos, visivelmente desanimada.
“Quem
é que gostaria de viver para todo o sempre ao lado de uma pessoa que só sabe
gritar e causar problemas?”
Trevor
estacou. Admirou as bochechas ruborizadas de Miley, tentando entender todo o
sofrimento que a assolava. Passara por coisas similares em sua infância, mas
nada daquilo poderia lhe abalar agora. Ela, entretanto, era apenas uma criança.
Uma menina disputada pelos pais como um prêmio, um troféu. Não era algo simples
de se suportar.
Os
ouvidos de Trevor nunca lhe abandonavam, sempre atentos a qualquer ruído.
Assim, mesmo antes do soluço, escutara os passos vagarosos de Joe, que se
aproximava para espreitar a conversa de sua filha. Pai algum gostaria de
escutar aquelas palavras ditas por Miley, mas o que ele poderia fazer? Como
dissera anteriormente, grande parte da culpa de todo aquele transtorno era dele
próprio. Restava se esconder próximo à porta de madeira e escutar a decepção
daquela que carregava seu sangue.
“O
papai é o grande responsável por todos esses problemas, doutor. Acho que ele
pensa que eu sou um empecilho.”
“De
maneira alguma, Miley! Seu pai é um bom homem! Mas, como todos os outros
homens, ele tem problemas para lidar. Todos nós estamos sujeitos ao stress do cotidiano,
às humilhações do trabalho, às intrigas internas e pessoais. Muito disso
reflete em nossa personalidade, atinge precisamente as pessoas que estão ao
nosso redor.”
“A
mamãe nunca passou por isso, doutor. Ela também tem problemas, também tem
dificuldades. Mas ela nunca deixou que isso afetasse seus dias. Estava lá,
sempre sorrindo, sempre brincando comigo! Qual a diferença entre eles?”
“Não
há diferença, mas certamente sua mãe disfarça grande parte de seus problemas.”
“Às
vezes eu acho que deveria morrer, senhor Trevor. Talvez meus pais não
precisassem brigar tanto se não tivessem que disputar minha atenção.”
A
respiração de Joe se tornou um choro pesado, mas logo se afastou da porta onde
se postava. Trevor observava aquela menina com admiração, orgulhoso de sua
força para enfrentar tais problemas, ainda que a piedade falasse mais alto. Era
contrário à ideia de sentir pena de uma pessoa, mas não pôde evitar sentir-se
daquele modo ao pensar na situação que afrontava a pequena Miley.
“Morte
nunca é uma solução, Miley.”
“Tem
certeza, doutor?”
“Certamente,
minha amiga.”
“Será
que nem mesmo como uma última escolha, como uma atitude desesperada, um pai
pensaria em matar sua própria filha?”
Havia
um certo ar de superioridade naquela pergunta, impregnada por uma dose miúda de
deboche e ironia. Trevor sentiu-se mal, mas hesitou. Talvez estivesse
alucinando, o que seria irônico, já que ele deveria cuidar dos sonhadores. Era apenas uma coincidência,
isso, um infortúnio da vida.
“Seu
pai jamais pensaria em algo assim, Miley.”
Por
um momento, Trevor acreditou ver um sorriso no rosto daquela criança.
“Mas e o senhor, doutor?
Seria capaz de pensar em matar a própria filha para se livrar de todos os
problemas?”
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