Trazendo mais um ato de Delirium para vocês, espero que gostem.
Até a próxima.
VI
Havia
uma criança do inferno.
Era
um garoto, mas era um aborto, e como tal estava deformado. Como um feto
incompleto e incapaz, avançado por aquele mundo surreal, dotado de membros, de
pelos, de uma pele ressecada e frígida.
(Parece
que não há outra opção.)
O
ceifador matou, matou sem parar, sem nausear pelo sabor do sangue que lhe
impregnava o rosto, que lhe escorria aos olhos e lábios, que inundava suas
vestes em vermelhidão.
A
criança avançou com braços miúdos e flácidos, a carne suspensa por gorduras
grotescas, distante dos ossos, sacolejando junto da pele amolecida pela
nojeira. A foice tocava seu corpo como fogo, desintegrava tudo aquilo que
encontrava pelo caminho. Na lâmina curva de Trevor, o monstro encontrava seu
fim.
Mas
não temia.
Golpeou
sem aviso, deixando desabar as mãos disformes contra seu oponente, atordoando
por alguns instantes o ceifador que o enfrentava.
(Há
muita raiva suprimida nesta maldição.)
E
havia. Não apenas do bebê, havia Mariza. Sentia-se traída, ainda que fosse
apenas uma amante, sentia-se deixada de lado. Confiara em Trevor por tanto
tempo, satisfazendo suas vontades com louvor, para só então perceber que não
era nada além de um brinquedo, assim como aquilo que carregava no ventre.
A
voz da amante ecoava, distorcida pelo ódio da abominação.
“Eu
estou grávida! Eu te amo, Adiel! Seremos um lindo casal para todo o sempre!”
Acompanhada
do pranto da criança que nunca chegou a conhecer o mundo, criava uma melodia
sinistra, e esta tornava a situação um tormento para as mentes envolvidas.
Adiel,
ajoelhado, via dentro de si. Gritava e chorava como uma criança com medo de
escuro, dizia coisas sem sentido.
Trevor,
um dia, passara por aquilo. Sabia o que havia dentro de si, era um dos únicos.
Ao
entender o que há dentro de seu espírito, os homens morrem. Por fora,
alcançando o final de suas vidas, ou mesmo por dentro, apodrecendo com mentes
inutilizadas pela loucura.
Apenas
os sobreviventes se tornam ceifadores.
Enquanto
Adiel enfrentava a si mesmo, Trevor enfrentava o mal que o assombrava.
“Adiel,
abandone sua família! Sua esposa, seus filhos, eles não importam!”
“Papai!
Papai!”
“Seremos
felizes! Annabeth não pode te fazer feliz!”
“Vamos
viajar essa semana, papai?”
E
o grunhido monstruoso do feto. Tudo era caos.
Coisas
e demônios se dispersavam naquele mundo absurdo, a foice urrava em seu domínio.
Aquela não era uma arma comum, não era uma lâmina qualquer. Era a essência de
um ceifador, o espírito de Trevor. Cortava e estocava, fazia o sangue jorrar
sem piedade, manchava o solo e o céu quando ambos inexistiam.
“Papai!”
Os
gritos eram exterminados com golpes precisos.
“Adiel!”
Três
coisas foram pulverizadas por um único corte; demônios guinchavam.
“Estou
grávida, Adiel!”
O
bebê-monstro estrondou em frenesi.
“Venha
cá, amigo. Tenho uma brincadeira nova para lhe ensinar.”
O
chamado vinha de Trevor, ainda que parte viesse de sua arma, sempre sedenta
pelas almas emporcalhadas daquelas torturas que a psiquiatria convencional
jamais seria capaz de solucionar.
Submetendo-se
à provocação de seu adversário, o monstro saltou sobre Trevor com garras e
dentes, o pênis infantil se movia como um tumor.
“Papai,
papai! Por que não me deixou nascer, papai?!”
O
sofrimento do aborto forçado por Adiel lhe marcava o corpo, carregado de
cicatrizes e doenças e sangue gangrenado. Aquilo que um dia fora seu cordão
umbilical se mostrava como uma víbora, serpenteando e sibilando uma ira
desumana.
As
garras enfrentaram a foice, as unhas afrontavam o ceifador.
“Eu
não sou seu pai, criatura. Mesmo Adiel não o é!”
O
bebê largou-se num sorriso quase banguela, seus poucos dentes similares a
presas caninas, a boca apodrecida por vermes e traças.
Sua
voz mudara.
“Talvez
ele não seja meu pai, ceifador.”
“Resolveu
se revelar?”
“Mas
nem sempre os pais admiram suas crias, não concorda?”
Trevor
se abalou. Forçou a foice contra as garras do demônio, afastou-o com sua força
incomum.
“Quem
é você, ser?”
Outro
sorriso de poucos dentes surgiu, tomado por uma malícia irracional.
“Alguém
que sabe demais.”
“E
o quê você acha que sabe, cretino?!”
Aquele
imenso bebê movia-se como um leopardo, ainda que seu tamanho fosse capaz de
enganar qualquer um quanto a sua agilidade. Saltou com um rodopio, caindo sobre
Trevor com seis braços, quando quatro destes rasgaram sua carne decrépita num
instante imperceptível.
“Sei
que você é um tremendo filho da puta, Kraepelin. Ou deveria chamá-lo de Sangue Azul?”
Trevor
engoliu em seco.
(Quem
é este monstro? Como ele pode saber essas coisas?!)
Não
fazia diferença. Não fosse sua profissão, o simples fato do conhecimento
carregado por aquela criatura a tornaria um alvo primordial para o ceifador.
“Está
confuso, doutor? Precisa da ajuda de
um psiquiatra? Não consegue mais se lembrar da voz dele? Ou pior... nunca conseguiu esquecer?”
A
foice avassalou, destruidora.
“QUEM
É VOCÊ, MONSTRO?!”
O
brado descontrolado fez com que a criança tombasse, parte de sua pele
desfazendo-se no bramido inesperado que partira do ceifador.
Mas
o medo era um sorriso irônico e horrendo.
“Meu
nome não é importante, Sangue Azul.”
“Não
me chame disso!”
“Seria
capaz de negar suas essências? Às vezes, me esqueço de como são os humanos.
Mentem para si mesmos quando precisam manter o conforto de suas vidas imundas.”
Trevor
ergueu a foice. Aquilo estava fora de controle.
O
monstro zombou.
“Ora,
como sou descuidado. Peço desculpas, ceifador, por compará-lo a seres tão
inferiores. Afinal de contas, você não é
mais um humano, não é mesmo?”
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